sexta-feira, setembro 03, 2004

Quem Regressa Onde?
Por EDUARDO PRADO COELHOO FIO DO HORIZONTE
Sexta-feira, 13 de Agosto de 2004

Trata-se do melhor filme em cartaz neste momento. E contudo uma obra extremamente desamparada, com todas as características para passar despercebida. Em primeiro lugar, é um filme russo, com actores desconhecidos. Depois, o nome do seu autor, inteiramente estranho entre nós, é dificilmente pronunciável e praticamente impossível de memorizar: Andre Zviaguintsev.

Acresce a tudo isto que a narrativa é escassa de acontecimentos - embora densa de pressentimentos e expectativas: dois irmãos, Ivan, o mais novo, e Andrei vivem com a mãe e a avó materna. O pai, ausente desde há 12 anos por motivos que não chegam a ser conhecidos, regressa de súbito. Nas primeiras imagens, os dois rapazes olham para fotografias da memória familiar. Aliás, o filme abre com fotografias e fecha com fotografias. Como se as imagens ganhassem cadência e depois se desacelerassem. As primeiras sequências são blocos sacudidos e algo abruptos de uma adolescência de jogos de perseguição, de lutas, de correrias na floresta. Os cortes deixam as imagens suspensas, numa sobreposição de situações. A dada altura, o filho mais novo abraça-se à mãe, num enorme medo da morte. As imagens recortam-se a negro sobre o horizonte.

Todo o filme, que, aliás, é breve, consiste em precipitar dois tipos de movimentos: um conduz-nos da fala ao silêncio; outro leva-nos da vida social para uma espécie de vazio raso de referências, num Inverno sem fim, onde o frio e o sofrimento preferem calar-se a gritar. As perguntas são obsessivas: que levou à partida deste pai emparedado na sua distância infinita em relação aos outros? Que explica o seu regresso? Regressou para quê? Para amar os filhos que não conhece? Ou para morrer?

Se as referências a Tarkovski parecem óbvias, elas são talvez formalmente enganadoras. O filme não tem o fundo de demanda obsessiva do sagrado que Tarkovski desenvolve. A dimensão dominante é aqui inteiramente imanente ao lento esvaziamento das imagens. O pai reencontrado não cabe no espaço da ficção. O que nos deixa no limiar do segundo movimento: pouco a pouco, envolvido numa pesquisa que é também uma viagem (como em Angelopoulos), Zviaguintsev conduz-nos até um espaço anterior à multiplicação dos espaços, para uma zona devastada e espessa de recalcamentos, em que tudo o que é vida parece ameaçado pela presença obsessiva da morte.

Andre Zviaguintsev filma admiravelmente, mas sobretudo filma a distância entre os seres em imagens de dor aguda e quase insuportável. Não sabemos se há um fim, ou se chega mesmo a haver um começo. Há apenas uma deriva em direcção à matéria mais longínqua, que acaba por entrar nos corpos imóveis, nos olhares aflitos, nas interrogações dolorosas. Poucos filmes conseguem ser tão densos e tão voltados para o seu próprio interior. E poucos filmes conseguem que esse interior seja de uma exterioridade absoluta: o mundo inicial onde cada ser é a primeira mulher e o primeiro homem.

Um filme a não perder - repito. O grande momento cinematográfico deste Verão de 2004.
Trocar de Corpo
Por EDUARDO PRADO COELHO
Quarta-feira, 01 de Setembro de 2004

o fio do horizonte

á criações culturais que concentram os problemas de uma época. Os que pensarem que "Matrix" é um vulgar filme de aventuras sobrecarregado de efeitos especiais estão muito enganados - e perderam o comboio da história. Em francês saiu um volume colectivo sobre o filme organizado por Jean-Pierre Zarader, no qual colabora Alain Badiou, para a editora Elypses. Em inglês temos uma ampla antologia, sob a responsabilidade de William Irwin, intitulada "The Matrix and Philosophy: Welcome to the Desert of the Real", publicado pela Open Court Publishing Company. Encontramos textos tão diversos como "Ver, crer, tocar e a verdade", "A metafísica de Matrix", "Neomaterialismo e a morte do sujeito", "Destino, liberdade e pré-conhecimento" ou "Nós somos o 'Escolhido'. Kant explica como manipular a matriz", "A simulação de 'Matrix' e a era pós-moderna" e "Matrix: ou os dois lados da perversão" (Slavoj Zizek). Embora não estejamos habituados a ver Kant no cinema, sempre se aprende muito com este confronto.

É claro que o grande e iniludível confronto está entre uma realidade com uma existência efectiva, tocável, concreta, objectiva e uma realidade que é apenas a força momentânea da mente (e donde desaparece a memória). Cypher come um bife cozinhado às mil maravilhas e afirma: "Eu sei que este bife não existe. Eu sei que, quando o coloco na boca, a Matrix diz ao meu cérebro que o bife é suculento e delicioso. Depois de nove anos, sabe o que percebi? A ignorância é a felicidade."

E Morpheus interroga-se: "O que é real? Como é que você define real? Se você está falando do que pode ser cheirado, provado e visto, então real é simplesmente um sinal eléctrico interpretado pelo seu cérebro."

A isto contrapõem-se argumentos do senso comum. David Mitsuo Nixon afirma no início da sua contribuição: "Após assistir a 'Matrix', tenho de perguntar: será que estou na Matriz agora?" Por outras palavras, será o filme "um mundo de sonho gerado por computador"? Mas Nixon vai buscar factos de bom senso: a) as pessoas não mentem de um modo geral; se alguém parece estar falando inglês, provavelmente está; se você se lembra de ter feito alguma coisa, provavelmente fez; as pessoas não trocam de corpo quando se tocam; as cabeças das pessoas não voam quando elas estão zangadas; o barulho dos sapatos das pessoas quando elas andam não faz parte dos sons usados por elas para comunicar consigo (não adianta tentar interpretar esses sons); quando um objecto parece estar aumentando de tamanho, geralmente é porque ele se está aproximando de si; as coisas existem mesmo quando você não está olhando para elas.

Há nestas frases uma grande dose de sensatez. Mas não fará a insensatez parte do mundo real? Talvez se possa perguntar se é verdade que "as pessoas não trocam de corpo quando se tocam". Porque a experiência que em alguns momentos sentimos com a mais empolgada intensidade é que as pessoas trocam de corpo quando se amam. Mas destrocam - fatalmente - no momento da queda.

O Regresso
Por PEDRO STRECHT
Quinta-feira, 02 de Setembro de 2004

"A father is forever

Not only for a father's day"

Um pai é para sempre e não apenas para o dia do pai. A frase, escrita numa "T-shirt" de um pai, parece ideal para uma introdução ao tema do filme "O Regresso", do cineasta russo Andrei Zviaguintsev, Leão de Ouro no festival de Veneza de 2003; relembra-nos a importância do papel do pai no crescimento emocional dos filhos e da sua especial relevância quando estes são rapazes e se encontram em idades adolescentes. "Para sempre" implica também a noção de que esse é um compromisso temporalmente infinito, que se inicia desde o momento em que uma criança nasce, ou melhor, ainda antes de ser gerado, através daquilo que o futuro pai projecta nas expectativas sobre a vinda de um bebé, e depois se prolonga, anos fora, desde a infância, à adolescência até ao próprio tempo de ser adulto. Nesse aspecto, o papel de um pai mexe, pelo menos, com aquilo que emocionalmente se transmite ao longo de quatro gerações: um pai de hoje é-o na medida das suas próprias vivências enquanto filho e, ao influenciar o crescimento da sua própria criança, ditará igualmente muito da forma como essa criança será ela própria, um dia, pai ou mãe. Daí que cada vez mais se fale de perpetuação transgeracional de determinadas características do funcionamento psíquico de cada um, que mais não são do que o resultado da impregnação de experiências emocionais adquiridas no trajecto evolutivo de cada um. Por isso, a ideia de uma vez pai, pai para sempre.

O filme "O Regresso" é um marco cinematográfico do que representa a ausência de um pai e as vicissitudes de uma presença que não preenche nunca as necessidades afectivas dos filhos. Filmado com especial intensidade emotiva, prende-nos pela força da suas imagens, ora cheias de violência, raiva, zanga, desespero, ora plenas de expectativa, esperança, ilusão.

Os irmãos Ivan e Andrei, de 12 e 15 anos, não têm do pai mais que uma velha recordação de sótão, uma fotografia de infância em que, muito pequenos, distinguem ao lado da mãe uma figura masculina que sabem ser o pai. Desde aí e até agora, tudo o mais é ausência, desconhecido, falha. Por isso, não é difícil apercebermo-nos de que uma parte do seu crescimento assenta num padrão violento de relação, em que o desejo de afirmação masculina, agora que ambos são adolescentes, é uma evidência muito intensa.

"Quem não saltar é estúpido. E cobarde." E quem é o rapaz que quer ser isso aos olhos dos outros? Numa das primeiras cenas do filme, um grupo de amigos que inclui os dois irmãos arrisca saltar de uma plataforma, elevada a muitos metros do nível da água. Com mais ou menos receio evidente, todos o fazem, excepto Ivan, o mais pequeno, que não ousa dar o passo em frente. Bloqueado no conflito entre falhar ou triunfar, ser rapaz ou ser menina, espera sentado na plataforma até ao final do dia. Para o conflito, parece não haver saída possível. Salvo pela chegada da mãe que sente a sua falta, o rapaz aceita descer, já fora da vista do grupo, e só depois de confirmado narcisicamente pela mãe: "Não te importes. Não és nenhum cobarde. Desces noutra altura, quando fores capaz..." Esta é a primeira e uma das mais impressionantes cenas do filme, quando o coração de quem observa se sente trespassado pela dor do desamparo e da incapacidade de corresponder deste rapaz.

Hoje, sabemos que é muito mais difícil para um rapaz afirmar-se narcisicamente perante o grupo se não estiver emocionalmente reforçado por um modelo masculino de referência, habitualmente o pai. E que a essa mesma afirmação tende a fazer-se de forma mais violenta, incluindo a troça ou o "bullying" sistemático de outros, nos rapazes sem pais homens presentes nas suas vidas.

E, depois, dá-se o regresso do pai dos dois irmãos. Assim, sem mais nem menos, sem que seja explícita a razão da sua ausência ou o motivo da volta. Nada. Excepto um olhar deprimido, vencido, da mãe, de quem provavelmente se esgotou na árdua tarefa de levar pela frente a missão de educar, sozinha, dois filhos rapazes, missão agora agravada pelas dificuldades de lidar com adolescentes. Quantas não são as mães dos nossos dias a quem isso não acontece? E quem reconhece o seu esforço ou quem as auxilia no desgaste desse processo? No filme, como muitas vezes na vida, as avós, na sucessão matriacal de que, idos os homens, ficam as mulheres. E uma mãe, por muito boa mãe que seja, não pode nem consegue ser pai. E, sobretudo, não lhe é igualmente possível ser mulher, sentir-se amada, investida, reforçada, por uma outra presença que a faça feliz.

Ivan e Andrei partem com o pai. Não conseguem resistir a um convite para um fim-de-semana com essa personagem tão distante e, por isso mesmo, tão idealizada. A ilusão é grande, embora seja vivida de formas diversas, por vezes completamente opostas, pelos irmãos. O mais velho parece aderir mais facilmente, num esforço de colagem àquele pai que pode significar muito. O mais novo, mais distante, pesa-lhe mais nele a imagem da mãe que ficou para trás, e aderir às propostas do pai não deve servir para atraiçoar a memória materna.

E depois, a que assistimos? A uma notável narrativa de desencontros, de desilusões, em que pai e filhos nunca se encontram. Cena após cena, vemos a repetição de coisas que um pai não deve (quase) nunca fazer a um filho. Marcado pela sua vida pessoal, este pai não ouve, não fala, não comunica, não contém, não se organiza perante as verdadeiras necessidades emocionais dos dois rapazes. O que faz é um esboço de educar pela violência, pelo medo, pela culpa e, sobretudo, pela retaliação. Os filhos, especialmente Ivan, e só no final Andrei, também, são para ele um entrave, algo que não o preenche e perante os quais nunca se conseguirá organizar.

Pai não é apenas para existir num só dia. Ou num fim-de-semana de diversão. Ser pai é estabelecer uma relação que se constrói todos os dias, nos bons e nos maus momentos, pois só assim se conhecem os filhos e só assim se dá a conhecer como modelo. Infelizmente, nos dias de hoje, continuamos a ver muitos pais como este, cuja forma como marcam emocionalmente os seus filhos é pela ausência, ou por presenças de qualidade afectiva negativa ou distorcida. O seu efeito é o que se pressente à medida que o filme avança. "Porque voltaste tu? Para que precisas de nós?", pergunta-lhe Ivan. "Vais-te embora, agora, para voltares daqui a outros 12 anos?"

Por fim, o drama. Como em muitos casos que também conhecemos, esta presença, estes regressos, tornam-se intoleráveis. Nada pode começar quando não há nada para comunicar. E, muitas vezes, se a pressão ou a chantagem emocional, a coacção psíquica ou física se fazem sentir, resta morrer. Morrer psicologicamente, mais do que de outras formas. Desistir. E, às vezes, matar, fechando em culpa e tragédia tempos de vida tristes e desamparados.

"O Regresso" faz-nos ver muitas coisas. Inquieta. Põe no lugar devido a importância de relações entre pais e filhos. E relembra que ninguém pode amar na ausência. Ou no medo. Porque o conflito é tão violento como um salto para a água de muitos metros de altura.

Médico pedopsiquiatra
TOM WAITS
Por VESTIDO PARA SAIR
Sexta-feira, 03 de Setembro de 2004

O piano tem sido o companheiro mais assíduo de Tom Waits. Companheiro mesmo - nos copos (é só uma suspeita: oiçam "Blue Valentine"), na má vida, e, para o que aqui interessa, na música. Quer dizer, mesmo que a excentricidade (e, já agora, a inquietação criativa) lhe desse para recorrer a instrumentos de que ninguém tinha ouvido falar ("optigon" e "basstarda" não aparecem todos os dias nas fichas técnicas dos álbuns), o piano sempre foi uma presença fiel em três décadas e 19 registos de originais.

É oficial: "Real Gone" é o primeiro álbum de Tom Waits sem piano. Evidentemente, pedimos-lhe explicações. Waits, que tem mesmo aquela voz rouca que não parece ter fundo, respondeu como quem não pensou muito sobre o assunto. "Não sei, não calhou. Sabe o que eu acho? É um instrumento de interior. E tudo o que usámos foram instrumentos de exterior. O piano cria uma certa imagem, a de que se está numa sala e não se pode deixar essa sala, não posso passar o piano a alguém."

Reparem na pinta de Waits por estes dias e confirmem se ele não está vestido para sair: fato e gravata em vez do ar de vagabundagem de "Mule Variations" (1999), o álbum que antecedeu os simultâneos "Alice" e "Blood Money" (2002), espécie de bandas sonoras para espectáculos de Robert Wilson. Não fiquem com a ideia errada: o Waits de "Real Gone" ainda soa primitivo (no melhor dos sentidos) e a quinquilharia (no melhor dos sentidos), mas há por aqui traços de "funk" ("Shake it" soa a James Brown numa gravação manhosa ou na pista errada) e de hip-hop ("Metropolitan glide").

Na verdade, "Real Gone" é o primeiro álbum de Tom Waits em muitas coisas - e só não o é no que mais importa: a parceria com a mulher Kathleen Brennan, co-autora e produtora do álbum. É, por exemplo, o primeiro álbum em que Waits recorre ao "human beatboxing", prática ligada ao hip-hop (e empregada por Björk no seu mais recente álbum, "Medúlla") que consiste em usar a voz como base de percussão. Vários temas ganharam forma a partir de cassetes que Waits gravou na sua casa-de-banho (não perguntem) enquanto fazia "beatboxing" e que serviram de estrutura aos instrumentos adicionais. Ponham o tema de abertura, "Top of the hill", a arranhar (perdão, a tocar), escolham uma vítima e façam um "blind test": há largas hipóteses de o reconhecimento surgir depois de várias tentativas falhadas.

Com o temperamento híbrido que é a marca sonora de Waits, "Real Gone" tem "blues", música cubana, "spoken word", "western", canções na noite, e, tanto quanto se percebe, um "drunken train" (é o que se ouve em "Don't go into that barn"). Tem também a mais calma das canções de guerra, "Day after tomorrow", incluída numa recente compilação da organização americana (anti-Bush) Move.org. Falta dizer: "Real Gone" é o primeiro álbum de Waits que contém uma canção abertamente política - "Day after tomorrow" é uma espécie de carta de um soldado americano escrita em vésperas do seu regresso a casa. Mas, na verdade, quando Waits canta "I feel like a preacher waving a gun around" em "Shake it", suspeita-se que também está a pensar no estado (político) do mundo.

Kathleen Gome

"Real Gone" é editado a 4 de Outubro


NICK CAVE

dois em um

Mais um ano, mais um álbum de Nick Cave. Neste caso, dois - "Abattoir Blues" e "The Lyre Of Orpheus" - vendidos numa única embalagem, à semelhança do que aconteceu este ano com "Aw C'mon / No You C' mon" dos Lambchop. O australiano faz parte daquele panteão restrito de agentes da música contemporânea de quem já não se aguardam grandes revoluções, mas de quem se esperam sempre discos sólidos. É também alguém que, nos últimos anos, parece ter ganho uma certa tranquilidade, visível até na forma como os seus discos se vão sucedendo sem grandes alaridos. "Nunca me deu tanto prazer fazer música como hoje", afirmou Cave ao Y em Londres, e isso percebe-se ao ouvir o novo álbum.

Como o anterior "Nocturama" (2003), respira um sentido de colectivo. É um disco de Cave, mas é também muito dos The Bad Seeds. "No princípio do ano, peguei no violinista Warren Ellis, no baterista Jim Sclavunos e no baixista Martyn P. Casey e fechámo-nos num estúdio em Paris e, numa semana, registámos material original para uma série de discos", afirmou Cave, aludindo ao facto do processo de escrita e de composição ter sido partilhado. Quem esteve ausente da operação foi o alemão Blixa Bargeld, companheiro de muitas aventuras que abandonou os Bad Seeds para se concentrar em definitivo nos seus Einstürzende Neubauten. "Mandou-me um e-mail aludindo à sua decisão e compreendi que nem valia a pena argumentar com ele. Com ele é assim, preto no branco. Vou sentir muito a sua falta", disse Cave.

A saída de Blixa Bargeld abriu portas para a entrada do ex-Gallon Drunk, James Johnston, e contribui para o destaque que a guitarra de Mick Harvey tem no novo registo. O resultado é um disco orgânico, às vezes agreste na forma como o rock encontra os blues, outras delicado, com baladas amaciadas pela presença de coros "gospel". O critério para a divisão dos discos parece ter sido muito pouco científica: "Jim Sclavunos é um baterista mais incisivo e tocou em 'Abattoir Blues', enquanto 'The Lyre Of Orpheus' teve Thomas Wydler na bateria, que é mais tranquilo".

Os temas são os de sempre em Cave: vida, morte, amor, Deus. Nas suas canções não existe espaço para a subjectividade das emoções mais quotidianas ou para apelos políticos. "Gosto do que é intemporal, perene. Os políticos e as canções políticas nunca me interessaram", argumenta. Pelo meio, encontramos um lamento em forma de canção, "Let the bells ring", ou outra forma de Cave mostrar devoção por Johnny Cash no ano da sua morte e momentos de tensão como "Nature boy", que fazem recordar o princípio do seu percurso a solo, depois dos Birthday Party.

Ou seja, o novo álbum segue as pistas deixadas em aberto por "Nocturama". É um disco de aprofundamento e não de ruptura. É um álbum de grupo, como se o cantor tivesse sentido vontade de se anular um pouco para fazer sobressair o colectivo na procura de novas soluções para um universo que ameaçava transformar-se auto-referencial.

Vítor Belanciano

"Abattoir Blues / The Lyre Of Orpheus" é editado a 20 de Setembro.
Truman Capote
Por KATHLEEN GOMES
Quarta-feira, 25 de Agosto de 2004

O encantador e a serpente

Sobre Truman Capote, James Wolcott escreveu na revista "Vanity Fair" que "ele tanto era o encantador de serpentes como a própria serpente". É uma dessas definições invejáveis, verdadeiramente "à la Capote": eficaz, certeira, profunda, mordaz.

De Capote se pode dizer uma e outra coisa: por exemplo, que foi um autor que fez da escrita uma experiência estética, e que foi um "poseur", um arrivista dado às mundanidades que só tinha um objectivo em mente - a fama.

Uma forma de resumir este Truman Capote dois-em-um é dizer que foi a mais fascinante figura literária da era dos "talk-shows". As suas primeiras e últimas aparições televisivas constituem a cartografia da ascensão e queda de um mito, entre o menino-prodígio que nos anos 50 minimizou a obra de Jack Kerouac ("não é escrita - é dactilografia") e o velho que se tornara um embaraço no final da década de 70 e que apareceu bêbado num programa de televisão depois de ter pedido ao apresentador para não falar dos seus problemas de alcoolismo.

Um e outro - o encantador e a serpente - não perderam o fascínio, 20 anos após a morte de Truman Capote. Por causa de um e de outro, ainda há quem resista em incluí-lo entre os grandes escritores norte-americanos do século XX. "Enfant terrible" da literatura americana do pós-guerra é aceitável, mas "grande escritor"?

Não ajuda que Capote tenha produzido uma obra mais ou menos dispersa, mais ou menos irregular, quase sempre sob a forma de pequenas narrativas (contos, novelas, ensaios), que não chegasse a terminar o seu prometido "opus" proustiano, que tivesse a pretensão de aproximar o jornalismo da arte literária.

Não ajuda, enfim, que as suas aspirações incluíssem "ser rico e famoso". "Eu tinha que ter sucesso e tinha que tê-lo cedo", afirmou em 1978. "O que acontece com pessoas como eu é que sempre soubemos o que íamos fazer. Muitas pessoas passam metade da vida sem saber. Mas eu era muito especial e tinha de ter uma vida especial. Não fui destinado a trabalhar num escritório ou algo do género, embora fosse certo que teria êxito no que quer que fizesse. Mas sempre soube que queria ser um escritor e que queria ser rico e famoso."

Ascensão...

E, apesar de tudo, criou e solidificou um estilo. No prefácio de "Música Para Camaleões" (1980) diz que pretendia alcançar "a credibilidade dos factos, a imediatez do cinema, a profundidade da prosa e a exactidão da poesia". As três últimas, pelo menos, são visíveis em "A Sangue Frio" (1965), espécie de texto sagrado da "nonfiction novel", da "reportagem narrativa".

Lendo entrevistas do autor à altura, e outros textos seus, tem-se a impressão de que foi um romance - de não-ficção, como dizia, mas ainda assim um romance - feito para provar uma teoria: a de que "a reportagem podia ser tão interessante e tão artística quanto a ficção".

Capote já tinha feito um ensaio com "Ouvem-se as Musas" (1956), relato da viagem à URSS da companhia de teatro americana de "Porgy and Bess", que é também um fresco sobre os equívocos e "clichés" com que a América via os russos e vice-versa.

Além disso, Capote tinha treinado intensamente a memória para não precisar de gravadores nem de blocos-de-notas nas entrevistas e reportagens. Para que nada interferisse entre predador e presa. Quando, a 16 de Novembro de 1959, o "New York Times" publicou uma pequena notícia sobre um homicídio múltiplo numa quinta isolada do Kansas, Capote partiu de comboio para o Midwest e durante seis anos trabalhou em "A Sangue Frio", recolhendo testemunhos, verificando pistas, privando com os assassinos até à execução da pena de morte.

O resultado foi uma obra sem precedente, que, numa extraordinária combinação de montagem paralela e detalhe, condensava uma espécie de fim trágico do sonho americano - as vítimas, os Clutter, pai, mãe, filha e filho, personificavam um modelo exemplar da família americana.

Norman Mailer, autor de "A Canção do Carrasco", no que viria a ser um dos episódios da célebre inimizade que o unia a Capote, descreveu "A Sangue Frio" como uma "falha de imaginação", pressupondo que um verdadeiro romancista deveria escrever sobre o seu imaginário e não sobre a realidade.

O que seria produto de intriga, mais do que qualquer outra coisa: um dos sortilégios de "A Sangue Frio" é a moldura tão impossivelmente real das personagens (mas tão potencialmente ficcional), a omnisciência do autor, a sua capacidade para reproduzir, por exemplo, os pensamentos de uma rapariga de 16 anos, Nancy Clutter - em suma, a sua habilidade para transcender a realidade.

Sobre a "credibilidade factual" que Capote tanto defendeu, cite-se o "Auto-retrato", de 1972 (incluído em "Os Cães Ladram", ed. Relógio d'Água): "A arte e a verdade não são necessariamente parceiros sexuais compatíveis."

A verdade é que Norman Mailer fez parte de uma minoria. "A Sangue Frio" foi pré-publicado em série na revista "New Yorker", estabelecendo um recorde de vendas, e o livro vendeu mais de 300 mil exemplares, permanecendo 35 semanas na lista de "best-sellers" do "New York Times". Capote, que já tinha ampla notoriedade, tinha conseguido: era rico e famoso.

Comemorou o êxito com um baile de máscaras no Plaza Hotel, Nova Iorque, em 1966: o "Black and White Ball", também conhecido como "a última grande festa americana", foi uma festa para mais de 500 "escolhidos", entre estrelas de Hollywood e uma elite aristocrática.

"A Sangue Frio" valeu-lhe um contrato milionário com a Random House, para um livro que o autor teria de entregar em dois anos. Ressentido pelo facto de o Pulitzer e o National Book Award terem ido para Mailer, Capote projectou o que ambicionava ser o seu legado canónico, uma espécie de "Em Busca do Tempo Perdido" contemporâneo, baseado nos seus diários, correspondência e anotações ao longo de anos: "Súplicas Atendidas".

... e queda

Viria a ser o seu eterno "work-in-progress", e um anti-clímax amargo: Capote não só não terminou o livro, como os excertos publicados na "Esquire" lhe custaram a amizade do que chamava os seus "cisnes" - mulheres da sociedade-caviar, o "jet-set" feminino com quem forjara cumplicidade tanto tempo.

Foi, sobretudo, o capítulo "La Côte Basque" que surgiu como uma traição: um relato de inconfidências feitas à mesa de um restaurante numa mistura de vícios privados, misoginia e muita, muita fofoca. Quando lhe pediram contas, respondeu: "O que é que eles esperavam? Sou um escritor e uso tudo. Será que todas aquelas pessoas pensavam que eu estava lá só para as entreter?" Capote refugiou-se no álcool e em anti-depressivos, assegurando a todos os interessados e não-interessados que continuava a trabalhar em "Súplicas Atendidas" - que permaneceu inacabado e foi publicado postumamente, em 1986, com os mesmos capítulos que tinham aparecido na "Esquire".

Morreu a 25 de Agosto de 1984, a pouco mais de um mês de completar 60 anos, em Los Angeles, na casa da amiga Joanne Carson, ex-mulher do apresentador de "talk-shows" Johnny Carson. No seu obituário, pelo sim pelo não, o "New York Times" citava o comandante da polícia de L.A.: "Não há qualquer indicação de que seja uma partida." Porque, afinal, Capote era capaz de tudo pela fama.

Andy Warhol relata nos seus diários que, em 1978, o "New York Times" publicou um artigo sobre Capote com uma fotografia "que não parecia Truman". "Parecia a mãe dele. Ele estava de pé na relva, com um chapéu de palha e um lençol que o fazia parecer grávido. (...) Ele disse: 'Olha, sou eu. Gostas?' E enquanto isso falava do artigo, que mencionava a palavra 'declínio'. E ele disse: 'Declínio? Que declínio? Sou o escritor sobre o qual mais se escreve no mundo.'"