sábado, julho 30, 2005

Stuart A. StaplesLucky Dog Recordings
7/10
Beggars Banquet; distri. Popstock
Vamos, por instantes, conceder-nos um pequeno momento de senso comum: aceitemos, então, que o desejo é uma coisa de cometas e a outra coisa (a que não se diz, a da víscera secreta) precisa de uma outra têmpera, assunto de galáxias. Essa outra coisa requere uma aceitação tácita de defeitos, permite-se dias sem toques nem mais que um murmúrio, reconhece lugares sem que isso conduza ao tédio. Essa outra coisa é, mais coisa menos coisa, a forma mais próxima que temos de definir (segue expressão lamentável) os nossos sentimentos pela música de Stuart Staples. Staples - recordemos o leitor mais avesso a decorar nomes - é o homem do leme de um combo de areias movediças chamado Tindersticks. Essa outra coisa mantém-se mais que viva após esta estreia a solo.
Os anos mudaram tudo, diga-se. Ao princípio era uma paixão furiosa pelo disco de estreia, homónimo, do sexteto inglês, por aquela música em que os Velvet Underground encontravam o flamenco no fundo de uma garrafa. Nos dois discos seguintes (o segundo foi obsessão violenta) levaram o conceito de luxúria ao extremo, criaram um universo cada vez mais afado, as guitarras cortantes desapareciam em cortinas de veludo. Veio a soul e a as acusações de facilitismo. Hoje, "Simple Pleasure" (1999) e "Waiting for the moon" (2003), as obras mais abertas do sexteto, são as nossas preferências - respire-se ali. E de repente, quando menos se esperava, ele, Staples, imagem sofisticada da dor-de-corno-a-fazer-que-não regressa a uma forma suja de fazer canções.
Numa qualquer revista de música na net alguém escreveu: "Staples podia ter feito um disco de drum "n bass e mesmo assim ainda manteria o seu quintessencial calor dorido." Não há melhor expressão para definir a surpresa de "Lucky Dog Recordings", mais ainda sabendo que era plano de Staples juntar "the ugly and awkward". Não é que não haja aqui matéria tindersticksiana: "She don"t have to be good to me" poderia bem estar em "Tindersticks II" (1995): guitarra acústica, bateria de escovas, piano delicado a embalar e a voz em sussurro, braço dado com a trompete, noctívaga mas companheira. E "I"ve come a long way" podia caber em "Can our love" (2001): dois acordes de Hammond e o arranjo com, imagine-se, duas notas repetidas incessantemente. Coisa de minúcias e murmúrios, alvorada de trompete, Otis Redding na doca da baía a assobiar louvores à fêmea. Depois a guitarra abraça o ondular gingão da pandeireta e há um prenúncio de dia, até se amainar a guitarra, a pandeireta, os metais (cuida-se que o termo "belíssima" foi criado para coisas assim).
Mas há também um outro Staples, aqui. E logo a abrir, com "Somerset house", ele vem ao de cima: a tríade em harpejos, ligeira pausa, harpejo de novo, voz de mulher a fazer "tututu". Nada mais que isto. Ou mais que isso, o oposto, lance de sujeira, manobra de recuo até aos idos de 1993: "Say something now" traz um delay na guitarra, a voz abafada e o piano martelado lá atrás, quase fantasma. Até aqui tudo bem, mas depois haverá western de metais, bateria a ruir, dissonâncias e feedback de guitarra. É a grande canção sanguinolenta que os Tindersticks não fazem há uma década. Os anos, graças à pele, permitem escutá-la com uma saborosa distância. A coisa volta a repetir-se dois temas à frente, com um riff lento e áspero (e agradavelmente mal tocado) a avançar a ritmo de jogador brasileiro em relva alta depois de noite de mulata, para depois bascular-se num arranjo dissonante e coros femininos. Dura dois minutos. Staples, nitidamente, deu-se ares de pós-adolescente. Mais certeza temos deste lúcido aparte quando chegamos a "Untitled": malha catita de piano, harmónica sintetizada, percussão jazzy, lá atrás metais-Martini, digitália chaise-long. Sim, senhora, digitália chaise long. Um devaneio electrónico que soa mais a coisa certa no momento certo que a devaneio de DJ drustrado ("Untitled", diga-se, é uma delícia pop.)
Nos Tindersticks a presença dos outros músicos funciona como uma força centrípeta, conduzindo cada tema a águas reconhecíveis. Aqui, Staples tem a liberdade de fazer de cada tema o seu pequeno mundo. "Lucky Dog..." é artesanato de miniaturas, maquetes em formação, polaroids de pequenos insectos que brilham por segundos apenas. Beleza esquiva.
A coisa estética é uma ciência burilada no coração: apor cada elemento no lugar que mais o deseja, pousá-lo apenas por necessidade. Justapor - imperiosamente, do lado onde a beleza é um rumor que não se diz. Desenganem-se: não há mais incêndios por aqui. Não há problema algum: são suficientemente apelativas, as esculturas de cinza do burguês Staples. Sempre foram, aliás. João Bonifácio.
O factor humano

MEMÓRIA. Monica Vitti e Alain Delon sob o olhar de Antonioni, em 'O Eclipse' (1962), escrito por Tonino Guerra

Tonino Guerra não se cansa de repetir que tem tido o privilégio de conviver com alguns grandes cineastas. Assim é, de facto. Desde que começou a escrever para cinema, em meados da década de 50, a lista de autores com que já trabalhou é impressionante. Desde logo, porque essa lista contém uma enorme fatia da obra de Michelangelo Antonioni, incluindo a revolucionária trilogia a preto e branco do começo dos anos 60 (A Aventura, A Noite e O Eclipse), o mítico Blow-up (1966), a produção americana Zabriskie Point (1970) ou ainda Identificação de uma Mulher (1982) e Para Além das Nuvens (1995).

Mas Tonino Guerra participou também na escrita do emblemático Amarcord (1973), de Federico Fellini, em Lucky Luciano (1974), de Francesco Rossi, um dos momentos incontornáveis do "cinema político" italiano, e ainda em sete títulos da obra do grego Theo Angelopoulos, incluindo O Apicultor (1986) e O Olhar de Ulisses (1995). Além do mais, da sua filmografia consta ainda a colaboração excepcional com Andrei Tarkovski, em Nostalgia (1983), testemunhada pelo filme documental, assinado por ambos, Tempo de Viagem (disponível na edição em DVD de Nostalgia).

O que permanece através de todos estes ziguezagues de um trabalho imenso - Tonino Guerra tem o seu nome ligado a quase uma centena de filmes - é um mesmo desejo, obsessivo e multifacetado, de contar histórias. Mais do que isso, e como ele sugere, há na sua trajectória criativa a vontade incansável de valorizar a diversidade do factor humano, nunca menosprezando o valor primitivo da palavra (mesmo quando, como ele diz a propósito de Antonioni, os cineastas parecem decidir tudo em função da imagem).

Daí que Tonino Guerra insista em esclarecer que considera importante que os actores e realizadores italianos façam filmes falados em italiano, não cedendo automaticamente às leis da "internacionalização" anglo-saxónica. Não é uma questão meramente nacional, nem estritamente política. É antes a sua maneira de reafirmar o peso e o valor da palavra na história de cada personagem, nas personagens de cada história.

Tonino Guerra gosta de evocar as palavras do seu amigo Fellini, trocadas numa conversa já na fase final da vida do autor de O Navio e Ginger e Fred (outros dois títulos a cujos argumentos o seu nome também está ligado). Falando com algum desencanto sobre as contradições do progresso e as encruzilhadas do cinema, Fellini disse "Tonino, estamos a fazer aviões e não há aeroportos." Talvez que a arte de Tonino Guerra se possa definir a partir de tal sugestão há nela a vontade de, entre os seres humanos e as suas obras, encontrar uma harmonia ou, pelo menos, uma cumplicidade que não nos afaste das nossas verdades mais íntimas. É isso que faz dele um dos grandes narradores do cinema italiano. Que é como quem diz: de todo o cinema.
entrevista
Tonino Guerra
26.07.05

Guerra

João Lopes


Depois de quase 50 anos a escrever para cinema, o desejo de escrever persiste?

Foi quando era prisioneiro na Alemanha que comecei a pensar em escrever. E sentia-me mais próximo da poesia. É quase ridículo dizê-lo, mas quando fazemos cinema afastamo- -nos da palavra poética.

Podemos, então, dizer que, para si, a palavra é sempre poética?

Sim, a palavra é um continente que contém uma infinidade de imagens e histórias. Num certo sentido, a imagem é mais rudimentar, ainda que haja grandes cineastas capazes de lhe conferir uma extraordinária profundidade. Mas, para mim, a palavra conserva qualquer coisa de mais misterioso.

Não se sente pessimista neste mundo onde há tantas imagens?

Não, não sou pessimista porque acredito que a palavra pode sempre crescer. É certo que a imagem invadiu tudo e até há mesmo quem encontre consolação... na televisão. Nesse sentido, a imagem é demasiado prepotente, mas continuo a acreditar que a palavra entra melhor dentro de nós. A imagem é algo que guardamos em forma de espectáculo, algo que está à nossa frente. A palavra permanece, algures, como música, como um encanto secreto.

Será que existe uma fronteira nítida entre o que é palavra de cinema e o que é palavra de televisão?

A televisão é um meio prático, capaz de nos dizer que há uma guerra, que alguém morreu? E pode fazê-lo bem. Mas se pensarmos, por exemplo, em Tarkovski, aí temos alguém que sabe trabalhar a espiritualidade da palavra. Angelopoulos também é um amante da palavra. Antonioni não, não gosta da palavra.

Antonioni prefere a imagem?

Sem dúvida, porque ele diz que a imagem já contém a palavra. Daí que o seu argumentista (e eu fiz 12 filmes com ele) dependa do facto de nele não haver uma boa relação entre palavra e imagem.

Quer isso dizer que, com Antonioni, se sente submetido ao poder da imagem?

Por vezes. Em alguns momentos, senti que os diálogos sofriam com esse domínio. Por exemplo, quando pensámos fazer O Deserto Vermelho [1964], falámos com uma grande poetisa italiana chamada Amelia Rosselli [1930-1996]. Ela estava doente e nós perguntámos-lhe como estava. E ela, para descrever o que sentia no cérebro, disse-nos assim "Há momentos em que até me doem os cabelos." Entretanto, o filme entrou em rodagem. Já no final, na região de Ravenna, Antonioni decidiu filmar uma cena em que apenas pediu a Monica Vitti que corresse para a casa do homem que ama. Ela chegava, ansiosa, quase que parecia que ia matar alguém? O homem pergunta-lhe que se passa com ela. E o que é que Antonioni pediu para ela responder? "Doem-me os cabelos."

Quando olha para os filmes em que trabalhou com Antonioni, Fellini ou Tarkovski, sente que, para além dos cineastas, há também uma evolução particular do seu próprio trabalho de argumentista?

Não. É o realizador que faz o filme. Os outros podem ajudar. Talvez que eu seja dos que podem ajudar bastante, mas o autor é sempre o realizador.

Mas há alguma relação entre os filmes e as histórias que escreveu, quer em ficção, quer em poesia?

Uma enorme relação. Tudo começa com o diálogo com o cineasta encontramo-nos, falamos, dizemos o que cada um pensa. Tenho trabalhado com cineastas que são também grandes argumentistas, melhores que eu. Depois, tudo se combina: por exemplo, mais de metade das histórias de Amarcord [1973] vêm da minha vida. Além do mais, eu e Fellini somos da mesma região [Emilia-Romagna], nascemos em duas povoações muito próximas.

É mais difícil trabalhar com um cineasta de uma língua diferente? Com Tarkovski, por exemplo a língua era uma barreira?

Sim, mas a minha mulher é russa é professora e traduzia as nossas conversas de forma admirável. Com Angelopoulos, falamos em francês.

E já houve momentos em que um cineasta lhe disse que tinha uma ideia de imagens, pedindo-lhe que encontrasse acontecimentos para as preencher?

Não. Ele pode ter uma ideia de imagens, mas é o diálogo entre nós que decide tudo.

E a inspiração do exterior?

Sim, também. Por exemplo, a propósito de Amarcord, perguntam-me sempre de onde vem aquele homem que grita "Quero uma mulher!" Acontece que, um dia, num jornal de Turim (La Stampa), li que, num domingo, num asilo de loucos, um dos internados chegou a uma janela e começou a gritar "Quero uma mulher!". E toda a gente diz "Ah! Aquele Tonino Guerra! E Fellini!" Mas não fomos nós há muitas coisas que apanho na vida de todos os dias, nos jornais e também nas conversas com os outros. Gosto imenso de passear no campo e falar com os velhos, sobretudo com os que vivem mais isolados. Uma vez, em conversa com uma mulher do campo, perguntei- -lhe se ela achava que Deus existe. Olhou-me longamente e respondeu-me assim: "Dizer que existe pode ser uma mentira. Dizer que não existe pode ser uma mentira ainda maior."

Os filmes nascem também através dessas experiências?

Por vezes, sim. Nunca me esqueço que, uma vez, no feriado de Novembro em que toda a gente vai pôr flores aos cemitérios, andei a passear pelo campo. Encontrei um velho a trabalhar na vinha e disse-lhe que se calhar o surpreendia por eu andar por ali, mas tenho medo da morte e não gosto de ir a cemitérios. E diz-me ele "A morte não é aborrecida. Só nos visita uma vez."