sexta-feira, junho 20, 2003


A Regra do Jogo

Sábado, 14 de Junho de 2003



"As noites de verão são agradáveis em Caulfield, o ar cheira a jasmim, a heliotrópio, a madressilva e a verbena...", disse baixinho. Fechou o livro e olhou para o seu rosto reflectido na vidraça, os olhos muito escuros, o decote fundo do vestido, as noites de verão são agradáveis, o cheiro a jasmim, e a rosas, ainda há rosas no jardim, nem todas as roseiras secaram.

Era o fim de um dia muito longo e ela sentia-se cansada. Estava a chegar o momento de ir embora, com um casaco velho e uma mala debaixo do braço, pensando "bem, pronto, faz-se qualquer outra coisa, vende-se jornais" (o despojamento é a marca de um aristocrata, pelo menos segundo Marguerite Yourcenar). De manhã comprara um braçado de rosas, não flores do campo mas rosas vermelhas muito caras, e uma garrafa de champanhe francês. Ao fim da tarde tirara do armário um vestido preto Donna Karan, tinha dois ou três anos mas o modelo era eterno, o tecido justo ao corpo, as alças largas, pusera os brincos de diamantes, puxara o cabelo curto para trás e prendera-o com ganchos.

O vermelho do entardecer entrara na sala quase sem móveis, transformando-a, o perfume das flores tornara-se muito forte, ela acendera um candeeiro e continuara sentada à mesa, vira surgir na vidraça o seu vulto sozinho, erguera a taça de champanhe. Ele fora embora já há algum tempo, no entanto ainda tinha a impressão de vê-lo sentado à sua frente, na vidraça, era assim nas noites de inverno, e nas de primavera, as noites de verão cheiravam a flores e a frio (e quando se olhava ao espelho de manhã cedo tinha a impressão de vê-lo atrás de si, quase sentia as mãos dele na cintura, a boca dele no pescoço). Levantara-se sem largar a taça de champanhe e ajoelhara-se junto à estante dos policiais, aprendera tanto sobre a vida naqueles livros, "A morte mora do 14º andar" de Pat Mac Gerr, um homem pode matar a mulher que ama, se ela é para ele como um espelho, onde se vê como realmente é. Mas nós precisamos de máscaras, nós dois precisamos, "tudo o que é profundo precisa de uma máscara". Pegou noutro livro e acariciou por instantes a capa colada com fita adesiva, o livro era muito velho, "O Insuspeito" de Charlotte Armstrong, a voz de Grandy (um dos primeiros monstros que encontrara), quente e persuasiva, "mas têm de usar a máscara até morrerem", Tyl seguindo o rasto dos chocolates até a cabana onde o seu amor estava prisioneiro, e a terrível escolha final entre o príncipe e o monstro, algumas mulheres preferem os monstros.

O livro de William Irish chamava-se "A intrusa", às vezes pensava que venderia a alma ao diabo para escrever um livro tão bom como aquele, as noites de verão são agradáveis em Caulfield... Bebeu uma taça de champanhe, sentia-se quase feliz, não se importava de estar sozinha, e havia algo de divertido na ideia de ter de ir embora, com um velho casaco e uma mala debaixo do braço, e ir vender jornais, quase riu alto. O ar cheirava a jasmim e a rosas, a heliotrópio e a verbena, apetecia-lhe mais champanhe mas a garrafa estava vazia, de repente começou a sentir frio. Abriu o livro e leu as palavras em voz alta, o pesadelo está em tudo, até nos beijos que trocamos, o silêncio da casa vazia, tentou sorrir, como se não tivesse medo...

"Não sei que espécie de jogo é este. Apenas lhe conheço o nome; chamam-lhe vida.

Não estou bem certa das regras do jogo. Ninguém mas ensinou. Ninguém as ensina aos outros. Nós devemos ter jogado mal. Infringimos uma regra qualquer e, na ocasião, nem ao menos demos por isso."

Fechou os olhos e continuou baixinho: "Perdemos o jogo, perdemo-nos um ao outro e perdemos tudo. E agora é demasiado tarde."

O jogo acabou.


Ana Teresa Pereira