sexta-feira, fevereiro 28, 2003


Cenas da Vida Suburbana
Por INÊS NADAIS
Quinta-feira, 27 de Fevereiro de 2003

"L.I.E." e "Secretary", dois filmes americanos, destacaram-se na Semana dos Realizadores

Cinema americano, bom cinema americano. É sobretudo essa a matéria-prima de que vai sendo feita a Semana dos Realizadores (SR) do 23º Fantasporto. Excepções à regra: "Toy Love", de Harry Sinclair, um filme menor que provavelmente ficará como um acidente de percurso no currículo do realizador neozelandês; o alemão "A Map of the Heart", de Dominik Graf, um filme indeciso rodado na Córsega; e "Nogo", um drama austríaco ao ritmo "dub" dos Sofa Surfers que o PÚBLICO ainda não viu. É um facto: fantástico à parte, o melhor cinema que passou nos primeiros quatro dias de competição desmente a crónica apetência do Fantas pelo cinema europeu. A avaliar pelos resultados, ainda bem.

Numa altura em que a competição na SR está a três filmes do fim (ainda não passou pelo Grande Auditório do Rivoli a tripla embaixada britânica formada por "Devil's Gate", "The Last Minute" e "Room 36"), a luta pelo prémio resume-se a um renhido braço de ferro entre dois objectos igualmente subversivos - e igualmente suburbanos. "Secretary", de Steven Shainberg, e "L.I.E.", de Michael Cuesta, têm pelo menos um mérito em comum: a absoluta tranquilidade com que dispensam o subtexto maniqueísta associado ao discurso sobre o sadomasoquismo e sobre a pedofilia sem resvalar para o campo minado do registo série Z. Em nenhum destes filmes há esse perigo de confundir neutralidade com complacência, olhar de cineasta com "voyeurismo" de espectador: nem "Secretary" é um "porno soft-core", nem "L.I.E" é um filme caseiro para pedófilo ver.

De resto, o maior mérito desta dupla de filmes - e também do divertidíssimo "Bug", - outro filme americano a concurso, realizado a meias por Matt Manfredi e Phil Haye -, é uma espécie de vocação liberal que os salva da asfixia. Ao contrário de "A Map of the Heart" - o filme de Dominik Graf que começa por definir-se como diário de bordo do fim de uma relação e depois se transforma noutra coisa qualquer -, Shainberg, Cuesta e a dupla Manfredi/Haye evitam que a câmara se cole à pele das personagens. É esse o truque: deixar o cinema respirar. Nem que seja no quadro estilizado de uma relação que sangra, no trapézio de uma estrada que conduz ao inferno ou graças a uma habilidosa técnica de deserção narrativa que larga as personagens no vazio pouco depois de lhes extorquir uma cena, para logo parasitar outra personagem, e assim por diante, como em "Bug".

Sado-masoquismo e pedofilia
Aperte-se o "zoom" a "Secretary": marcadores vermelhos matematicamente alinhados na gaveta, orquídeas selvagens numa estufa de escritório, polaroids quase Helmut Newton, papel de parede vitoriano, algemas, objectos cortantes, envelopes impecavelmente brancos com minhocas dentro. Sim, a "mise-en-scène" de Steven Shainberg é fetichista: é com um detalhe de coleccionador que a câmara sobrevoa as paredes do quarto em que Lee Holloway (Maggie Gyllenhaal) se auto-mutila meticulosamente em surdina, as paredes do escritório em que o advogado E. Edward Grey (imperturbável James Spader) pune com um rigor sadomasoquista os erros ortográficos de Lee e, em, resumo, todo esse universo para lá da moral em que essa relação quase "lynchiana" é possível. Baseado, diz a crítica literária nova-iorquina, num conto falhado de Mary Gaitskill, "Secretary" tem sobretudo dois trunfos de peso: um "casting" soberbo e a proeza de converter esta história de amor sado-masoquista numa história de amor convencional capaz de convencer o mais conservador dos espectadores.

O mesmo vale para "L.I.E.", provavelmente o filme mais consensual desta edição do Fantasporto. O próprio título é um equívoco - vale para "lie", mentira, e para Long Island Expressway, a estrada com "faixas para Leste, faixas para Oeste e faixas directamente para o inferno" onde a mãe do protagonista, Howie, adolescente a caminho dos 16, perdeu a vida. Encontramo-lo em equilíbrio precário, a fazer trapézio nas grades de um viaduto que dá para a auto-estrada. Não é à toa: Michael Cuesta - o ex-fotógrafo que agora faz parte da equipa de realizadores da série televisiva "Sete Palmos de Terra" e se estreia no cinema com este mergulho nos subúrbios - filma esta história como um diário de um adolescente com dores de crescimento. Detém-se nos analgésicos: faltar às aulas para assaltar casas com os amigos de ocasião, planear uma fuga para a Califórnia, tapar a cabeça com a almofada para esquecer que o pai despacha a viuvez recente com sexo casual, aceitar a bondade de estranhos, mesmo que pedófilos. É esse o nó do filme: a ambiguidade a meio caminho entre pai e predador que caracteriza Big John (Brian Cox no seu melhor) e, por contágio, a sua relação com Howie (Paul Franklin Dano), um pequeno "criminoso de classe elevada" que fala francês, reconhece um Chagall e tem Walt Whitman na ponta da língua. É definitivo: a vida suburbana não é tão normal quanto a pintam.



Edgar Pêra Estreia "Filme-pesadélico" no Fantasporto
Por SÉRGIO C. ANDRADE
Quinta-feira, 27 de Fevereiro de 2003

A realidade mediada (ou inundada?) pela omnipresença da televisão é o tema da nova longa-metragem do realizador de "A Janela (Maryalva Mix)"

"Os Homens-Toupeira"

A guerra, a pedofilia, o infanticídio, o "big brother"... Temas que o cineasta Edgar Pêra não imaginaria, no início do Outono passado, quando iniciou a rodagem de "Os Homens-Toupeira", que estariam hoje tão violentamente na ordem do dia. Mas a actualidade, o mundo em curso, é definitivamente a matéria-prima da obra deste realizador português - que hoje faz a antestreia da sua nova longa-metragem na principal secção competitiva do Fantasporto (no pequeno auditório do Teatro Rivoli, às 21h).

"Portugal, 27 de Fevereiro de 2003: um apresentador de televisão é chamado a fazer uma investigação sobre a vida de um casal-toupeira (...) suspeito de pedofilia e de ter assassinado o filho-bebé de 16 meses". Os nomes das personagens que formam o casal são Jean-Claude e Nicole. Edgar Pêra explica ao PÚBLICO que eles resultam de "uma brincadeira", já que se referem aos actores Jean-Claude van Damme e Nicole Kidman, que estavam nos apontamentos do dramaturgo Alexandre Crespo, autor do texto (adaptado ao cinema pelo próprio Edgar Pêra e pelo encenador do extinto grupo de teatro O Olho, João Garcia Miguel) que esteve na origem do filme. É também uma referência ao "mundo globalizado" em que vivemos, por via da presença da televisão.

"Os Homens-Toupeira" é, assim, a encenação de um pesadelo, ou, na habitual linguagem manipuladora de Pêra, "um filme pesadélico": "Vivemos actualmente num mundo de vigília, por oposição ao do sono. O nosso é cada vez mais um mundo vigiado - estar acordado é estar vigiado, e a única excepção é o sonho", acrescenta o realizador. No entanto, "sonhamos com as imagens que a televisão nos impõe, ao mesmo tempo reproduzindo e encenando a realidade, através dos documentários, dos 'talk-shows', mas também do teatro e da ficção".

Neste mundo permanentemente acossado, "as pessoas são ao mesmo tempo espectadores e participantes". É essa a intriga de "Os Homens-Toupeira", "um tele-espectáculo" que é ainda um filme de intervenção, não dispensando também o tom satírico com que se refere a temas como, por exemplo, a guerra.

Os participantes no 23.º Fantasporto vão ter oportunidade de assistir, esta noite, a um trabalho ainda em curso. Depois de uma rodagem mais "clássica" do que é habitual na sua filmografia - "cheguei a fazer 28 'takes' de um mesmo plano" -, Edgar Pêra terminou a sua primeira versão na noite de anteontem, após uma maratona de trabalho destinada a ter o filme pronto a tempo de ser exibido no festival. A sessão de hoje no Porto será, assim, uma espécie de "preview", de "balão de ensaio" para uma nova versão na qual o autor de "A Janela (Maryalva Mix)" continuará a trabalhar. "Certamente que o filme vai ficar desactualizado dentro de algum tempo", nota Pêra, do mesmo modo que a sinopse com que o apresentou há algum tempo (e que vem reproduzida no catálogo do Fantasporto) já foi também ultrapassada

quinta-feira, fevereiro 27, 2003


A Multipicação do Cedro

O senhor deus é espectador desse homem
Encheu-lhe o regaço de dias e soprou-lhe
nos olhos o tempo suave das árvores
Deu-lhe e tirou-lhe uma por uma
cada uma das quatro estações
A primavera veio e ele árvore singular
à beira do tempo plantada
vestiu-se de palavras
E foi a folha verde que deus passou
pela terra desolada e ressequida
Quando as palavras o deixaram de cobrir
ficaram-lhe dois dos olhos por onde
o senhor olha finitamente a sua obra
Até que as chuvas lhe molharam os olhos
e deles saíram os rios que foram desaguar
ao grande mar do princípio

Aquele Grande Rio Eufrates

Ruy Belo




Minor White, Seascape


"Mesmo que não conheças nem o mês nem o lugar
caminha para o mar pelo verão "

Ruy Belo





Minor White, Windowsill Daydreaming


A Enciclopédia Infinita
Por Fernando Magalhães
Quarta-feira, 26 de Fevereiro de 2003

Em "Ficções", obra hoje publicada na Colecção Mil Folhas, Jorge Luis Borges combina o arrebatamento poético com o delírio lógico. Contos para se perder ou ganhar a razão.

"Ficções", de Jorge Luis Borges, foi editada em 1944. Junta duas colecções de contos, "O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam" (1941) e "Artifícios" (1944). Poderiam ser datas fictícias e Jorge Luis Borges um anagrama do nome de outro autor, real ou imaginário. O próprio Borges admitiria o logro, questionando a sua identidade. "Às vezes sou Borges."

Pode escrever-se tudo o que se imaginar sobre o escritor argentino - a quem, provavelmente por se sentir hesitante quanto à sua verdadeira identidade, a Academia Sueca sistematicamente recusou a atribuição do prémio Nobel - que tudo estará certo ou estará algum dia. A sua bibliografia é, aliás, a mais extensa que se conhece, a seguir à de Shakespeare.

Borges foi acima de tudo um filósofo poeta, da mesma forma que Fernando Pessoa foi um poeta filósofo. Um e outro tentaram descartar-se da personalidade, da máscara. Borges afirmou: "Na realidade não tenho a certeza de que exista. Sou todos os autores que li, toda a gente que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados." Pessoa, mais sintético, falou em "ser tudo, de todas as maneiras".

Transformaram-se integralmente em literatura. Procurando ser, como o Deus da Cabala judaica, o nome sagrado que em si é e contém todo o Real. No caso de Jorge Luis Borges havia ainda labirintos e espelhos, temas que, de resto, o enfastiavam "especialmente quando são outros que os usam". Em "Análise da obra de Herbert Quinn", um dos contos reunidos em "Ficções", avalia-se uma obra deste escritor fictício intitulada "The God of the Labirynth", através do recurso a fórmulas matemáticas. Existem espelhos disseminados nas salas hexagonais de "A Biblioteca de Babel", conto central no universo borgesiano, que "fielmente duplicam as aparências". Reflexos de reflexos. Em "Pierre Ménard, autor do 'Quixote'", Pierre Ménard, outro escritor imaginado por Borges, escreve uma obra inteira absolutamente igual, letra a letra, ao "Quixote" de Cervantes, no entanto absolutamente diferente porque Ménard reproduziu interiormente todo o processo psicológico e literário que conduziu à sua feitura.

Como se percebe, Jorge Luis Borges soube esconder-se. Ele que, na série de entrevistas concedidas a Georges Charbonnier em 1964, difundidas pela rádio francesa e publicadas mais tarde pela Gallimard no livro "Entretiens avec Jorge Luis Borges" ("Entrevistas com Jorge Luis Borges", na tradução portuguesa pela editora Início) falava numa "máquina de fazer versos que nos diz para não pensar, esgotando as possíveis combinações das palavras até ao momento em que tais palavras dariam algumas ideias". Mas que, no fundo, reconhece que esse "poeta mecânico" jamais "satisfaria inteiramente, dado que não conseguiria explicar a emoção", uma vez que a intensidade do poema se mede pelo estado de "arrebatamento interior" do autor.

O jogador

Eis-nos instalados no eixo do paradoxo de que se faz a obra de Borges. Entre a arte combinatória do jogador e do matemático e a absoluta imprevisibilidade da vida e da literatura. Sobre as "leis secretas do verso livre e da prosa" disse: "Escrevemos um verso, escrevemos depois outro verso. Temo-los mais ou menos no ouvido. Mas isso surpreende-nos, sem dúvida: entrevêem-se essas leis secretas. Sentimos que este verso livre é possível depois de um outro e que outro é impossível. Quer dizer, existe sempre um pouco de 'A Biblioteca de Babel' lá dentro! Há também alguma coisa da tal máquina..."

Os temas da lei (ordem) e do jogo (acaso) são sistematizados, de acordo com a lógica mais implacável (e, por isso, delirante) a par da poesia mais marcada pelo onirismo, em "A Biblioteca de Babel" e "A Lotaria na Babilónia", dois contos fulcrais contidos em "Ficções".

Em "A Lotaria na Babilónia", das narrativas mais marcadamente kafkianas do escritor argentino, a sociedade é governada por uma Companhia que se dedica a tornar o quotidiano dos cidadãos num imenso jogo de lotaria que progressivamente se complexifica até à insanidade, permitindo toda a espécie de teorias explicativas. "Porque a Babilónia não é outra coisa senão um infinito jogo de acasos", enquanto para outros "a Companhia é omnipresente mas só tem influência sobre as coisas minúsculas: o piar de uma ave, as cambiantes da ferrugem e da poeira, os meios sonhos da madrugada".

Já na "Biblioteca de Babel" a ordem ostenta a crueldade de Sade. "Não há nesta biblioteca dois livros idênticos. A biblioteca é total e as suas estantes registam todas as possíveis combinações dos vinte e tal símbolos ortográficos (número embora vastíssimo, não infinito) ou seja, tudo o que nos é dado exprimir: em todos os idiomas. Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o relatório verídico da tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas..." e mesmo "um livro que seja a chave e o resumo perfeito de todos os outros".

Na biblioteca de Babel não é possível combinar os caracteres "dhcmrlchtdj", "que a divina biblioteca não haja previsto e que nalguma das suas línguas secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja plena de ternuras e de temores; que não seja nalguma dessas linguagens o nome poderoso de um Deus. Falar é incorrer em tautologias. Esta epístola inútil e palavrosa já existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos - e também a sua refutação. Um número 'n' de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; numas o símbolo 'biblioteca' admite a correcta definição de 'ubíquo e duradouro sistema de galerias hexagonais' mas 'biblioteca' é 'pão' ou 'pirâmide' ou outra coisa qualquer, e as sete letras que a definem têm outro valor. Tu que me lês, tens a certeza de que comprendes a minha linguagem?"

Jorgeluisborges, rigsbsorulejore, sigerjgroseulo... Ao ler estas "Ficções" jogue o leitor e descubra quantos e quais são os nomes de Deus. Apenas ficções ou algo mais?

quarta-feira, fevereiro 26, 2003


Bill Brandt, Campden Hill.



Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

Mário de Sá-Carneiro



Elliott Erwitt,New York

No Inverno dizes de muito longe que não voltarás aqui
José Agostinho Baptista



terça-feira, fevereiro 25, 2003


Paixões Escondidas em Coimbra
Por Lucinda Canelas
Terça-feira, 25 de Fevereiro de 2003

Olga Roriz estreia na Capital Nacional da Cultura uma peça feita a partir de histórias de amor que a literatura imortalizou

Kafka e Milena, Tristão e Isolda, ou Pedro e Inês viveram - a acreditar nos registos históricos e literários, por mais fantásticos que sejam - paixões inabaláveis, secretas, eternas. "Jump-up-and-kiss-me", a peça que a Companhia Olga Roriz estreia hoje, no Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra, revisita algumas destas histórias de amor que a literatura imortalizou.

Paula Pinto (ex-Ballet Gulbenkian), Catarina Câmara, Olga Roriz, Francisco Rousseau (ex-Ballet Gulbenkian), Didier Chazeau (Companhia Nacional de Bailado), Gonçalo Amorim (O Bando) e Pedro Cal transformam-se, ao longo de uma hora e meia, em Judite, Barba Azul, Ofélia, Hamlet, Apolo ou Salomé.

O processo de criação teve início em Outubro do ano passado, com uma fase de pesquisa bibliográfica. Para a coreógrafa, que divide com Pedro Cal a dramaturgia de "Jump-up-and-kiss-me", foi essencial este período embrionário em que cada um dos intérpretes mergulhou no percurso das personagens a que iria dar corpo.

"Sabia que estava a lidar com um material humano muito sensível, capaz de agarrar todo este clima de impossibilidade", diz Olga Roriz. "Bastava que cada um ficasse a saber um pouco mais sobre estes casais proibidos para que trabalhássemos com base nas mesmas referências".

Depois de ler e debater o erotismo, o elenco voltou-se para a improvisação, de acordo com a distribuição de papéis que Roriz fizera. "Francisco Rousseau só poderia ser Pedro. Tal como Gonçalo Amorim só poderia interpretar Kafka. O contrário não faria sentido".

Definidos os personagens e os respectivos pares, foi preciso determinar em que momento e situação se encontrariam. "Há um espaço e um tempo precisos em que tudo acontece: Milena só existe através da carta que escreveu a Kafka; D. Pedro só vê Inês quando já não há nada a fazer para a recuperar".

O clima de secretismo e proibição que envolve todos estes pares é um dos principais ingredientes da peça. É por isso que o cenário remete para uma espécie de gruta subterrânea, atravessada pelas raízes das árvores de uma grande floresta. "Todo este amor acontece escondido, por baixo de tudo".

Olga Roriz e Pedro Cal são uma presença constante ao longo de "Jump-up-and-kiss-me" (expressão idiomática que se utiliza para identificar "um homem apaixonado"), interpretando Afrodite e Apolo. São eles que pairam sobre todas as histórias de amor terrenas, estabelecendo um ponto de referência mítico.

"Falamos de amores impossíveis porque são os que mais nos marcam. São os que nos parecem sempre mais fortes, os que mais nos seduzem". É por isso que, no final, Salomé - protagonista de uma história de amor trágica como poucas - se transforma numa personagem colectiva, levando a que os intérpretes se entreguem a um ritual que homenageia uma paixão morta. Morta, mas eterna.

"Jump-up-and-kiss-me"

Direcção e coreografia de Olga Roriz. Dramaturgia de Olga Roriz e Pedro Cal. Música de Sergei Rachmaninoff. Com Paula Pinto, Catarina Câmara, Olga Roriz, Francisco Rousseau, Didier Chazeau, Gonçalo Amorim e Pedro Cal.

COIMBRA Teatro Académico de Gil Vicente. Praça da República. Tel. 239855630. Hoje e amanhã, às 21h30. Bilhetes a 6 e 10 euros.


"A Criação como Algo Sublime e Inútil"
Por Eduardo Lourenço
Terça-feira, 25 de Fevereiro de 2003

Tem sido referida a influência de Blanchot na minha obra. Reconheço que há grandes afinidades entre o discurso dele e o meu, no modo como ambos nos relacionamos com a escrita, nessa ideia de que a escrita é uma aventura infinita que repousa sobre nada. Tudo isso nos é comum. Mas não tenho o sentimento de o ter bebido directamente no próprio Blanchot. Toda essa nova reflexão sobre a essência da escrita, sobre a essência do póetico, recebi-a originalmente do Paul Valéry, quando andava ainda a fazer os meus estudos. Mas a grande reflexão vem já de Mallarmé e da sua ideia de livro infinito. É o pai de Valéry e de todos os outros.

Do Blanchot, li muito cedo o livro "Lautréamont et Sade" [1949]. Só depois, quando de algum modo já formara o meu próprio espaço crítico, é que li outras obras, sempre com muito interesse. É um autor fascinante. Talvez tenhamos referências e fontes semelhantes. Como ele, gosto muito dessa ideia de criação como qualquer coisa sublime e inútil.

Todas essas intuições, eu aprofundei-as no Pessoa. De uma maneira ou doutra, elas estão presentes na sua prática poética e na sua visão poética.

Em Blanchot, admiro também essa personagem que não se expõe, que não existe. Só há duas fotografias dele, e uma é dos anos vinte, quando ainda ninguém o conhecia. É um pouco como o Julien Gracq, mas em função de outro tipo de atitude




Maurice Blanchot (1907-2003)
Por Ana Navarro Pedro, Paris
Terça-feira, 25 de Fevereiro de 2003

Um dos precursores do "Nouveau Roman" foi ao encontro da morte que tanto o inquietava

Maurice Blanchot, o autor mais solitário e discreto da literatura francesa, faleceu na quinta-feira passada, com 95 anos. Fiel à sua postura anti-mediática, quis que a sua morte fosse anunciada só ontem, dia do funeral.

Pouco conhecido do grande público, amigo íntimo do filósofo Emmanuel Lévinas e do escritor Georges Bataille, Maurice Blanchot deixa uma obra considerada como difícil, constituída em grande parte de ensaios críticos sobre grandes escritores - Kafka, Mallarmé, Rilke ou Proust. A sua vida, consagrada ao estudo dos mecanismos secretos da criação literária "num espaço infinito", influenciou intelectuais franceses como Jean-Paul Sartre, Roland Barthes e Michel Foucault.

Para o diário francês "Libération", Maurice Blanchot foi "o único escritor morto ainda em vida". Uma fórmula que resume toda a discrição deste intelectual, que a crítica apresentava desde há alguns anos como "estando talvez ainda em vida". Tornar-se "não visível" correspondia a uma postura filosófica do autor, que considerava dever apagar-se por detrás da obra, que, essa sim, sempre subsiste. Para Blanchot, a escrita é mais do que o escritor, ou pelo menos é mais perene.

"Do 'ainda não', ao 'não mais', tal seria o percurso do que se chama um escritor", escreve Blanchot no romance "Thomas l'Obscure", uma ficção sem trama e sem fio narrativo, dominada pela linguagem e pela possibilidade, ou impossibilidade, da criação: "Fiz-me criador contra o acto de criar", diz o herói, Thomas. A ausência e a morte dominam este romance, como dominam toda a obra de Maurice Blanchot. "A morte, não nos habituamos a ela", é a primeira frase do livro "Le Pas Au-delà", publicado em 1973. Noutros escritos, Blanchot conta como quase foi fuzilado em 1944, pondo em cena um narrador cego. Maurice Blanchot nasceu em 1907, em Quain, numa família conservadora de província. Estuda letras na Universidade de Estrasburgo, onde encontra Emmanuel Lévinas, recém-chegado da Lituânia. Descobre Hegel graças a Lévinas - "um choque intelectual". Não obstante, nos anos trinta é ainda um autor radical de extrema-direita, monárquico e, como Drieu la Rochelle, defensor do ideário fascista contra os "corruptores da pura civilização francesa" - ou seja, anti-semita. Publica as suas primeiras obras durante a Ocupação da França pelo regime nazi, nomeadamente "Aminabad" e "Thomas l'Obscure".

Deste estranho começo, que misturava o anti-semitismo com uma grande amizade por Lévinas, sairá anos depois o ferrenho defensor do judaísmo, o comentador de Kafka, o convertido à extrema-esquerda que foi Blanchot, amigo e apoio dos estudantes revoltados de Maio de 68.

"A linguagem é obscura por que diz demasiado, opaca porque não diz nada: a ambiguidade está em tudo", é uma das questões que Maurice Blanchot lega à literatura, e ao próprio acto de criar.



Blanchot
Por Eduardo Prado Coelho
Terça-feira, 25 de Fevereiro de 2003

Maurice Blanchot escreveu algumas das mais impressionantes páginas sobre a literatura, a poesia, o pensamento, a revolução que alguma vez pude ler

Um dia escrevi que sonhava por vezes que durante a noite Blanchot tinha morrido. O Vergílio Ferreira julgou que ele morrera mesmo e falou disso na sua "conta-corrente". Mas isto só acontecia porque Maurice Blanchot... - um dos maiores nomes da literatura contemporânea, um dos maiores e dos mais secretos - viveu sempre (mas não sei quando começou este "sempre") numa espécie de fronteira indecisa com a morte. E isso começou na sua recusa intransigente de ser fotografado: era um escritor sem imagem, ou, como ele talvez dissesse, a sua imagem era a de um ser sem imagem, que desaparecia lentamente na visibilidade das palavras, no relevo dos sons, na teia dos textos. Perguntei a Georges Mounin, que com ele polemizara sobre Char, quem ele era, e respondeu-me: nunca o vi. Perguntei a Duras e ela disse: durante anos vinha todas as semanas a minha casa, era uma pessoa profundamente doente, "magra como um deportado". Perguntei a Derrida, que sobre ele escrevera, quem era Blanchot, e ele sorriu: não sei, escreve-me cartas, e cada carta que escreve parece sempre que é a última carta. Blanchot vivia assim, na carta em excesso que chegava quando depois da última carta não havia mais nada para chegar, e por isso o título de um dos seus livros, "Le pas au-delà" dizia tudo: que era possível dar um passo para além do limite, mas que para além do limite nada era possível.

Na noite passada, às 5 da manhã, eu tinha no telemóvel duas citações de Blanchot. A primeira dizia que o desejo era a distância tornada sensível (é uma citação que vem comigo desde o princípio do mundo) e a segunda dizia que toda a presença só é presença à distância. Tudo isto fazia parte de uma água branca ("blanche eau") que descia do Lumiar até ao rio. Hora e meia depois, a voz da jornalista da TSF acordava-me para me dizer: Blanchot morreu, morreu na quinta-feira (que faria eu nesse momento?), mas só agora foi anunciado. Pode dizer umas palavras?

Disse o que pude numa voz alucinada de sono. Que era um homem que escrevera ficções (a mais conhecida é "L'arrêt de mort"), mas que um dia dissera, num pequeno texto de magia intitulado "La folie du jour", que nunca mais, nunca mais contaria histórias, porque escrever é outra coisa. E acrescentei que Maurice Blanchot escreveu algumas das mais impressionantes páginas sobre a literatura, a poesia, o pensamento, a revolução, que alguma vez pude ler. Foi tão longe na inteligência das coisas que só o podia imaginar sem imagem. Com Blanchot, tudo é grave, num passo cadenciado e decidido de quem atravessa o corredor da morte, e vai, no limite da madrugada, viver na terceira margem da vida. Desta terceira margem - hora do lobo -, nada direi porque Blanchot é um segredo: Blanchot somos nós. Como ele escreveu, são precisos sempre dois para dizer uma só coisa, porque quem a diz é sempre o outro.

A ALMA É HÚMIDA


Um feixe de luz trespassa a pele.
Circula pelo sangue, vibra, e ao atingir o coração – com a sua melodia de lumes e de ecos – transforma os ritmos imutáveis das seivas e das artérias.
Sempre foi difícil mergulhar para dentro de um copo.
Não se sabe se haverá regresso e ele não pode afirmar:
- A vida do meu corpo é a minha vida.
Porque aquele que percorre o escuro das veias, arde – e os astros que levava consigo ficaram envoltos em chamas.
As mãos azuladas cobrem-se com esta cor esbranquiçada, que mais não é do que um presságio de cinzas. E o corpo, com suas texturas e viscosidades, é o túmulo da noite.
Nele coagulam os fogos celestes e se apagam as paisagens.


Lavradas as terras dos mortos, ele vai pela insónia dos vivos.
Avista outros corpos que levantaram voo com as aves e desaparecem, para lá do brumoso fio do horizonte
Espreita pelo microscópio. Nos dedos já não cintila a generosidade dos homens.
Os corpos adquiriram a dimensão do desejo que não tiveram – desenvolvem as suas próprias pestes.
E das pálpebras fechadas onde pernoita excluiu as efémeras imagens do mundo. Perdeu-se onde não há nomes.


Um dia, saber-se-á de uma destas gotas de vida irromperá um deus ou um insecto, um homem ou uma planta.
Resta-nos, por agora, observar aquilo que não veremos crescer e tomar forma conhecida.
Não se pode nomear o que estremece e começa a erguer-se.


No início são organismos translúcidos, caminhos tubulares por onde procura uma saída.
Manchas , canais por onde o olhar desce até alcançar espessuras gelatinosas, brilhos, líquenes de órgãos inacessíveis ao tacto.
Nada se assemelha ao que conhecemos. Ignoramos a função destes órgãos – a que espécie de corpo pertencem?
Estamos algures no fundo de um corpo. Desconhecemos se alguém, lá fora, o olha ou pode tocá-lo.
A alma é húmida.
Por isso, deste corpo ele se despede – e destes rios cuja rubra luminosidade dissolve as paisagens que tentou preservar: o pássaro que cegava com o perfume das glicínias, a abelha posada na corola crepuscular da terra. O húmus fresco do sonho, o mar preso na mão que abandonou a sua sombra no lado de dentro do rosto.
O rosto, onde vive o rosto com suas ramificações de sal?


Ele caminha até onde pode. Apaixonado, absorto com aquilo que mal se levanta e, simultaneamente, o destrói.
Enquanto avança, sussurra:
- Não é o que digo que corre riscos, quem arrisca sou eu.
E, ao morrer, falará do corpo como se falasse de um refúgio.
Mas é cedo ainda. Talvez se ponha a sangrar dos pulsos. Porque é provável que exista ainda harmonia entre a vida oculta do seu corpo e o universo.
É provável que haja cumplicidade entre um astro que se extingue e o tempo que pulsa no seu coração.

Al Berto

in “ O Anjo Mudo”



Da 'Mulher-Cão' à 'Mulher-Anjo': Paula Rego, Identidade, Desejo e Mito




1- O ruminar da Tradição e a "estética do caçador furtivo"

Tal como escreve o crítico John McEwen, a pintora Paula Rego faz parte de um "movimento sem precedentes da arte feminina no Ocidente. Na Inglaterra, 70% dos artistas profissionais desde meados dos anos 80 são mulheres" (McEwen, 1997: 245). A historiadora de arte Gisela Breitling, por sua vez, referindo-se igualmente a este facto, afirma estarem assim criadas as condições para uma verdadeira estética feminista, que coloca questões e ousa buscar respostas às perguntas formuladas pelas mulheres. Citando: "De repente, dei-me conta de que era sobretudo um problema de linguagem, de discurso e de silêncio, um discurso artístico que tentava quebrar um voto de silêncio de mais de mil anos. Este problema de linguagem esconde a tragédia da falta de uma tradição artística no feminino, bem como da sua história silenciada" (Breitling, 1982: 162-3). A chamada contra-cultura feminina, que se desenvolveu a partir dos movimentos de emancipação dos anos 70, cresceu, e conquistou suficiente terreno para conseguir "abalar a falsa homologia dos universais masculinos" e propor, em seu lugar, "uma nova e verdadeira universalidade em que o feminino assuma o seu lugar de direito, e o masculino as suas verdadeiras proporções" (Breitling, 1982:173-4). Contudo, tal como mais recentemente as próprias historiadoras de arte têm vindo a afirmar, (vide Griselda Pollock, Gisela Parker, Linda Nochlin ou Lynda Nead), a consequência fundamental desta "revolução" no seio das artes visuais, traduz-se no facto de a arte dita feminina não poder ser mais marginalizada como sub-produto e encarcerada num ghetto exclusivamente feminino, "à margem" dos chamados "Grande Mestres" da tradição artística, tal como afirma Griselda Pollock (Pollock, 1996:3-21).
A obra de Paula Rego, tal como procurarei demonstrar, tem vindo energicamente a revelar-se como uma vibrante força deste contra-poder ou bem de um novo reequilíbrio de forças, assumindo-se plenamente num diálogo renovado e não-nostálgico com a chamada "Grande Tradição" e propondo do interior dessa mesma tradição uma "visão do mundo" (literalmente), no feminino e, transgressivamente, "às avessas".
Em meados dos anos 50, Paula Rego saíu de Portugal, deixando atrás de si o peso do regime salazarista, a ideologia do medo e da censura, um mundo opressivo e uma atmosfera puritana e claustrofóbica, para se juntar, como estudante, ao mundo artístico da Slade School of Art, em Londres. Os seus quadros dos anos 60, as suas "colagens" bem ao estilo do Surrealismo, revelam bem essa consciência de uma grotesca visão do mundo que o regime propagava, e, essencialmente, a náusea perante o imobilismo geral e a farsa gritante institucionalizada [vide "Salazar Vomita a Pátria" (1960), "Viva o Ding-Dong" (1960), "Foi estabelecida a Ordem " (1961) e "Sempre às Ordens de Vossa Excelência" (1961)]. A técnica usada na elaboração destes quadros é magistralmente descrita pela artista em termos do uso da "colagem" para representação da violência. Cito as suas palavras de uma entrevista que me concedeu em Fevereiro de 1999 no seu atelier de Londres:

AGM- E mostrar a violência não acha que é subversivo?
PR- Não, mostrar a violência é mostrar o que existe! Mostrar as pessoas como elas são.
AGM- E em relação a um Portugal "de antigamente", que está também representado nos seus quadros, o Salazarismo, por exemplo, foi sua intenção representar alguma dessa violência? Há violência nos seus quadros?
PR- Muita! Muita! E não era só a representação da violência, mas o modo como eu fazia os quadros nessa altura. Eu explico: quando eu fazia as colagens, eu fazia os bonecos e depois cortava-os com a tesoura, e essa
coisa do cortar, do arranhar e do ferir …é como se a pessoa estivesse a tirar os olhos a uma fotografia do Salazar, ou vá lá, do Cardeal Patriarca!
Suponha que a gente fazia um X na cara de uma fotografia e a arranhava toda. A violência de que estou a falar é da que se faz nos quadros, nas fotografias, não é a que se faz directamente às pessoas. Mas quando se faz isso num quadro não se fica com pena, aí tudo é permitido! A violência torna-se assim uma coisa útil! É difícil fazer uma coisa rude e violenta durante muitos anos, a arte torna as coisas belas. Sabe, o meu pai era muito contra a situação e eu fui educada assim, a saber ver as injustiças, apesar de ser muito protegida, como menina.
AGM- A pintura serve então para denunciar?
PR- Pois claro! Aqueles quadros todos eram extremamente políticos, "O Salazar a Vomitar a Pátria", "Os Cães de Barcelona", "O Exilado a Sonhar a Pátria", etc. Quadros que eu mostrei na altura e eles não deram por nada! A Exposição foi nas Belas-Artes, o catálogo foi escrito pelo poeta Alberto de Lacerda e o meu pai, que o imprimiu, disse-lhe que que isto ou aquilo não se podia pôr, por causa da censura. Mas a violência estava integrada na maneira de os fazer.


O uso estratégico e subversivo da violência, como arma de denúncia política tanto ao nível do público como do privado, são uma constante na estética de Paula Rego. Para além dos casos já referidos, a violência surge na sua representação da família tradicional, a relação mãe-filha (alegoricamente trabalhada nos seus contos de fadas travestidos, como por ex. "A Branca de Neve", ou as "Nursery Rhymes" da tradição anglo-saxónica) e, muito especialmente, a violência psicológica e física de que são vítimas as mulheres, vítimas de situações de abuso de poder, quer emocional, quer sexualmente (tal como veremos adiante na sua série,"Sem Título", sobre o aborto clandestino).
A imagem da ambivalência e da ironia que caracterizam a obra de Paula Rego é particularmente notória a partir de 1990, data que marca o início da sua estadia na National Gallery de Londres, na qualidade de "artista residente", tendo como encargo a criação de uma obra que "reflectisse" as obras de arte clássicas aí expostas, constituindo assim um "comentário visual" ou uma "re-visão" dos "Grandes Mestres" da tradição clássica ocidental. São estas as palavras da artista sobre a natureza da sua tarefa:

Fiquei um pouco assustada e hesitante! Mas para encontrarmos o nosso caminho para onde quer que seja, temos sempre de encontrar a nossa própria porta de entrada, tal qual a "Alice no País das Maravilhas". Bebemos demasiado de um produto e crescemos demais, depois bebemos demasiado de outro e torna-mo-nos demasiado pequenas. Precisamos de achar o nosso próprio caminho ... e eu descobri que o único modo de conseguir a entrada certa nas coisas, é pela cave... que é precisamente o local onde o meu estúdio se encontra! Assim posso subir sorrateiramente aos andares de cima, agarrar as coisas que me interessam, trazendo-as para a minha cave, onde posso tranquilamente ruminá-las ... Aqui sou assim uma espécie de caçador furtivo! (Wiggins, 1991: 21)

O processo de apropriação que Rego tão sensualmente aqui descreve, tudo tem a ver com a forma como os teóricos do Pós-moderno descrevem a revisitação paródica dos modelos das "grandes narrativas". Porém, o diálogo ambivalente que a artista estabelece com o passado não constitui um mero pastiche "cego", ou a elaboração de um simulacrum vazio, mas sim um comprometido e irónico "ruminar" de modelos e formas antigas, nas quais Rego amorosamente soube imprimir o seu "love affair with tradition", como diz Germaine Greer (Greer, 1991: 34-9), e, essencialmente, um olhar feminino e o seu comentário solidário de mulher. Veja-se, a título de exemplo, o famoso críptico "Os Jardins de Crivelli" (mural exposto no restaurante da National Gallery), e "O Sonho de José" (1991). O primeiro constitui uma revisitação do quadro do pintor renascentista Carlo Crivelli "Madona della Rondine" e simultaneamente uma recriação das "vidas de santos" contadas num livro do sec. XIII , "The Golden Legend", por Jacobus de Vargine. Porém, são as vidas prosaicas das mulheres e o seu quotidiano que este tríptico nos conta e os modelos utilizados pela artista, foram, como muito frequentemente em Rego, mulheres do povo portuguesas. Assim, o leitmotif do quadro é uma transfiguração, que se constitui numa subversiva desconstrução do original, para assim realizar, citando, "uma homenagem a estas mulheres fortes e perseverantes ... às suas vidas duras e à sua capacidade de resistir e sobreviver" (McEwen, 1997: 255). Processo muito próximo daquele que Linda Hutcheon define como o processo paródico, "a double process of installing and ironizing" ["um processo duplo de instaurar e ironizar"], que traduz o modo como representações do presente derivam de representações anteriores e as consequências ideológicas que derivam simultaneamente da continuidade e da diferença" (Hutcheon, 1998: 84).
Por outro lado, a constatação de que o tropo da ironia traduz a "arte de sugerir alternativas", tal como diz Germaine Greer (Greer, 1991: 36), surge-nos com total evidência no outro quadro referido, "O Sonho de José". Tratando-se de uma revisitação da "Visão de S. José", quadro de Philippe de Champaigne, datado de 1638, apresentando a Anunciação a Maria, Rego realiza aqui uma série de inversões profanas, apresentando uma jovem mulher, vestida com as tradicionais cores das vestes da Virgem, o azul, o branco e o dourado, pintando um José humana e rotundamente adormecido, sendo retratado por uma mulher. Por sua vez, o anjo Gabriel, do lado da jovem artista, parece estar a anunciar a esta a "boa nova", isto é, e recorrendo de novo às palavras da própria Paula Rego: " (...) que o poder que ela tem, é o de ser uma mulher a pintar o sonho de um homem" (apud Macedo, 1999: 13). Em termos de História de arte, estamos assim no pólo oposto aos clássicos nús de mulheres de Titiano a Velázquez, Manet, Gauguin, Courbet, etc. Como diz John McEwen, Rego inverte "a situação habitual do artista pintando um modelo (um homem pintando uma mulher bela, núa de preferência), quando aqui temos uma mulher artista pintando um homem que está longe de ser belo" (McEwen, 1992).
Rego afirma em toda a aparente simplicidade de um processo que sabemos não ser simples: "O meu tema é a minha história, a história que eu tenho para contar e a minha maneira de a contar" (apud Macedo, 1999: 12). Contudo, na sua obra, ela questiona continuamente os chamados "corolários naturais" da diferença entre os géneros, bem assim como a "ordem natural das coisas", que se traduz na passividade, dependência e submissão das mulheres, desmistificando assim o discurso estético e desmascarando o seu papel eminentemente ideológico e as relações de poder que aí se encontram camufladas, tal como Linda Nochlin escreve (Nochlin, 1991: 14).


2- "Da Mulher-Cão ..."


As minhas pinturas são pinturas feitas por uma artista mulher. As histórias que eu conto são histórias que as mulheres contam. O que é isso de uma arte sem género? Uma arte neutra?Isso não faz sentido, pois não? (...) Há histórias à espera de serem contadas, e que nunca o foram antes. Têm a ver com tudo aquilo sobre o que jamais se ousou tocar - a experiência das mulheres.

Assim afirma Paula Rego numa entrevista aquando de uma exposição colectiva que reuniu oito pintoras inglesas em torno do tema "From the Interior. Female Perspectives on Figuration" (Roberts, 1997: 85).
A consciência de que a arte não pertence ao género neutro, isto é, "de que tem sexo", citando a autora, é fundamental para entender a estética de Paula Rego. A expressão mais clara disso mesmo é-nos dada através da série de pinturas "Mulher-Cão" ("Focinhar", "Bad Dog", "Latindo"), (1994), que exibe a junção do sublime e do grotesco da forma mais perturbadora. Sobre a criação destas imagens a artista diz-nos:

A "Mulher-Cão é a coisa que eu tenho mais orgulho de ter feito, porque é uma mulher sozinha, mas que ainda morde. Uma mulher só, num canto, contra a parede, que não pode fugir, mas que arreganha o dente e que morde! Morde até ao fim, luta até ao fim, apanha pancada, mas lá vai lutando sempre! E depois, essa "Mulher-Cão" apareceu, "apareceu-me"! Essas coisas acontecem, não é? E então eu pensei, esta mulher vai levar-me a sítios onde eu nunca fui, vai ser o meu guia. E assim foi. E comecei através da "Mulher-Cão" a tocar partes da minha vida que eu não tinha tido nunca coragem, nem oportunidade de fazer, nem sabia como lá chegar. Mas com ela, lá fui fazendo: o "Bad Dog", a humilhação, o amor, a lealdade e a submissão cúmplice das mulheres, um certo masoquismo das mulheres, no amor e na traição … O casamento é uma espécie de mortalha, não é? É a "mulher-bicho" que tem força através da sua animalidade, é a parte física, dos instintos, que é muito importante! O silêncio tácito das mulheres, a sua "endurance" e o seu sentido de honra. (apud Macedo, 1999: 13)

A outra face da Mulher-Cão, que poderemos ler como o sublime do instinto, são as Avestruzes, grotescas e desajeitadas imagens de mulheres maduras, inspiradas no filme "Fantasia" de Walt Disney. A propósito destas Rego afirma: "As avestruzes são a sobrevivência, são um pouco ridículas, mas é preciso sobreviver de qualquer maneira!" (Ibidem).
Através destas imagens que provocatoriamente recusam os estereótipos do feminino, Rego toca domínios "perigosos" e sensíveis, tais como o lado mais recôndito dos instintos - a perversidade, o horror e o fascínio que o abjecto exerce sobre o humano, propondo assim uma representação profundamente transgressiva da outridade da mulher.
O cariz mais aberta e polemicamente subversivo da arte de Rego ficou bem patente ao público aquando da exposiçao da sua série "Sem Título" de 1999, exibindo imagens pungentes de mulheres jovens, ostentando profunda dor e resignação após situações facilmente identificáveis como resultantes de abortos clandestinos. Deverá acrescentar-se que esta série foi pintada no período em que se debateu no Parlamento Português a despenalização criminal da "interrupção voluntária da gravidez", precisamente com o fim de pôr termo a situações primitivas de exploração física e psicológica das mulheres e abusos de poder a vários níveis. A palavra mais usada pela pintora para se referir a estes quadros é compaixão, que neste contexto, e em meu entender, deve ser lida como o gesto nobre e corajoso de tornar pública a exploração do que se quer privado e silenciado. Tornar gritante o silêncio a que se obrigam as "vergonhas privadas", parece ser a mensagem destas imagens pintadas a cores berrantes em ambientes de quartos frios e impessoais e improvisadas camas metálicas de hospital.


3- "... à Mulher-Anjo"- O meu tema é a minha história ...

Como tem sido frequentemente referido pela crítica, Paula Rego é uma contadora de "histórias visuais", desde as ilustrações dos "Nursery Rhymes" ingleses onde, tal como Marina Warner afirmou, Rego reinterpretou as velhas rimas e as inocentes canções de embalar com um "sarcasmo pós-freudiano", passando pelas suas peculiares leituras "às avessas" de contos de fadas, lendas e mitos, até, mais recentemente, à sua encenação visual de O Crime do Padre Amaro de Eça de Queiroz (1880). Esta série, de 1997 e 1998, representa uma ousada primeira incursão da pintora no cânone literário português. "Escolhi um romance muito português porque achei que precisava de actividade social, em vez das coisas que se encontram nos contos de fadas. (...) O Crime do Padre Amaro é uma crítica à sociedade, muito bem observada e deliciosa de ler, mas acima de tudo é uma história de amor. Comove-me sempre muitíssimo", afirma no catálogo da exposição".
Comentando um dos quadros, "O Embaixador de Jesus" (1997), o mais elaborado do ponto de vista do detalhe das imagens, a pintora diz: "As imagens neste quadro combinam umas com as outras. Entrelaçam-se, prendem-se umas às outras num drama visual. Eu ponho as coisas instintivamente. O romance é só um ponto de partida, um detonador; depois as imagens invadem tudo, como uma caixa de surpresas, como bonecas russas." E acrescenta, comentando outro quadro desta série: "Coisas visuais, elementos formais, criam aquilo a que eu chamo uma história" ("Mãe", 1997).
"Drama visual" será porventura a mais adequada definição da revisitação do romance que a pintora encena nos seus quadros, criando, através da constante sobreposição de imagens e de um excesso aparentemente desordenado de motivos e personagens, essa atmosfera de duplicidades e ambiguidades consentidas que marcam o tom do romance e o sarcasmo queiroziano.
"Eu gosto de vestir as pessoas nos quadros. Podemos apertar-lhes a cintura com um cinto, desabotoar-lhes a frente do vestido ou fechá-lo até cima, para que a pessoa fique encerrada no seu trajo - é mesmo como vestir bonecas quando somos pequenos", afirma ainda a pintora no catálogo da exposição. O fascínio das roupas, a profusão de "rendas e veludo" parecem ter seduzido a pintora a criar uma "fantasia de máscaras", tal como ela diz, usando a expressão "a costume drama". Porém, o fetiche das roupas está presente no próprio romance: é Amaro quem, na semi-obscuridade da sacristia, sugere a Amélia que vista o manto novo da Virgem Maria, para ver como lhe fica; Amélia quem fica embevecida pela sotaina negra de Amaro, enquanto este se sobressaltara ao vislumbrar pela primeira vez Amélia na sua alva combinação.
As imagens visuais reproduzem a atmosfera sufocante do romance, o enredo da corrupção moral do clero e do provincianismo burguês. Porém, as imagens excedem a narrativa na fixação da obsessão do desejo, na representação cénica das duas forças antagónicas, a paixão e a repressão desta através da censura e do congelamento das emoções e do imobilismo. Daí a fantasia do jogo e da mascarada: a exorbitância de "rendas e veludos"; Amaro androginamente vestido de saia de xadrez, deitado entre as mulheres, buscando protecção ou refúgio. (vide "Entre As Mulheres") Imagem esta que vem também do romance, Amaro "mosquinha-morta", "enredador", "o padreca". "Gosto muito da relação entre eles. Da vulnerabilidade e patetice dela, do egoísmo e manha dele", afirma Rego.
Amélia é uma personagem ambivalente na obra de Rego; não surge como vítima indefesa, presa da luxúria masculina, surge antes como duplamente prisioneira: prisioneira do seu desejo e por isso cúmplice no pacto com Amaro, e prisioneira da teia social, dos "pseudo-bons costumes" e da moral de fachada. Uma vez mais os comentários ou legendas da pintora sob cada um dos quadros traduzem a sua profunda compreensão das tensões da obra, constituindo autênticos subtextos críticos ou metanarrativas em relação à narrativa do romance. A propósito de "A Cela" (1997), diz-nos: "Quando Amaro era pequeno costumava brincar com as figuras da Virgem e dos Santos, como se fossem bonecas"; sobre "A Capoeira" (1998), "Este é um quadro de bastidores, uma mafia de mulheres... um certo toque de ritual bárbaro, ... um livro mágico"; "À Janela" (1997), "Amélia que olha ... procura um pouco de esperança, uma lufada de ar fresco, em vez dessa coisa morta que tem com Amaro... está a ver se consegue sobreviver. Ela está na prisão. Estão todos na prisão". Este quadro, uma magnífica evocação de Rego de uma imagem de Balthus, "Jeune-Fille à la Fenêtre" (1955), constitui uma citação quase literal de Eça, traduzindo a expectância de Amélia, incapaz já de camuflar a avançada gravidez, perscrutando o horizonte possível através da janela - seu único contacto permitido com o mundo, ensaiando ainda uma última sedução.
Finalmente, o "Anjo" (1998). A imagem do Anjo-Mulher, metonímia de todas as outras, encerra magistralmente todo este "drama estático", com a ambiguidade e a profunda carga simbólica que contém: simultaneamente "um anjo da guarda e um anjo vingador", tal como diz a pintora, "a sua missão é proteger e vingar", visto carregar consigo os símbolos da Paixão (de Cristo? da Mulher?) - numa mão a espada e na outra a esponja do fel. É a última imagem desta série e, sem dúvida, a imagem que queremos reter, após este perturbador desfilar de figurações do feminino _ do sofrimento `a sobrevivência, da luta à humilhação, da resignação ao desejo e à paixão. Figura tutelar, a robustez do Anjo-Mulher inspira força e o enigma do seu sorriso deixa antever uma promessa de vigilância. Ficamos com as palavras da pintora:

Ela apareceu, ganhou forma e não sabemos o que se lhe seguirá.



Ana Gabriela Macedo


BIBLIOGRAFIA

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Corpo, velocidade e dissolução (de Herberto Helder a Al Berto)



ouve-se um corpo atravessar a noite em excesso de velocidade
Al Berto

qualquer vagar é de muita pressa e toda a rapidez/ é lenta (...)
Herberto Helder


As três dimensões articuladas no título desta comunicação - corpo, velocidade e dissolução - podem ser consideradas determinantes tanto na poesia de Herberto Helder como na de Al Berto, embora o modo como são elaboradas na obra de cada um destes autores seja substancialmente distinto. Se parece legítimo dizer-se que, em qualquer dos dois poetas, a experiência do corpo é inseparável de uma espécie de efeito de dissolução da identidade, a verdade é que os motivos e as consequências desta experiência não são situáveis ao mesmo nível. Por outro lado, enquanto em Al Berto a ideia de velocidade é situada no âmbito de uma vivência urbana, relativamente à qual a poesia se apresenta, em grande parte, como um contraponto estruturante, já em Herberto Helder, a experiência da velocidade coincide essencialmente com um efeito de intensificação discursiva e é inseparável do acto de escrita.
Porquê comparar dois universos poéticos tão notoriamente diferentes? - Desde logo porque ambos os autores recorrem a uma tematização frequente do corpo em articulação com efeitos de velocidade e de dissolução da identidade, mas, principalmente, porque o modo como o fazem é tanto mais distinto quanto releva de campos de referência genericamente articuláveis com uma possível distinção entre Modernidade e Pós-modernidade estética. Nesse sentido, compreender tudo quanto separa Al Berto de Herberto Helder, mesmo quando aparentemente desenvolvem uma temática afim, poderá contribuir para um melhor entendimento dos modos pelos quais tem evoluído a construção da subjectividade na poesia recente. Digamos que enquanto em Herberto Helder a dissolução da identidade acontece no contexto de uma busca de conhecimento totalizante e até unitivo do mundo, consistindo num efeito inseparável da própria experiência da escrita, em Al Berto, é a escrita que procura constituir-se como um reduto de sobrevivência perante um efeito de dissolução da identidade que de algum modo lhe é exterior ou mesmo alheio; digamos ainda que compreender esta diferença pode permitir acompanhar todo um quadro de transformação que ultrapassa as fronteiras das obras dos dois poetas, o que conduz, entre outras coisas, a pensar a hipótese de uma reconfiguração do lirismo na poesia das últimas décadas do século XX. E que é esse o sentido último deste estudo.
Herberto Helder (n.1930) começa a publicar ainda em finais dos anos 50 - O Amor em Visita data de 1958, sendo depois incluído em A Colher na Boca, em 1961-, Al Berto (1948-1997) publica À Procura do Vento Num Jardim de Agosto em 1977, e talvez seja algures no intervalo geracional definido por estas duas publicações inaugurais que a poesia portuguesa - ou pelo menos alguma poesia portuguesa, já que há que ter presente que a contemporaneidade não implica forçosamente a coetaneidade - irá desenvolver caminhos diferentes.

1.
Acompanhar o percurso de Al Berto tal como ele se desenha em O Medo, obra que actualmente reúne o trabalho poético compreendido entre 1974 e 1997, é como atravessar uma paisagem progressivamente devastada, frequentada por corpos sem nome, habitantes de um tecido urbano que raramente se constitui como um lugar. Do ponto de vista da experiência do sujeito, daquele que por vezes a si mesmo se designa pelo nome de Al Berto, é ainda caminhar da euforia da possiblilidade do encontro, com o outro e consigo mesmo, para uma solitária melancolia, cada vez mais envolvente e desamparada.
Al Berto fala-nos de uma "geração de subúrbio" (458), de "uma vida de infinito caos" (459), das "tribos do Néon" (369), isto é, de vidas em carne-viva (e não é sem motivo que aludo ao título de um filme de Almodôvar), de gente que faria suas as palavras que o poeta atribui a Modigliani - "sempre vivi como um meteoro" (423).
Que esta vertigem da velocidade deve ser articulada com a vivência urbana é o que nos diz uma das Três Cartas da Memória das Índias, ao contrapor dois modos de viver um mesmo tempo que, afinal, apenas uma relação diferente com o espaço reconfigura de forma sufocante:

Vai certamente estranhar esta quase interminável carta
pai
há muito que o silêncio se fez entre nós
o pai com os seus trabalhos por aí onde o tempo custa a passar
e eu pobre de mim
tão aflito me sinto com a velocidade desse mesmo tempo
a cidade é veloz
não sei se o pai poderá compreender esta velocidade
aqui tudo se tornou dia após dia mais doloroso
(...) (391)

É a cidade que torna o tempo veloz e é a velocidade que rasga o tempo numa ferida dolorosa. Porque a velocidade é antropofágica: devora o contorno humano dos seres e dos lugares. Ficam os corpos sem nome, desabitados e sem habitação, errantes, quase sempre desencontrados em encontros demasiado rápidos, demasiado fugazes: "a nossa morada" - escreve Al Berto - "é o speed engolido à pressa num asilo psiquiátrico" (124).
Não admira, pois, que, neste contexto, a escrita seja identificada precisamente pela perda de velocidade, constituindo um movimento que quase poderíamos ver em câmara lenta: "dentro do quarto o tempo parou. Só eu continuo acordado e escrevo" (101). A escrita é um reduto salvífico, uma "morada de silêncio" (252), um "simulacro da vida" (232), um lugar onde ainda é possível continuar a viver sob um efeito de desaceleração. Num registo quase diarístico, Al Berto confessa: "escrevo contra o medo" (227). Como se toda a tragédia estivesse para lá da literatura. E ainda no mesmo registo:

reparo que o pouco que consegui escrever até hoje foi escrito nas salas de espera dos aeroportos caminhos-de-ferro e cais de embarque. ali sentado espero-me. escrevo-te. depois guardo os manuscritos nos cacifos automáticos. visito cidades. esqueço-os propositadamente para poder recomeçá-los. arrasto comigo a melancolia destes sinais destes fragmentos de uma memória destroçada.
mudei de casa. mudei de casa trinta e duas vezes desde que aqui cheguei. moro num apartamento vazio. tenho o mercado a dois passos da porta da rua. improvisei uma mesa. Stooges no máximo. chove. não sei onde estou. cheguei aqui durante a noite. (...) (43)

Encontramos nesta passagem todos os sintomas dessa espécie de doença civilizacional a que Paul Virilio (1999: 35ss) chamou poluição dromosférica (de dromos, corrida). Trata-se de uma forma de agressão do espaço-tempo do nosso planeta, de uma perda de profundidade de campo, decorrente do desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação. Entre sujeito e objecto perde-se uma dimensão essencial - o trajecto -, uma vez que os meios de comunicação e de telecomunicação reduzem a exterioridade espacial e temporal, levando o tempo a contrair-se num presente sem memória. Na poesia de Al Berto, ainda não estamos perante a imagem do "sedentário contemporâneo da grande metrópole", apresentado por Paul Virilio como vítima da poluição dromosférica, já que esta, parodoxalmente, imobilizaria "o corpo desse ser válido superequipado de próteses interactivas cujo modelo veio a ser o inválido equipado para controlar o meio envolvente sem se deslocar fisicamente" (Idem, 48). Apesar de Al Berto nos falar também de "imensas salas com computadores [que] anunciam o fim deste milénio. [e de] outras máquinas que, a pouco e pouco, adquirem espantosas memórias ao roubarem a memória de quem dorme" (356), estamos sobretudo perante o que poderíamos considerar um processo de degenescência da figura do nómada. Esse que escreve em trânsito, detendo-se "num espaço que não pode definir-se nem como espaço de identidade, nem relacional nem histórico", isto é, no que Marc Augé (1995: 83) chama "não lugares" (aeroportos, caminhos-de-ferro, cais de embarque), esse, não corresponde já à imagem do nómada porque perdeu a "arte do trajecto". Abandona os manuscritos em cacifos automáticos, muda de cidade, muda trinta e duas vezes de casa, mas considera-se sempre sem morada. Com a memória destroçada, chega de noite não sabe aonde e, tendo perdido as coordenadas do mundo, sente que se perdeu de si mesmo também. Por conseguinte, não é já o nómada, é uma figuração da errância. Algures, num "não lugar", escreve: "espero-me". E é significativo que Al Berto use em algumas imagens a gasolina (101), matéria combustível e condição da velocidade, ligando-a à paixão e ao sofrimento do corpo. O nómada pressuporia outro tempo porque, para ele, entre chegar e partir há a memória e a vastidão do mundo, enquanto na poesia de Al Berto nem mesmo atravessar o rio num cacilheiro pode já trazer de volta essa lenta "arte do trajecto":

como se isso resolvesse alguma coisa ia e vinha
sem nunca ter a sensação de quem chega ou de quem parte
sentia-me como que a boiar num tempo remoto
e de mais longe ainda que o meu próprio corpo podia lembrar
um cheiro inquietante a sal devassava-me a intimidade do sonho
corroía-me a memória (395)

Apesar das frequentes referências lexicais ao nomadismo, é o corpo urbano e errante que está obsessivamente presente na poesia de Al Berto:

desfilam imagens dos quartos que conhecemos
nossos corpos perdem-se nos corredores subterrâneos das cidades.
sobre o rosto os dedos imperfeitos da noite descobrem outro rosto.
alucinação, labirinto de sexos, lume branco
ouve-se um corpo atravessar a noite em excesso de velocidade (123)

A imagem apocalíptica do fim-de-século e do fim do milénio, tanto mais presente em O Medo quanto mais a cronologia da obra se aproxima do ano 2000, tem muito que ver com a perplexidade perante um mundo que não vale sequer a pena tentar compreender: "sinto-me vazio, hoje", escreve Al Berto, "a compreensão do mundo escapa-me, pouco me importo com isso" (168).
De facto, a escrita parece desistir aqui de qualquer propósito gnoseológico, e mesmo o questionamento ontológico tende a reduzir-se a uma esfera muito circunscrita que talvez seja mais rigoroso situar num campo essencialmente afectivo ou sentimental, mais conforme com aquele que traz "uma esferográfica cravada no coração" (499). Trata-se em grande parte da autocentrada busca de um nome, da tentativa de constituir uma identidade de suporte para um corpo "oco" (101). Podemos situar neste contexto a obsessão al bertiana dos espelhos e a compulsão da escrita. "No espelho já não sei quem sou" (59), reconhece Al Berto, mas as palavras colam-se à vida e modificam o sujeito que escreve sem conferir-lhe a unicidade que procura: "as palavras mudas escondem o medo de um dia deixar de saber quem sou por trás de tanta máscara sobreposta" (451).
A máscara esconde o corpo vazio, imagem que é frequente nas páginas de O Medo e surge associada à errância. Mesmo em situações de encontro, os corpos permanecem sem nome (101) e o que os distingue é habitualmente um adjectivo de sentido disfórico. São "corpos (...) flutuantes" (113), "corpos magoados" (114), "alucinados" (115), "putrefactos" (126), "fragmentados" (191). Esse corpo sem nome é, muitas vezes, "doente" (230, 355), "precário" (489), "hirto" (513):

... teu nome, pronuncia teu nome para que seja impossível esquecer-me do meu. diz-me o teu nome de ontem, quando éramos o reflexo exacto um do outro. Toca-me o rosto com o teu nome, ou pousa-o sobre as mãos; debruça-te para dentro de mim e deixa que o segredo do tempo fulmine os ossos. (450)

É do outro que é esperado o reconhecimento identitário, a voz que pronuncie um nome (225); mas esse outro, tantas vezes referido simplesmente como outro corpo, e, logo, sem nome também, não poderá pronunciá-lo. E daí os registos diarísticos de O Medo, nos quais aquele que escreve inscreve, no próprio corpo do texto, um nome emblematicamente seccionado, Al Berto (360), "tentando reunir as partes dispersas de [seu] corpo doído" (225).
Eis porque me parece que a escrita corresponde em Al Berto a uma desaceleração que tenta responder aos efeitos dissolventes da velocidade sobre o sujeito que, escrevendo, procura essencialmente uma assinatura. Veja-se como, em Meu Fruto de Morder Todas as Horas, a sequência de fragmentos intitulados "Filme na Rua Zero L." nos apresenta duas personagens individualizadas por designações que mais do que um nome são o seu encobrimento - "loirinho" e "pirolito". De resto, a única menção à identidade destas figuras surge num contexto de vigilância policial e não numa situação relacional: "a bófia aproxima-se identifica-os" (117).
Em Al Berto, a escrita trabalha sobre a errância e o anonimato na tentativa de construção de um lugar onde seja possível inscrever um nome. O registo lírico e a reconfiguração autobiográfica ou pseudobiográfica parecem constituir-se como uma estratégia de resposta a essa falta e, nessa medida, como formas de recuperação da memória, quer dizer, formas de alongamento do tempo.

2.
Na poesia de Herberto Helder podemos observar um movimento de sentido contrário na medida em que, aí, é o mundo que é lento enquanto a escrita procura uma velocidade intensiva. Se é igualmente perceptível um efeito de dissolução da identidade, tem razão Luís Miguel Nava em fazer notar que este decorre do "esvaziamento psicológico e biográfico do eu, cujos sentimentos são homologados a forças e energias que dele fazem uma espécie de palco onde os fluxos vitais adquirem um sentido cósmico" (Nava, 1991: 8). Na verdade, Herberto Helder consegue criar uma autêntica poética de intensificação, na qual, sob uma densíssima rede de homologias, tudo se reflecte em tudo, como se tudo relevasse da mesma energia cósmica. O poema emerge, assim, de um momento fenomenológico, no qual não se situa mimeticamente face à experiência porque constitui a própria experiência, experiência essa que se torna indissociável da formulação discursiva que o poema é. Nos inícios da década de 60, Herberto Helder dá a esse entendimento da escrita o nome de "poemacto". Poderíamos recordar Rilke quando afirmava que os versos não são sentimentos, mas sim experiências, todavia Herberto Helder é mais preciso quando retoma esta ideia para defender que "a poesia não é feita de sentimentos e pensamentos mas de energia e do sentido dos seus ritmos" (Helder, 1995: 144).
Não se trata de representar o mundo, mas sim de produzir uma realidade discursiva simultaneamente concordante e dissonante face a outras realidades, pela qual, mais do que reconhecer os nossos mundos habituais nos é dado aceder à sua experiência verbal expansiva. "A escrita" - afirma Herberto Helder - "representa-se a si, e a sua razão está em dar razão às inspirações reais que evoca.// E produz uma tensão muito mais fundamental do que a realidade". Mas, evitando a possibilidade equívoca de tal afirmação poder conduzir ao entendimento da poesia como algo que ficasse fora, ou para lá da realidade, acrescenta: "É nessa tensão real criada em escrita que a realidade se faz. O ofuscante poder da escrita é possuir uma capacidade de persuasão e violentação de que a coisa real se encontra subtraída (...)// Chega a mão a escrever negro e conforme vai escrevendo mais negra se torna" (Helder, 1995: 56-7).
Tocamos aqui um aspecto essencial da poética helderiana: o entendimento da escrita poética como um processo de intensificação da experiência do que chamamos mundo. Herberto Helder apropria-se de toda uma tradição "xamânica, órfica, pitagórica, gnóstica, alquímica", como é minuciosamente observado por Joaquim Manuel Magalhães (1999: 140), pelo que trabalha o verso numa escala cosmogónica. Trata-se, para usar uma expressão do poeta, de constituir um "cosmos esplícito", e é neste contexto que devemos compreender a velocidade na sua poesia, bem como a frequente tematização do corpo:

No âmbito das funções e valores simbólicos, o poema é o corpo da transmutação, a árvore do ouro, vida transformada: a obra. O poema faz-se com o corpo, no corpo, de baixo até cima, sagitariamente. Ou num ininterrupto circuito zodiacal. (Helder, 1978: 21)

Em Herberto Helder, como em Luiza Neto Jorge que partilha das mesmas referências estético-literárias da Modernidade pós-baudelairiana, reactivadas no contexto neo-vanguardista da década de 60, escrever com o corpo significa adquirir uma velocidade situável num plano puramente discursivo, e o processo de dissolução da identidade deve, por conseguinte, ser considerado nesse mesmo plano. Sintomático dessa relação com a vertigem da escrita é o modo como ambos recorrem a imagens do corpo em rotação.
A obra de Herberto Helder pretende, como diria Jean-François Lyotard (1989: 106), "testemunhar do indeterminado existente", e, sob múltiplos aspectos, ela deve então adquirir uma velocidade intensiva pois é essa velocidade que lhe confere uma espessura de "coisa": "Pense-se ainda que os substantivos não são palavras,/mas objectos distribuídos;/ e os adjectivos, por exemplo: as qualidades e circunstâncias da colocação dos objectos no espaço" (Helder, 1995: 150). Era essa mesma velocidade intensiva que Campos observava em Whitman e era ainda ela que Pessoa procurava através da análise das sensações até à vertigem da desagregação do eu. A obra que procura testemunhar do "indeterminado existente" é aquela que responde à impossibilidade de representação pondo-se a si mesma em evidência, exibindo a sua espessura discursiva. Nesse processo, a sua relação com o mundo é essencialmente metonímica: ela mostra-se como entidade discursiva, como experiência, "amostra-de-mundo" que ao mundo pertence: como "amostra-de-mundo", permite-nos olhá-lo na sua face mais intensa. Pensemos na definição medieval de Deus como um círculo cujo centro está em toda a parte e a circunferência em lado nenhum. Como escreve Herberto Helder (1995; 143), numa imagem que de certo modo também subentende a velocidade (aqui a da luz): "( A respeito da poesia pode ainda dizer-se: - A lâmpada/ faz com que se veja a própria lâmpada. E também à volta.)".
Por conseguinte, o corpo é, neste caso, o lugar de uma profundíssima cumplicidade ontológica com o universo, e as insistentes referências de Herberto Helder às aberturas do corpo - as narinas, a boca, a vagina, o ânus, os poros - frequentemente em contextos onde encontramos também referências ao ouro, de evidentes conotações alquímicas, bem como as inúmeras referências às artérias, ao fluxo sanguíneo e às vísceras derivam desta correlação. Trata-se de uma concepção aproximável da visão esotérica do corpo, a qual pressupõe a anatomia subtil, isto é, o entendimento do corpo como um lugar percorrido por energias subtis e análogas ao cosmos. É neste contexto que deve entender-se também a sobrevalorização das mãos, ou da cabeça, com todos os seus orifícios, bem como o modo fragmentado como o corpo é referido em Herberto Helder. Este processo de desagregação do corpo supõe um sujeito que participa da essência das coisas e que, por isso, é reconduzido à unidade primordial. "Enquanto duplos microcósmicos do Macrocosmos os nossos corpos contêm todas as energias do universo" (Gil, 1997: 92) e, no quadro desse entendimento, a dissolução da identidade não constitui exactamente uma perda porque releva de um estado unitivo com o todo, sendo condição de uma forma de conhecimento totalizante e absoluto que Mircea Eliade designou por "ênstase", isto é, experiência da união entre sujeito e objecto num quadro de relação não opositiva. Compreende-se, assim, que Herberto Helder fale frequentemente do corpo e do lugar, mas não de corpos ou de lugares, como faz Al Berto. Em O Medo, a visão fragmentária do corpo, bem como a referência às suas aberturas, surge normalmente associada a uma relação erótica. Só nesse contexto, completamente diverso, poderíamos falar não de ênstase mas da procura do êxtase. É, aliás, num quadro de encontro amoroso que Al Berto faz o segunte registo diarístico; "escrevo pouco, prefiro viver" (228). Embora tudo em volta desta frase sirva para lhe limitar a amplitude e o sentido...

3.
Procurando agora sistematizar as diferenças observáveis nestas duas poéticas, será de sublinhar que Al Berto é levado a retomar uma tradição intimista, produzindo uma reconfiguração lírica ou mesmo confessional que está completamente ausente em Herberto Helder, facto que deveremos associar a um retorno a uma poética de representação, embora sem esquecer que o tão citado "regresso às histórias simples", de Al Berto, se inscreve num livro cujo título genérico é Uma existência de Papel. Mas, seja como for, parece inegável que, enquanto Herberto Helder identifica experiência e poesia, Al Berto combina a poesia com uma experiência que se pretende situada também além da literatura, por referência a uma circunstancialidade urbana reconhecível pelo leitor. É desse lado que nasce o medo, e é aí que o sujeito situa a vertigem da velocidade e a impossibilidade de ancoragem da identidade. Todavia, não podemos esquecer que estamos perante um eu cujo estar no mundo é inseparável da discursivização poética de um mundo, isto é, perante um registo que não é pré-moderno e que, quando muito, será pós-moderno: apesar das sugestões aparentemente diarísticas de Al Berto, trata-se muito mais de situar a escrita na vida imediata - e da tematização de uma circunstancialidade que une o relevante e o irrelevante precisamente porque nos fala de um espaço sem "centro" - do que de supor uma vida autonomizável dos processos da sua discursivização. Nessa medida, Al Berto é e não é um nome de Alberto Pidwell Tavares.
Por outro lado, observa-se ainda o que se poderá considerar uma retracção gnoseológica: o mundo em Al Berto obedece a uma figuração rizomática, labiríntica, é apenas apreensível de modo circunscrito, e o retorno de uma subjectividade de matizes vivenciais - que, aliás, estrutura uma das linhas de desenvolvimento da poesia portuguesa depois dos anos 70 - constitui provavelmente uma resposta a essa crise do fundamento, tal como a disposição melancólica da poesia de Al Berto e de outros parece confirmar. Inversamente, a escrita de Herberto Helder parte da convicção de que há a possibilidade de um "centro", embora só a poesia possa determiná-lo, o que sugere que a sua escrita aceita a hipótese de um princípio totalizador, aliás mesmo cosmogónico, se bem que no quadro de negatividade que define a Modernidade estética já como superação da Modernidade em sentido filosófico.
Compreende-se assim que encontremos em Al Berto versos que falam da escrita como "a única mentira suportável" (350), quando, para Herberto Helder, a poesia só poderia ser uma presença insuportavelmente verdadeira. Tal como se compreende que, embora ambos os poetas manifestem interesse pelo cinema, Al Berto valorize mais a narratividade fílmica, isto é, a possiblidade de contar, ainda que se trate muitas vezes de narrar fragmentariamente, enquanto Herberto Helder se interessa principalmente pela montagem, no sentido neo-vanguardista em que a encontramos em Jean-Luc Godard, por exemplo. Situar metonimicamente o poema como uma amostra-de-mundo pressupõe o desinteresse por uma lógica de representação, facto que pode explicar toda a diferença existente entre o discursivismo hermético de Herberto Helder e a heterogeneidade, também discursivista embora noutros moldes, dos registos coloquiais ou até vulgares, mas também elegíacos e nostalgicamente poéticos de Al Berto.
Se Herberto Helder está próximo de Godard, a poesia de Al Berto terá mais afinidades com a vertigem urbana dos filmes de Almodôvar. Ou com os de David Cronemberg, o realizador de Crash, certamente o mais emblemático filme sobre a relação entre velocidade e dissolução na sociedade contemporânea. De resto, a questão da identidade está, como se sabe, obsessivamente presente nestes dois últimos cineastas.
Uma coisa é poder observar, como faz Eduardo Prado Coelho, "essa espécie de inocência cósmica em que tudo vai ser possível, o princípio de expansão a energia circulante", que definiria a poesia de Herberto Helder, para quem, como diz ainda o mesmo ensaísta, "é a matéria que pensa" (Coelho, 1994: 40); outra coisa será a percepção de ter vindo depois, e ter encontrado ainda a memória dessa possibilidade, mas em pedaços. O espaço urbano e suburbano da poesia de Al Berto magoa-nos porque é isso que significa.
Para o universo poético de Herberto Helder, o sujeito dominador da metafísica ocidental não passa de um parêntese sem relevância. A sua poesia situa-se simultaneamente antes e depois, valorizando o poético em detrimento do filosófico. Nesse aspecto, não está muito longe da de Al berto. Mas se Herberto Helder nos coloca na tradição da Modernidade estética, uma obra como O Medo é claramente mais tardia, o que, aliás, não significa nenhum corte absoluto. Como sugere Marc Augé ao propor o conceito de "sobremodernidade", poderíamos dizer que o campo de referências de Al Berto não é exactamente novo, todavia recupera situações "que [agora] se converteram em modalidades mais prosaicas, num destino comum" (Augé, 1995: 98). É nesse contexto que "o regresso às histórias simples" e "a esferográfica no coração" reconfiguram o lirismo sob um princípio de particularização, mas não excluem a experiência de dissolução do sujeito tal como a Modernidade pós-baudelairiana a formulara.
Acentuando esta cumplicidade divergente entre dois poetas de linhagens tão diferentes, gostaria de terminar com dois poemas.
De Herberto Helder:

Sei às vezes que o corpo é uma severa
massa oca, com dois orifícios
nos extremos:
a boca, e aos pés a dança com a coroa de labaredas
- a cratera de uma estrela.
E que me atravessa um protoplasma
primitivo,
uma electricidade do universo,
uma força.
E por esse canal calcinado sai
um ruído rítmico, uma fremente
desarrumação do ar, o verbo sibilante,
vento:
o som onde começa tudo - o som.

Completamente vivo. (Helder, 1996: 422)

De Al Berto:

(...)
mas se ao morrer o abrissem ao meio
nada encontrariam
nem vísceras nem ossos nem sangue
apenas poalha de água
e a dor da infindável travessia (553)



Rosa Maria Martelo



Bibliografia
1.
Al Berto (2000), O Medo, 2ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim.
Helder, Herberto (1977), Cobra, Lisboa, & Etc.
- - (1978), O Corpo o Luxo a Obra, Lisboa, & Etc.
- - (1995), Phtomaton & Vox, 3ª ed., Lisboa, Assírio & Alvim.
- - (1996) Poesia Toda, Lisboa, Assírio & Alvim.
2.
Augé, Marc (1995), Los "No Lugares", Espacios del anonimato, Barcelona, Editorial Gedisa.
Belo, Ruy (1984), "Poesia e Arte Poética em Herberto Helder", Obra Poética, vol. 3, Lisboa, Presença.
Coelho, Eduardo Prado (1994) "Velocidade e efeitos especiais", JL: Jornal de Letras, Artes e Ideias, 26 de Outubro de 1994, pp. 40-41.
Gil, José (1997), Metamorfoses do Corpo, 2ª ed., Lisboa, Relógio d'Água.
Jorge, Luiza Neto (1993), Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim.
Lyotard, Jean-François (1989), O Inumano, Lisboa, Editorial Estampa [1988].
Magalhães, Joaquim Manuel (1999), Rima Pobre: Poesia Portuguesa de Agora, Lisboa, Presença.
McCorkle, James (1997), "The Inscription of Postmodernism in poetry", in Hans Berthens e Douwe Fokkema (ed.), International Postmodernism, Amsterdam/Philadelphia, John Benjamins Publishing Company, pp. 43-50.
Nava, Luís Miguel (1991), "Introdução", Antologia de Poesia Portuguesa 1960-1990, Lisboa / Leuven, Caminho e Leuvense Schrijversaktie, 1991.
Virilio, Paul (1999), La Vitesse de Libération, Paris, Galilée.




Corpo, enunciação e identidade na poesia de Luiza Neto Jorge

Jamais je n'obéirai.
Je répète: jamais. À mon insu, jamais.

Luiza Neto Jorge


1.
Propor um estudo dos processos de enunciação e construção da identidade na poesia de Luiza Neto Jorge articulando-os com o papel desempenhado pelo corpo e pelo erotismo na escrita desta autora é algo semelhante a propor uma dupla travessia do silêncio. Se, desde logo, como lembra Georges Bataille (1975: 276), a experiência erótica nos pede o silêncio, também não é raro encontrarmos, por parte dos leitores de Luiza Neto Jorge, a expressão do reconhecimento de uma espécie de mutismo que seria desencadeado pela leitura desta obra poética. António Ramos Rosa dá-nos um bom exemplo deste tipo de atitude quando afirma ser quase impossível comentar um texto como "Dezanove Recantos" (Rosa, 1991: 89), e o mesmo acontece com Joaquim Manuel Magalhães quando este considera que "O Ciclópico Acto" representa um dos casos mais extremos de irredutibilidade à paráfrase na poesia portuguesa recente (Magalhães, 1981: 212).
Por conseguinte, vão-se somando dificuldades: como falar da presença de uma questão que apela ao silêncio numa obra que suscita a mudez nos seus leitores? Apenas me tranquiliza um pouco saber que, finalmente, nem Bataille nem os dois poetas que referi se resignaram à tentação do silêncio. Todavia, é inegável que os textos actualmente reunidos no volume Poesia (1960-1989)1 resistem ao comentário e à paráfrase. Resistem-lhes duplamente: porque funcionam como um "corpo verbal", no sentido em que Ponge utiliza esta expressão para assinalar a restituição à linguagem da sua densidade de "coisa"2, e, mais ainda, porque esse "corpo verbal" é erotizado. E, como qualquer corpo, e acima de todos o corpo erótico, estes textos ostentam uma espessura irredutível, uma opacidade que, no caso da poesia de Luiza Neto Jorge, é exibida insistentemente perante o leitor, envolvendo-o nesse nó de silêncio de que há pouco falava. O que não impede que esta poesia funcione, simultaneamente, como o detonador de uma insurreição total e implacável, assim se abrindo também num insistente apelo ao leitor.

2.
Não esqueçamos que quando Luiza Neto Jorge começa a publicar, no limiar dos anos sessenta, a poética neo-realista evidenciava notórios sintomas de esgotamento, e que prosseguir com uma escrita onde a acção do texto sobre o mundo fosse suportada por uma poética de representação fazia já muito pouco sentido. Como Gastão Cruz então deixava claro, ao referir-se a um dos jovens poetas que por essa altura ainda tentavam relançar uma poesia militante (da qual a edição dos três números de Poemas Livres, 1962-3-8, seria emblema), esse caminho tendia a cair "no formulário, na demagogia fácil, na gasta simbologia de madrugadas, auroras, mãos dadas" (Cruz, 1963: 19). Reportando-se a um caso concreto, mas tendo em vista o problema mais lato do empenhamento e da representação na obra literária, Gastão Cruz constatava: "uma linguagem tópica, insuportável e a insistência num esperançoso optimismo, por completo estereotipado, asfixiam impiedosamente a intenção social" (ibidem).
Se refiro esta posição de Gastão Cruz, expendida numa polémica em torno da questão do Realismo dois anos depois da publicação colectiva de Poesia-61, é por me parecer que ela ajuda a recordar que, no dealbar dos anos 60, poetas como Gastão Cruz, ou Luiza Neto Jorge, ou Maria Teresa Horta, ou mesmo Fiama Hasse Pais Brandão, não excluíam da sua poesia uma intenção social. Todavia, esses poetas estavam "contra os poetas retóricos sociais post-Novo Cancioneiro" (Brandão, 1989: 1) porque estes lhes pareciam principalmente retóricos e sociais, e porque agora a revolta se tornava inseparável da revolução da própria linguagem poética. Recordando as palavras de Luiza Neto Jorge, queria-se a "revolta das palavras, apelando para um novo discurso" (apud Cruz, 1973: 164).
Fosse como fosse, e esta questão irá assumir matizes muito variáveis e evoluções diversas, a recusa do empenhamento explícito ou militante não excluía a possibilidade de desenvolver uma poética de resistência segundo a qual, mais do que designar um mundo havido ou por haver, o poema iria desconstruir os discursos legitimadores de uma sociedade repressiva, mas exibindo, para isso, a sua materialidade discursiva. É precisamente neste ponto que os jovens poetas de 61, entre os quais se conta Luiza Neto Jorge, irão aproximar-se daquele que então era o mais rigoroso e simultaneamente o menos panfletário dos poetas de formação marxista, Carlos de Oliveira.
Como resumiria Eduardo Lourenço, vinha-se, nesses anos, de uma literatura ética, mas "com o grave defeito de servir em grande parte exactamente a mesma ética do mundo que se propunha 'transformar'", e caminhava-se para a "neutralidade ética inegável, ou antes, [para a] indiferença ética profunda" (Lourenço, 1966: 928). Nesta translação, o ensaísta via o sinal de que um "terramoto invisível" acabara de atingir certeiramente um quadro cultural de valores essencialmente retrógrados, pelo qual se definiria certa "mitologia espiritual portuguesa". Numa opção plena de sentido, Eduardo Lourenço concretizava esta perspectiva acumulando exemplos da "evaporação da ética tradicional sob o plano erótico", que observava nos romances então escritos por mulheres.
Julgo que a fortíssima erotização da poesia de Luiza Neto Jorge, inseparável da opacidade transgressora da sua escrita, tem muito que ver com esta mudança e com a maneira como o cepticismo de Gastão Cruz perante a tentativa de formação de uma terceira vaga neo-realista abre para as reflexões de Eduardo Lourenço: a superação da subordinação da função social da arte a uma poética de representação subjaz à construção de uma linguagem que, sendo libertária e demolidora, o é pondo em evidência a sua espessura discursiva e recusando tanto os modelos facilmente reconhecíveis e descodificáveis pelos leitores, que o realismo privilegiara, quanto a base ética que os suportava.

3.
Escrita na sua maior parte entre as décadas de 60 e 70, a poesia de Luiza Neto Jorge é inegavelmente uma poesia de insurreição, de revolta, e o lugar que nela é ocupado pelo corpo e pela sexualidade contribui decisamente para isso, permitindo aproximá-la não só do quadro da luta feminista que acompanha os anos em que vai sendo publicada mas também do quadro mais amplo da resistência ao sistema de valores promovido pelo Estado Novo. Todavia, se a compararmos com a poesia de Maria Teresa Horta, por exemplo, veremos que, enquanto esta recorre ao erotismo para desenvolver uma temática e construir consistentemente um sujeito desejante feminino em contraponto à imagem atávica da mulher como objecto de desejo, no caso de Luiza Neto Jorge, é a própria escrita (enquanto acto e matéria) que é erotizada.
Embora o erotismo possa, também no seu caso, constituir uma temática importante, ele é, acima de tudo, o motor e o modelo de uma condição discursiva de excesso que permite situar, o poema fora da (e contra a) ordem social. De resto, sendo a experiência da escrita apresentada como homóloga da experiência erótica, e sendo esta situada do lado da desordem, ambas se equivalem como práticas excessivas, de transgressão e de contrapoder. Veja-se como alguns dos versos de "Partitura", onde o sentido literal do título se reelabora face à presença da palavra "partos" no final do poema, ligam indistintamente o sexo, a arte, o excesso e a renovação:

(...)
Sexo a ser eixo
peixe por glande
glândula língua
harpa harpão

Acmé a ser arte
prática nas partes

Partos.
("Partitura", 208)

Assim, compreende-se que, contrariamente ao que acontece nos poemas coetâneos de Maria Teresa Horta, nem sempre seja fácil isolar, nesta poesia, a singularidade lírica que habitualmente acompanha a poesia erótica. A voz incendiária que diz falar "com uma agulha de sangue/ a coser-me todo o corpo/ à garganta" ("Poema", 57) multiplica-se numa sucessão muito variável de condições enunciativas cujo denominador comum é o de sempre se produzir o que, no mesmo poema, se designa como "um traço de alarme". Vale a pena recordar o contexto destes versos:

I
Esclarecendo que o poema
é um duelo agudíssimo
quero eu dizer um dedo
agudíssimo claro
apontado ao coração do homem

falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta

e a esta terra imóvel
onde já a minha sombra
é um traço de alarme
(...)

Repare-se que, antecedida pela identificação do poema com "um duelo" e com "um dedo agudíssimo", a palavra "falo", que tenderemos a ler como forma verbal marcando a presença do sujeito, pode ainda ser lida como um nome, acrescentando à fala poética um sentido eminentemente corporal no qual a identidade do sujeito tende a dissolver-se.
Pode acontecer, em alguns poemas, que uma enunciação na primeira pessoa bem como a presença daquela vaga circunstancialidade que se traduz na velada conjuntura de tempo e situação própria do texto poético concorram para a construção de uma singularidade lírica.3 Todavia, isso apenas acontece intermitentemente, e é mais comum que a enunciação faça surgir uma subjectividade difusa e instável, cujo aparecimento (e esbatimento) deve ser posto em relação com a aceleração discursiva que o poema procura atingir. Aliás, essa singularidade lírica está até mais presente nos poemas finais, coligidos em A Lume, já ensombrados pela doença e pela morte, do que nos poemas tematicamente mais caracterizáveis como eróticos. Note-se, porém, que, nos últimos poemas, assistimos também à perda e à degradação do corpo e que estas são acompanhadas por uma desaceleração discursiva. Como refere Luís Miguel Nava, é "à (...) diminuição da força do desejo [que] corresponde uma maior 'clareza' da escrita" (Nava, 1989: 61), facto que podemos observar tanto no plano enunciativo como semântico e sintáctico.
Julgo que a premeditada ausência de "clareza" que caracteriza os poemas mais erotizados se deve à acção conjunta de dois factores: por um lado, deve-se ao facto de apenas intermitentemente se constituir a singularidade lírica que a presença do erotismo deixaria esperar, já que esta se dilui num jogo de permanentes deslocamentos enunciativos; por outro lado, decorre da ambiguidade e plurissignificação inerentes à permanente intersecção sémica que, apoiada por uma sintaxe fracturada e elíptica, cruza as isotopias do corpo e do erotismo com outros campos que recobrem uma mundividência plural e muito abrangente.
Recordo alguns versos de "O Ciclópico Acto" (219):

(...)
seu cinto de
castigar-te telefonando cingindo-te pela voz e daí
para a língua daí para aquilo que já é conivente
como o são pai e mãe, Diónisos, Eros, Ariosto, Abelardo
Todos!

Uns cremes, espumas, espermas, cuspos - outro:
mais barato, mais húmido, mais tu-me
-fac-to comovente a simples confissão: "teu, tua".

Traz-me o pequeno-almoço entre vinhas virgens!
Traz-mo de rastos! Um golo dessa bacia
de água viva!

Inicia-se, portanto, o cicló-
pico acto.

António Ramos Rosa (1991: 88) compara os versos de Luiza Neto Jorge com os ziguezagues de um relâmpago: "porque nascem do próprio sangue" - diz - "da febre, da desmesura, de uma violência radical, da loucura, da solidão impossível". Na verdade, eles exprimem, exibem em si mesmos (pela justaposição convulsiva de imagens em complexas redes analógicas, geradas, por exemplo, por relações paronímicas) a própria gestação de um sentido que é também corporal, pois dá conta do refluxo de uma infralíngua sobre a linguagem verbal. Ora, como nos mostra José Gil (1997: 46), a infralíngua corresponde à "inscrição-sedimentação [da linguagem verbal] no corpo e nos seus órgãos" e, quando o seu refluxo se dá, induz

sobre a linguagem e o intelecto puro (...) movimentos subtis, associações, impregnações, contaminações semânticas imperceptíveis mas decisivas que testemunham a transformação do espírito numa espécie de grande felino capaz de intuições, pressentimentos, fulgurações, "sextos sentidos" que só o pensamento por imagens pode fornecer. (ibidem)

Num poema cujo título é, precisamente, "Dos felinos" (129), Luiza Neto Jorge dá-nos conta desta sobreposição de uma linguagem corporal à linguagem verbal, valorizando o que, recorrendo a uma palavra sua, se poderia chamar uma lógica de "transfusões":

Nenhum vocábulo detém o gato
e o sublinha, lacónico,
no choro, no cio.

Completo gemido, curvatura, elo.
Despojado, num túnel,
da pele, do pêlo.

Só lhe ganha o homem
ganhando erecção, êxtase,
circulação do sangue
orientada.

Deveremos então concluir que, no caso de Luiza Neto Jorge, se trata menos de escrever sobre o corpo do que de escrever com o corpo; e que mais do que de poesia erótica devemos falar, no seu caso, de uma escrita erotizada. É porque a escrita se apresenta como uma experiência de desejo que o corpo verbal do poema pode mesmo transformar-se no próprio objecto de desejo:

Entra na maneira de eu mostrar o poema
é um verbo andante imprime velocidade
a tudo quanto sinto até ser veloz
sentir até senti-lo
(ao poema) amante.
(...)

("Aventura, um verbo anda, é uma pessoa", 142)

Assim, não podemos surpreender-nos quando um dos poemas mais intensamente erotizados, "O Ciclópico acto", apresenta uma enunciação que percorre todas as pessoas, incluindo a primeira mas sem deter-se nela, ao mesmo tempo que oscila entre o masculino e o feminino, como se recorresse ao modo dramático. Este poema apresenta-nos fragmentos de vozes em permanente trânsito entre si, permutáveis, dialogantes, vozes indistintas, transbordantes. Para usar uma palavra do poema, "tu-me-factas", de certo modo, feitas também de ti e de mim. Veja-se, por exemplo, a passagem de uma dupla terceira pessoa (ora feminina, ora masculina) à segunda, permitindo uma possível inclusão parentética da primeira pessoa entre elas, nestes versos:

(...)
É uma solidão (orgíaca) a de ambos
(querê-la!) impele-a, hasteia-o
(querê-lo! requerê-la!)
Tu mesmo aéreo, e tuas altas partes.
De perto vigiando o ar: o avião de Tróia.
Absorvente e absorto; inspirador e expirante

uma solidão (bis)
(218)

Podemos observar, neste excerto, aquele tipo de flutuação do processo enunciativo, característico da modernidade estética, no qual Kristeva (1974: 316-317) vê a recusa da identidade tal como é colocada pela distribuição eu/tu/ele e, portanto, uma recusa do simbólico, relevando da chora ou anarquia pulsional (em última análise, da irrupção da infralíngua). Tal flutuação deve ser articulada com as frequentes referências ao aparecimento na escrita de um outro ou de uma outra - o "duplo", o "gémeo", a "irmã", a "Mestra" - cuja presença intermitente, atravessada por silêncios, rupturas e indistinções, resulta da aceleração discursiva que reconfigura o sujeito numa identidade mais intensa, flexível e reflexiva. O texto que abre O seu a seu Tempo, é sob este ponto de vista, particularmente elucidativo:

de cima, de antes, de mais fundo
me suspendo, de um jardim, de um espelho
em reflexão, de um automóvel de corrida,
de mais fundo me suspendo, internamente,
de antes, de cima, do mais fundo estado,
como um dente a entrar no alimento,
como um rio a entrar no estado sólido,
reconditamente entro, reconcentro
os vários sítios no meu centro,
em reflexão.
(134)


4.
Embora possamos encontrar algumas referências libertárias à sexualidade feminina na poesia de Luiza Neto Jorge, a verdade é que não são muitas as vezes em que esta questão é enfatizada. Poderia referir-se "Balada apócrifa" (46), onde uma alusão anti-militarista (à Guerra Colonial, presumivelmente) se combina com esta exortação: "Colhei os lírios do corpo/ meninas de saia travada"; poderia referir-se também a forma como o estereótipo da feminilidade sexualmente passiva é visado nos versos "maria pobre de corpo/ não tem mãos", de "Canção para o dia igual" (29), ou no estatuto de "não-senhora" ou "não-menina" reivindicado em "Exame". Um poema anuncia mesmo que, subvertendo o ritual do casamento virginal, "a mulher calçou-se de branco/ para a ressurreição" ("Ritual", 39). E talvez o poema mais explícito sob este ponto de vista seja "Metamorfose":

(...)
Foi quando a mulher
se fez cabra
no compasso de fúria
contra a batuta
dos chefes de orquestra
que escorrem notas
dos gritos da música

Fez-se cabra
desatenta de origens
cabra com fardo de cio
no peso das tetas
cabra bem cabra
adoçando a fome
na flor dos cardos

(Quando a cabra
voltar mulher -
- ressureição)
(65)

Apesar deste tipo de ocorrências, não há grande insistência explícita na emancipação de um eros feminino, tal como nem sempre é nítida a construção de uma singularidade lírica claramente identificável como feminina nos poemas mais erotizados. E, no entanto, a poesia de Luiza Neto Jorge concorre decisivamente para o quadro libertário que, deste ponto de vista, se desenha nos anos 60 e 70, desde logo porque justapõe uma assinatura de mulher a uma poesia que Luís Miguel Nava (1989: 54) classifica, e com razão, como "uma escrita onde o sexo se celebra como em nenhuma outra em língua portuguesa".
A relação entre o título "SO-NETO JORGE, Luiza" e o soneto que assim se intitula mostra, em "mise-en-abîme", a importância dessa relação entre o nome e a obra. Neste poema, cujo título funde o nome da autora com o nome da forma poética utilizada, como se o texto de algum modo constituísse, em auto-retrato, uma identidade marcada pela pujança erótica presente no poema, não é possível estabelecer fronteiras entre a construção dessa identidade e o próprio acto de escrita. Todavia, é para o nome da autora que o título remete. Recordo a primeira estrofe: "A silabar que o poema é estulto/ o amado abre os dentes e eu deslizo; sismos, orgasmos tremem-lhe no olhar/ enquanto eu, quase a rimar, exulto." (209). Inversamente, num dos poemas finais, "Minibiografia", que tanto pelo título como pela temática parece constituir uma revisitação deste, a degradação do corpo manifesta-se como retracção do desejo e da escrita:

Não me quero com o tempo nem com a moda
Olho como um deus para tudo de alto
Mas zás! do motor corpo o mau ressalto
Me faz a todo o passo errar a coda.

Porque envelheço, adoeço, esqueço
Quanto a vida é gesto e amor é foda;
Diferente me concebo e só do avesso
O formato mulher se me acomoda.
(...)
(254)

Toda a escrita de Luiza Neto Jorge se constrói sobre um jogo de velocidades intensivas que inscreve o corpo na linguagem. É uma educação pelo corpo, visando a sabotagem do mundo de evidências carregado pela língua. Veja-se, por exemplo, a importância de que se reveste a oposição entre o corpo nu (sexualizado e "insurrecto" na sua "carne ardida") e "os corpos vestidos" (socializados): o homem "enquanto corpo vestido/ seca descora ao sol" (61), o que o veste é um "fato inútil" (77).
O corpo ensina a insurreição porque lhe pertence "a língua mais oculta" (228), a língua da poesia, uma infralíngua, vinda de dentro, feita de lacunas, interrupções, saltos, associações, distorções, suspensões, mas também de vislumbres, de "flashes". Nesse processo, a singularidade lírica desfoca-se numa identidade poética plural e difusa, ao mesmo tempo que língua e vida se intensificam e se reúnem, indistintas, enquanto manifestações da mesma energia circulante. Pela aceleração discursiva que proporciona, a homologia entre o erotismo e a escrita dilui as fronteiras entre o eu e o outro, o masculino e o feminino, e cria uma identidade múltipla e intensiva, nascida do excesso de sentir e de sentido. Mas, simultaneamente, alguns registos permitem que o leitor construa vagas projecções autobiográficas (por exemplo, títulos como Silves 83, "Anos Quarenta, os Meus", ou os já referidos "SO-NETO JORGE, Luiza" e "Minibiografia"), recordando-lhe que esta escrita de desejo, que passa "viva e rápida" atingindo o mundo por inteiro, é assinada por uma mulher que era poeta e se chamava Luiza Neto Jorge. "Théâtre de la désobéissance" é o título de um dos seus poemas. Poderia ter sido o título de toda a sua obra.


Rosa Maria Martelo




NOTAS
1 Todas as referências à poesia de Luiza Neto Jorge, bem como a paginação indicada no texto, remetem para o volume Poesia (1960-89), Lisboa, Assírio & Alvim, 1993.
2 Cf. citação e comentário em Michel Collot (1997: 190).
3 Sobre esta questão, veja-se Dominique Rabaté - "Enonciation poétique, énonciation lyrique" (in Rabaté (org.), 1996: 70-71).

BIBLIOGRAFIA

1.
Jorge, Luiza Neto (1993), Poesia, Lisboa, Assírio & Alvim.

2.
Bataille, Georges (1975), L'Érotisme, Paris, UGE, 10/18 [1ª ed.: 1957].

Brandão, Fiama Hasse Pais (1989), entrevista, in A Phala, nº 15, Julho a Setembro.

Collot, Michel (1997), La matière-émotion, Paris, PUF.

Cruz, Gastão (1963), "Ainda alguns problemas do realismo", Diário de Lisboa, supl. "Vida Literária e Artística", 25 de Julho.
- - - (1973), "O que é a poesia de vanguarda? A propósito de Dezanove Recantos", A Poesia Portuguesa Hoje, Lisboa, Plátano.

Gil, José (1997), Metamorfoses do Corpo, 2ª ed., Lisboa, Relógio d'Água.

Kristeva, Julia (1974), La Révolution du Langage Poétique, Paris, Seuil.

Lourenço, Eduardo (1966), "Uma literatura desenvolta ou os filhos de Álvaro de Campos", O Tempo e o Modo, nº 42, Outubro.

Magalhães, Joaquim Manuel (1981), "Luiza Neto Jorge", Os Dois Crepúsculos, Lisboa, A Regra do Jogo.

Nava, Luís Miguel Nava (1989), "Acmé a ser arte - Alguns aspectos da poesia de Luiza Neto Jorge", Colóquio/Letras, nº 108, Março-Abril.

Rabaté, Dominique (org.) (1996), "Luiza Neto Jorge ou a insurreição apocalíptica", A Parede Azul, Lisboa, Caminho.