Corpo, velocidade e dissolução (de Herberto Helder a Al Berto)
ouve-se um corpo atravessar a noite em excesso de velocidade
Al Berto
qualquer vagar é de muita pressa e toda a rapidez/ é lenta (...)
Herberto Helder
As três dimensões articuladas no título desta comunicação - corpo, velocidade e dissolução - podem ser consideradas determinantes tanto na poesia de Herberto Helder como na de Al Berto, embora o modo como são elaboradas na obra de cada um destes autores seja substancialmente distinto. Se parece legítimo dizer-se que, em qualquer dos dois poetas, a experiência do corpo é inseparável de uma espécie de efeito de dissolução da identidade, a verdade é que os motivos e as consequências desta experiência não são situáveis ao mesmo nível. Por outro lado, enquanto em Al Berto a ideia de velocidade é situada no âmbito de uma vivência urbana, relativamente à qual a poesia se apresenta, em grande parte, como um contraponto estruturante, já em Herberto Helder, a experiência da velocidade coincide essencialmente com um efeito de intensificação discursiva e é inseparável do acto de escrita.
Porquê comparar dois universos poéticos tão notoriamente diferentes? - Desde logo porque ambos os autores recorrem a uma tematização frequente do corpo em articulação com efeitos de velocidade e de dissolução da identidade, mas, principalmente, porque o modo como o fazem é tanto mais distinto quanto releva de campos de referência genericamente articuláveis com uma possível distinção entre Modernidade e Pós-modernidade estética. Nesse sentido, compreender tudo quanto separa Al Berto de Herberto Helder, mesmo quando aparentemente desenvolvem uma temática afim, poderá contribuir para um melhor entendimento dos modos pelos quais tem evoluído a construção da subjectividade na poesia recente. Digamos que enquanto em Herberto Helder a dissolução da identidade acontece no contexto de uma busca de conhecimento totalizante e até unitivo do mundo, consistindo num efeito inseparável da própria experiência da escrita, em Al Berto, é a escrita que procura constituir-se como um reduto de sobrevivência perante um efeito de dissolução da identidade que de algum modo lhe é exterior ou mesmo alheio; digamos ainda que compreender esta diferença pode permitir acompanhar todo um quadro de transformação que ultrapassa as fronteiras das obras dos dois poetas, o que conduz, entre outras coisas, a pensar a hipótese de uma reconfiguração do lirismo na poesia das últimas décadas do século XX. E que é esse o sentido último deste estudo.
Herberto Helder (n.1930) começa a publicar ainda em finais dos anos 50 - O Amor em Visita data de 1958, sendo depois incluído em A Colher na Boca, em 1961-, Al Berto (1948-1997) publica À Procura do Vento Num Jardim de Agosto em 1977, e talvez seja algures no intervalo geracional definido por estas duas publicações inaugurais que a poesia portuguesa - ou pelo menos alguma poesia portuguesa, já que há que ter presente que a contemporaneidade não implica forçosamente a coetaneidade - irá desenvolver caminhos diferentes.
1.
Acompanhar o percurso de Al Berto tal como ele se desenha em O Medo, obra que actualmente reúne o trabalho poético compreendido entre 1974 e 1997, é como atravessar uma paisagem progressivamente devastada, frequentada por corpos sem nome, habitantes de um tecido urbano que raramente se constitui como um lugar. Do ponto de vista da experiência do sujeito, daquele que por vezes a si mesmo se designa pelo nome de Al Berto, é ainda caminhar da euforia da possiblilidade do encontro, com o outro e consigo mesmo, para uma solitária melancolia, cada vez mais envolvente e desamparada.
Al Berto fala-nos de uma "geração de subúrbio" (458), de "uma vida de infinito caos" (459), das "tribos do Néon" (369), isto é, de vidas em carne-viva (e não é sem motivo que aludo ao título de um filme de Almodôvar), de gente que faria suas as palavras que o poeta atribui a Modigliani - "sempre vivi como um meteoro" (423).
Que esta vertigem da velocidade deve ser articulada com a vivência urbana é o que nos diz uma das Três Cartas da Memória das Índias, ao contrapor dois modos de viver um mesmo tempo que, afinal, apenas uma relação diferente com o espaço reconfigura de forma sufocante:
Vai certamente estranhar esta quase interminável carta
pai
há muito que o silêncio se fez entre nós
o pai com os seus trabalhos por aí onde o tempo custa a passar
e eu pobre de mim
tão aflito me sinto com a velocidade desse mesmo tempo
a cidade é veloz
não sei se o pai poderá compreender esta velocidade
aqui tudo se tornou dia após dia mais doloroso
(...) (391)
É a cidade que torna o tempo veloz e é a velocidade que rasga o tempo numa ferida dolorosa. Porque a velocidade é antropofágica: devora o contorno humano dos seres e dos lugares. Ficam os corpos sem nome, desabitados e sem habitação, errantes, quase sempre desencontrados em encontros demasiado rápidos, demasiado fugazes: "a nossa morada" - escreve Al Berto - "é o speed engolido à pressa num asilo psiquiátrico" (124).
Não admira, pois, que, neste contexto, a escrita seja identificada precisamente pela perda de velocidade, constituindo um movimento que quase poderíamos ver em câmara lenta: "dentro do quarto o tempo parou. Só eu continuo acordado e escrevo" (101). A escrita é um reduto salvífico, uma "morada de silêncio" (252), um "simulacro da vida" (232), um lugar onde ainda é possível continuar a viver sob um efeito de desaceleração. Num registo quase diarístico, Al Berto confessa: "escrevo contra o medo" (227). Como se toda a tragédia estivesse para lá da literatura. E ainda no mesmo registo:
reparo que o pouco que consegui escrever até hoje foi escrito nas salas de espera dos aeroportos caminhos-de-ferro e cais de embarque. ali sentado espero-me. escrevo-te. depois guardo os manuscritos nos cacifos automáticos. visito cidades. esqueço-os propositadamente para poder recomeçá-los. arrasto comigo a melancolia destes sinais destes fragmentos de uma memória destroçada.
mudei de casa. mudei de casa trinta e duas vezes desde que aqui cheguei. moro num apartamento vazio. tenho o mercado a dois passos da porta da rua. improvisei uma mesa. Stooges no máximo. chove. não sei onde estou. cheguei aqui durante a noite. (...) (43)
Encontramos nesta passagem todos os sintomas dessa espécie de doença civilizacional a que Paul Virilio (1999: 35ss) chamou poluição dromosférica (de dromos, corrida). Trata-se de uma forma de agressão do espaço-tempo do nosso planeta, de uma perda de profundidade de campo, decorrente do desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação. Entre sujeito e objecto perde-se uma dimensão essencial - o trajecto -, uma vez que os meios de comunicação e de telecomunicação reduzem a exterioridade espacial e temporal, levando o tempo a contrair-se num presente sem memória. Na poesia de Al Berto, ainda não estamos perante a imagem do "sedentário contemporâneo da grande metrópole", apresentado por Paul Virilio como vítima da poluição dromosférica, já que esta, parodoxalmente, imobilizaria "o corpo desse ser válido superequipado de próteses interactivas cujo modelo veio a ser o inválido equipado para controlar o meio envolvente sem se deslocar fisicamente" (Idem, 48). Apesar de Al Berto nos falar também de "imensas salas com computadores [que] anunciam o fim deste milénio. [e de] outras máquinas que, a pouco e pouco, adquirem espantosas memórias ao roubarem a memória de quem dorme" (356), estamos sobretudo perante o que poderíamos considerar um processo de degenescência da figura do nómada. Esse que escreve em trânsito, detendo-se "num espaço que não pode definir-se nem como espaço de identidade, nem relacional nem histórico", isto é, no que Marc Augé (1995: 83) chama "não lugares" (aeroportos, caminhos-de-ferro, cais de embarque), esse, não corresponde já à imagem do nómada porque perdeu a "arte do trajecto". Abandona os manuscritos em cacifos automáticos, muda de cidade, muda trinta e duas vezes de casa, mas considera-se sempre sem morada. Com a memória destroçada, chega de noite não sabe aonde e, tendo perdido as coordenadas do mundo, sente que se perdeu de si mesmo também. Por conseguinte, não é já o nómada, é uma figuração da errância. Algures, num "não lugar", escreve: "espero-me". E é significativo que Al Berto use em algumas imagens a gasolina (101), matéria combustível e condição da velocidade, ligando-a à paixão e ao sofrimento do corpo. O nómada pressuporia outro tempo porque, para ele, entre chegar e partir há a memória e a vastidão do mundo, enquanto na poesia de Al Berto nem mesmo atravessar o rio num cacilheiro pode já trazer de volta essa lenta "arte do trajecto":
como se isso resolvesse alguma coisa ia e vinha
sem nunca ter a sensação de quem chega ou de quem parte
sentia-me como que a boiar num tempo remoto
e de mais longe ainda que o meu próprio corpo podia lembrar
um cheiro inquietante a sal devassava-me a intimidade do sonho
corroía-me a memória (395)
Apesar das frequentes referências lexicais ao nomadismo, é o corpo urbano e errante que está obsessivamente presente na poesia de Al Berto:
desfilam imagens dos quartos que conhecemos
nossos corpos perdem-se nos corredores subterrâneos das cidades.
sobre o rosto os dedos imperfeitos da noite descobrem outro rosto.
alucinação, labirinto de sexos, lume branco
ouve-se um corpo atravessar a noite em excesso de velocidade (123)
A imagem apocalíptica do fim-de-século e do fim do milénio, tanto mais presente em O Medo quanto mais a cronologia da obra se aproxima do ano 2000, tem muito que ver com a perplexidade perante um mundo que não vale sequer a pena tentar compreender: "sinto-me vazio, hoje", escreve Al Berto, "a compreensão do mundo escapa-me, pouco me importo com isso" (168).
De facto, a escrita parece desistir aqui de qualquer propósito gnoseológico, e mesmo o questionamento ontológico tende a reduzir-se a uma esfera muito circunscrita que talvez seja mais rigoroso situar num campo essencialmente afectivo ou sentimental, mais conforme com aquele que traz "uma esferográfica cravada no coração" (499). Trata-se em grande parte da autocentrada busca de um nome, da tentativa de constituir uma identidade de suporte para um corpo "oco" (101). Podemos situar neste contexto a obsessão al bertiana dos espelhos e a compulsão da escrita. "No espelho já não sei quem sou" (59), reconhece Al Berto, mas as palavras colam-se à vida e modificam o sujeito que escreve sem conferir-lhe a unicidade que procura: "as palavras mudas escondem o medo de um dia deixar de saber quem sou por trás de tanta máscara sobreposta" (451).
A máscara esconde o corpo vazio, imagem que é frequente nas páginas de O Medo e surge associada à errância. Mesmo em situações de encontro, os corpos permanecem sem nome (101) e o que os distingue é habitualmente um adjectivo de sentido disfórico. São "corpos (...) flutuantes" (113), "corpos magoados" (114), "alucinados" (115), "putrefactos" (126), "fragmentados" (191). Esse corpo sem nome é, muitas vezes, "doente" (230, 355), "precário" (489), "hirto" (513):
... teu nome, pronuncia teu nome para que seja impossível esquecer-me do meu. diz-me o teu nome de ontem, quando éramos o reflexo exacto um do outro. Toca-me o rosto com o teu nome, ou pousa-o sobre as mãos; debruça-te para dentro de mim e deixa que o segredo do tempo fulmine os ossos. (450)
É do outro que é esperado o reconhecimento identitário, a voz que pronuncie um nome (225); mas esse outro, tantas vezes referido simplesmente como outro corpo, e, logo, sem nome também, não poderá pronunciá-lo. E daí os registos diarísticos de O Medo, nos quais aquele que escreve inscreve, no próprio corpo do texto, um nome emblematicamente seccionado, Al Berto (360), "tentando reunir as partes dispersas de [seu] corpo doído" (225).
Eis porque me parece que a escrita corresponde em Al Berto a uma desaceleração que tenta responder aos efeitos dissolventes da velocidade sobre o sujeito que, escrevendo, procura essencialmente uma assinatura. Veja-se como, em Meu Fruto de Morder Todas as Horas, a sequência de fragmentos intitulados "Filme na Rua Zero L." nos apresenta duas personagens individualizadas por designações que mais do que um nome são o seu encobrimento - "loirinho" e "pirolito". De resto, a única menção à identidade destas figuras surge num contexto de vigilância policial e não numa situação relacional: "a bófia aproxima-se identifica-os" (117).
Em Al Berto, a escrita trabalha sobre a errância e o anonimato na tentativa de construção de um lugar onde seja possível inscrever um nome. O registo lírico e a reconfiguração autobiográfica ou pseudobiográfica parecem constituir-se como uma estratégia de resposta a essa falta e, nessa medida, como formas de recuperação da memória, quer dizer, formas de alongamento do tempo.
2.
Na poesia de Herberto Helder podemos observar um movimento de sentido contrário na medida em que, aí, é o mundo que é lento enquanto a escrita procura uma velocidade intensiva. Se é igualmente perceptível um efeito de dissolução da identidade, tem razão Luís Miguel Nava em fazer notar que este decorre do "esvaziamento psicológico e biográfico do eu, cujos sentimentos são homologados a forças e energias que dele fazem uma espécie de palco onde os fluxos vitais adquirem um sentido cósmico" (Nava, 1991: 8). Na verdade, Herberto Helder consegue criar uma autêntica poética de intensificação, na qual, sob uma densíssima rede de homologias, tudo se reflecte em tudo, como se tudo relevasse da mesma energia cósmica. O poema emerge, assim, de um momento fenomenológico, no qual não se situa mimeticamente face à experiência porque constitui a própria experiência, experiência essa que se torna indissociável da formulação discursiva que o poema é. Nos inícios da década de 60, Herberto Helder dá a esse entendimento da escrita o nome de "poemacto". Poderíamos recordar Rilke quando afirmava que os versos não são sentimentos, mas sim experiências, todavia Herberto Helder é mais preciso quando retoma esta ideia para defender que "a poesia não é feita de sentimentos e pensamentos mas de energia e do sentido dos seus ritmos" (Helder, 1995: 144).
Não se trata de representar o mundo, mas sim de produzir uma realidade discursiva simultaneamente concordante e dissonante face a outras realidades, pela qual, mais do que reconhecer os nossos mundos habituais nos é dado aceder à sua experiência verbal expansiva. "A escrita" - afirma Herberto Helder - "representa-se a si, e a sua razão está em dar razão às inspirações reais que evoca.// E produz uma tensão muito mais fundamental do que a realidade". Mas, evitando a possibilidade equívoca de tal afirmação poder conduzir ao entendimento da poesia como algo que ficasse fora, ou para lá da realidade, acrescenta: "É nessa tensão real criada em escrita que a realidade se faz. O ofuscante poder da escrita é possuir uma capacidade de persuasão e violentação de que a coisa real se encontra subtraída (...)// Chega a mão a escrever negro e conforme vai escrevendo mais negra se torna" (Helder, 1995: 56-7).
Tocamos aqui um aspecto essencial da poética helderiana: o entendimento da escrita poética como um processo de intensificação da experiência do que chamamos mundo. Herberto Helder apropria-se de toda uma tradição "xamânica, órfica, pitagórica, gnóstica, alquímica", como é minuciosamente observado por Joaquim Manuel Magalhães (1999: 140), pelo que trabalha o verso numa escala cosmogónica. Trata-se, para usar uma expressão do poeta, de constituir um "cosmos esplícito", e é neste contexto que devemos compreender a velocidade na sua poesia, bem como a frequente tematização do corpo:
No âmbito das funções e valores simbólicos, o poema é o corpo da transmutação, a árvore do ouro, vida transformada: a obra. O poema faz-se com o corpo, no corpo, de baixo até cima, sagitariamente. Ou num ininterrupto circuito zodiacal. (Helder, 1978: 21)
Em Herberto Helder, como em Luiza Neto Jorge que partilha das mesmas referências estético-literárias da Modernidade pós-baudelairiana, reactivadas no contexto neo-vanguardista da década de 60, escrever com o corpo significa adquirir uma velocidade situável num plano puramente discursivo, e o processo de dissolução da identidade deve, por conseguinte, ser considerado nesse mesmo plano. Sintomático dessa relação com a vertigem da escrita é o modo como ambos recorrem a imagens do corpo em rotação.
A obra de Herberto Helder pretende, como diria Jean-François Lyotard (1989: 106), "testemunhar do indeterminado existente", e, sob múltiplos aspectos, ela deve então adquirir uma velocidade intensiva pois é essa velocidade que lhe confere uma espessura de "coisa": "Pense-se ainda que os substantivos não são palavras,/mas objectos distribuídos;/ e os adjectivos, por exemplo: as qualidades e circunstâncias da colocação dos objectos no espaço" (Helder, 1995: 150). Era essa mesma velocidade intensiva que Campos observava em Whitman e era ainda ela que Pessoa procurava através da análise das sensações até à vertigem da desagregação do eu. A obra que procura testemunhar do "indeterminado existente" é aquela que responde à impossibilidade de representação pondo-se a si mesma em evidência, exibindo a sua espessura discursiva. Nesse processo, a sua relação com o mundo é essencialmente metonímica: ela mostra-se como entidade discursiva, como experiência, "amostra-de-mundo" que ao mundo pertence: como "amostra-de-mundo", permite-nos olhá-lo na sua face mais intensa. Pensemos na definição medieval de Deus como um círculo cujo centro está em toda a parte e a circunferência em lado nenhum. Como escreve Herberto Helder (1995; 143), numa imagem que de certo modo também subentende a velocidade (aqui a da luz): "( A respeito da poesia pode ainda dizer-se: - A lâmpada/ faz com que se veja a própria lâmpada. E também à volta.)".
Por conseguinte, o corpo é, neste caso, o lugar de uma profundíssima cumplicidade ontológica com o universo, e as insistentes referências de Herberto Helder às aberturas do corpo - as narinas, a boca, a vagina, o ânus, os poros - frequentemente em contextos onde encontramos também referências ao ouro, de evidentes conotações alquímicas, bem como as inúmeras referências às artérias, ao fluxo sanguíneo e às vísceras derivam desta correlação. Trata-se de uma concepção aproximável da visão esotérica do corpo, a qual pressupõe a anatomia subtil, isto é, o entendimento do corpo como um lugar percorrido por energias subtis e análogas ao cosmos. É neste contexto que deve entender-se também a sobrevalorização das mãos, ou da cabeça, com todos os seus orifícios, bem como o modo fragmentado como o corpo é referido em Herberto Helder. Este processo de desagregação do corpo supõe um sujeito que participa da essência das coisas e que, por isso, é reconduzido à unidade primordial. "Enquanto duplos microcósmicos do Macrocosmos os nossos corpos contêm todas as energias do universo" (Gil, 1997: 92) e, no quadro desse entendimento, a dissolução da identidade não constitui exactamente uma perda porque releva de um estado unitivo com o todo, sendo condição de uma forma de conhecimento totalizante e absoluto que Mircea Eliade designou por "ênstase", isto é, experiência da união entre sujeito e objecto num quadro de relação não opositiva. Compreende-se, assim, que Herberto Helder fale frequentemente do corpo e do lugar, mas não de corpos ou de lugares, como faz Al Berto. Em O Medo, a visão fragmentária do corpo, bem como a referência às suas aberturas, surge normalmente associada a uma relação erótica. Só nesse contexto, completamente diverso, poderíamos falar não de ênstase mas da procura do êxtase. É, aliás, num quadro de encontro amoroso que Al Berto faz o segunte registo diarístico; "escrevo pouco, prefiro viver" (228). Embora tudo em volta desta frase sirva para lhe limitar a amplitude e o sentido...
3.
Procurando agora sistematizar as diferenças observáveis nestas duas poéticas, será de sublinhar que Al Berto é levado a retomar uma tradição intimista, produzindo uma reconfiguração lírica ou mesmo confessional que está completamente ausente em Herberto Helder, facto que deveremos associar a um retorno a uma poética de representação, embora sem esquecer que o tão citado "regresso às histórias simples", de Al Berto, se inscreve num livro cujo título genérico é Uma existência de Papel. Mas, seja como for, parece inegável que, enquanto Herberto Helder identifica experiência e poesia, Al Berto combina a poesia com uma experiência que se pretende situada também além da literatura, por referência a uma circunstancialidade urbana reconhecível pelo leitor. É desse lado que nasce o medo, e é aí que o sujeito situa a vertigem da velocidade e a impossibilidade de ancoragem da identidade. Todavia, não podemos esquecer que estamos perante um eu cujo estar no mundo é inseparável da discursivização poética de um mundo, isto é, perante um registo que não é pré-moderno e que, quando muito, será pós-moderno: apesar das sugestões aparentemente diarísticas de Al Berto, trata-se muito mais de situar a escrita na vida imediata - e da tematização de uma circunstancialidade que une o relevante e o irrelevante precisamente porque nos fala de um espaço sem "centro" - do que de supor uma vida autonomizável dos processos da sua discursivização. Nessa medida, Al Berto é e não é um nome de Alberto Pidwell Tavares.
Por outro lado, observa-se ainda o que se poderá considerar uma retracção gnoseológica: o mundo em Al Berto obedece a uma figuração rizomática, labiríntica, é apenas apreensível de modo circunscrito, e o retorno de uma subjectividade de matizes vivenciais - que, aliás, estrutura uma das linhas de desenvolvimento da poesia portuguesa depois dos anos 70 - constitui provavelmente uma resposta a essa crise do fundamento, tal como a disposição melancólica da poesia de Al Berto e de outros parece confirmar. Inversamente, a escrita de Herberto Helder parte da convicção de que há a possibilidade de um "centro", embora só a poesia possa determiná-lo, o que sugere que a sua escrita aceita a hipótese de um princípio totalizador, aliás mesmo cosmogónico, se bem que no quadro de negatividade que define a Modernidade estética já como superação da Modernidade em sentido filosófico.
Compreende-se assim que encontremos em Al Berto versos que falam da escrita como "a única mentira suportável" (350), quando, para Herberto Helder, a poesia só poderia ser uma presença insuportavelmente verdadeira. Tal como se compreende que, embora ambos os poetas manifestem interesse pelo cinema, Al Berto valorize mais a narratividade fílmica, isto é, a possiblidade de contar, ainda que se trate muitas vezes de narrar fragmentariamente, enquanto Herberto Helder se interessa principalmente pela montagem, no sentido neo-vanguardista em que a encontramos em Jean-Luc Godard, por exemplo. Situar metonimicamente o poema como uma amostra-de-mundo pressupõe o desinteresse por uma lógica de representação, facto que pode explicar toda a diferença existente entre o discursivismo hermético de Herberto Helder e a heterogeneidade, também discursivista embora noutros moldes, dos registos coloquiais ou até vulgares, mas também elegíacos e nostalgicamente poéticos de Al Berto.
Se Herberto Helder está próximo de Godard, a poesia de Al Berto terá mais afinidades com a vertigem urbana dos filmes de Almodôvar. Ou com os de David Cronemberg, o realizador de Crash, certamente o mais emblemático filme sobre a relação entre velocidade e dissolução na sociedade contemporânea. De resto, a questão da identidade está, como se sabe, obsessivamente presente nestes dois últimos cineastas.
Uma coisa é poder observar, como faz Eduardo Prado Coelho, "essa espécie de inocência cósmica em que tudo vai ser possível, o princípio de expansão a energia circulante", que definiria a poesia de Herberto Helder, para quem, como diz ainda o mesmo ensaísta, "é a matéria que pensa" (Coelho, 1994: 40); outra coisa será a percepção de ter vindo depois, e ter encontrado ainda a memória dessa possibilidade, mas em pedaços. O espaço urbano e suburbano da poesia de Al Berto magoa-nos porque é isso que significa.
Para o universo poético de Herberto Helder, o sujeito dominador da metafísica ocidental não passa de um parêntese sem relevância. A sua poesia situa-se simultaneamente antes e depois, valorizando o poético em detrimento do filosófico. Nesse aspecto, não está muito longe da de Al berto. Mas se Herberto Helder nos coloca na tradição da Modernidade estética, uma obra como O Medo é claramente mais tardia, o que, aliás, não significa nenhum corte absoluto. Como sugere Marc Augé ao propor o conceito de "sobremodernidade", poderíamos dizer que o campo de referências de Al Berto não é exactamente novo, todavia recupera situações "que [agora] se converteram em modalidades mais prosaicas, num destino comum" (Augé, 1995: 98). É nesse contexto que "o regresso às histórias simples" e "a esferográfica no coração" reconfiguram o lirismo sob um princípio de particularização, mas não excluem a experiência de dissolução do sujeito tal como a Modernidade pós-baudelairiana a formulara.
Acentuando esta cumplicidade divergente entre dois poetas de linhagens tão diferentes, gostaria de terminar com dois poemas.
De Herberto Helder:
Sei às vezes que o corpo é uma severa
massa oca, com dois orifícios
nos extremos:
a boca, e aos pés a dança com a coroa de labaredas
- a cratera de uma estrela.
E que me atravessa um protoplasma
primitivo,
uma electricidade do universo,
uma força.
E por esse canal calcinado sai
um ruído rítmico, uma fremente
desarrumação do ar, o verbo sibilante,
vento:
o som onde começa tudo - o som.
Completamente vivo. (Helder, 1996: 422)
De Al Berto:
(...)
mas se ao morrer o abrissem ao meio
nada encontrariam
nem vísceras nem ossos nem sangue
apenas poalha de água
e a dor da infindável travessia (553)
Rosa Maria Martelo
Bibliografia
1.
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Helder, Herberto (1977), Cobra, Lisboa, & Etc.
- - (1978), O Corpo o Luxo a Obra, Lisboa, & Etc.
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