domingo, abril 27, 2003


O meu amor não cabe num poema- há coisas assim,
que não se rendem à geometria deste mundo;
são como corpos desencontrados da sua arquitectura
ou quartos que os gestos não preenchem.


O meu amor é maior que as palavras; e daí inútil
a agitação dos dedos na intimidade do texto-
a página não ilustra o zelo do farol que agasalha as baías
nem a candura da mão que protege a chama que estremece.


O meu amor não se deixa dizer- é um formigueiro
que acode aos lábios como a urgência de um beijo
ou a matéria efervescente dos segredos; a combustão
laboriosa que evoca, à flor da pele, vestígios
de uma explosão exemplar: a cratera que um corpo,
ao levantar-se, deixa para sempre na vizinhança de outro corpo.


O meu amor anda por dentro do silêncio a formular loucuras
com a nudez do teu nome- é um fantasma que estrebucha
no dédalo das veias e sangra quando o encerram em metáforas.
Um verso que o vestisse definharia sob a roupa
como o esqueleto de uma palavra morta. Nenhum poema
podia ser o chão da sua casa.



Maria do Rosário Pedreira
, O Canto do Vento nos Ciprestes



©Edward Hopper





Anthem


The birds they sang
at the break of day
Start again,
I heard them say,
Don't dwell on what
has passed away
or what is yet to be.


The wars they will
be fought again
The holy dove
be caught again
bought and sold
and bought again;
the dove is never free.


Ring the bells that still can ring.
Forget your perfect offering.
There is a crack in everything.
That's how the light gets in.


We asked for signs
the signs were sent:
the birth betrayed,
the marriage spent;
the widowhood
of every government --
signs for all to see.


Can't run no more
with that lawless crowd
while the killers in high places
say their prayers out loud.
But they've summoned up
a thundercloud
They're going to hear from me.


Ring the bells that still can ring.
Forget your perfect offering.
There is a crack in everything.
That's how the light gets in.


You can add up the parts
but you won't have the sum
You can strike up the march,
there is no drum.
Every heart
to love will come
but like a refugee.


Ring the bells that still can ring.
Forget your perfect offering.
There is a crack in everything.
That's how the light gets in.



Leonard Cohen












Estreado em Outubro do ano passado, em Lisboa, pelos Artistas Unidos, "Nunzio", do italiano Spiro Scimone, entra no próximo dia 10 de Maio numa minidigressão que começa no Porto, integrado no Festival Fazer a Festa. Segue para Faro e termina em Viana de Castelo. A comovente história de amizade entre dois homens pobres – Nunzio, um funcionário fabril, e Pino, um assassino –, assemelha-se ao cinema mudo. E, no entanto, o retrato desesperado de um quotidiano paradoxal, triste, e, ao mesmo tempo, hilariante, é mais do que eloquente. O trabalho de João Meireles e Miguel Borges é o diálogo de homens sós. Abandonados.


© JN Online



"Para nós, o problema do teatro não é não se saber falar, é antes do mais, não saber ouvir. Se não sabes ouvir, não sabes falar" Spiro Scimone



Livre




Não há machado que corte
a raiz ao pensamento



não há morte para o vento
não há morte.



Se ao morrer o coração
morresse a luz que lhe é querida,



sem razão seria a vida,
sem razão.



Nada apaga a luz que vive
num amor, num pensamento,


porque é livre como o vento,
porque é livre.



Carlos de Oliveira, As Canções Heróicas




La calle



Es una calle larga y silenciosa.
Ando en tinieblas y tropiezo y caigo
y me levanto y piso con pies ciegos
las piedras mudas y las hojas secas
y alguien detrás de mí también las pisa:
si me detengo, se detiene;
si corro, corre. Vuelvo el rostro: nadie.
Todo está oscuro y sin salida,
y doy vueltas y vueltas en esquinas
que dan siempre a la calle
donde nadie me espera ni me sigue,
donde yo sigo a un hombre que tropieza
y se levanta y dice al verme: nadie.


Octavio Paz





Quiet and Freedom are the greatest possessions.
Ludwig van Beethoven




Os Verdurin só haviam falado a meia-voz e em termos vagos, mas o pintor, de certo distraído, exclamou:
- Não será preciso nenhuma luz e ele que toque a Sonata ao Luar no escuro para melhor se esclarecerem as coisas.


Marcel Proust








Chegou o tempo...
Chegou o tempo de fechar as mãos,
De recolher as dádivas e dar:


Pra quê bramir no peito o coração,
inflorar a tristeza, encaminhar
quedas no precipício, no vazio,
insculpir vozes que não têm som,


em terra seca libertar sementes...


Pra quê por outros ter os desafios,
Aveludar angústias, dores, com
Sorrisos entre os lábios permanentes?


Chegou o tempo de me despedir
e adormecer nos brados do cansaço:
serenamente os dias a provirem
alheios à jornada dos meus passos.



António Salvado





Continuarão a criar ou inventar os grandes personagens?

Anna Karenina de Tolstoi, Emma Bovary de Flaubert, as personae de Shakespeare, de Balzac, de Dostoevsky entre outros mais, nascem simplesmente de uma certa quantidade e qualidade de tinta que o escritor espraia numa certa quantidade de papel.
E, no entanto, são personagens que fazem estremecer a alma.
Acho que é misterioso a origem, o modo de composição que faz nascer a vida de um personagem.
Parte bem de onde o surgimento de um personagem? De uma imagem? De uma voz? De uma fala? Serão imagens de homem e mulher de carne ou osso , ou/e serão imagens traçadas por um artífice? E, bem podia continuar..
São ,talvez, alguns pedacinhos retirados da vida interior ou do exterior, que à maneira de um mosaico, um escritor vai compondo.
Não sei quantos fragmentos da vida interior ou exterior, ou que imagem, ou...,ou que método, que modo levou a engrenagem de "Cães" de Rui Nunes, sei que quando estive, pela última vez, em Lisboa, bastou-me entrar numa estação de metro pra ver que eles são realmente de carne e osso.Não é invenção.
Por último, pra não me alargar mais , pergunto-me:
Continuarão a criar ou inventar os grandes personagens ?








There is no Frigate like a Book
To take us Lands away
Nor any Coursers like a Page
Of prancing Poetry—
This Travers may the poorest take
Without oppress of Toll—
How frugal is the Chariot
That bears the Human soul.



Emily Dickinson




© Paul Klee



© Giuseppe Arcimboldo



LIBERDADE


Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...


Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.


Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!


Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.


E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...



Fernando Pessoa



© Van Gogh



Folheada, a folha de um livro retoma
o lânguido vegetal de folha folha,
e um livro se folheia ou se desfolha
como sob o vento a árvore que o doa;
folheada, a folha de um livro repete
fricativas e labiais de ventos antigos,
e nada finge vento em folha de árvore
melhor do que o vento em folha de livro.
Todavia, a folha, na árvore do livro,
mais do que imita o vento, profere-o:
a palavra nela urge a voz, que é vento,
ou ventania, varrendo o podre a zero.


Silencioso: quer fechado ou aberto,
Incluso o que grita dentro, anónimo:
só expõe o lombo, posto na estante,
que apaga em pardo todos os lombos;
modesto: só se abre se alguém o abre,
e tanto o oposto do quadro na parede,
aberto a vida toda, quanto da música,
viva apenas enquanto voam as suas redes.
Mas apesar disso e apesar do paciente
(deixa-se ler onde queiram), severo:
exige que lhe extraiam, o interroguem
e jamais exala: fechado, mesmo aberto.


João Cabral de Melo Neto




© Arnulf Rainer


"Penso que devemos ler apenas os livros que nos ferem e apunhalam. Se o livro que estamos a ler não nos desperta com uma pancada na cabeça, para que o lemos? Para que nos faça felizes, como quando se escreve? Santo Deus, nós seríamos felizes precisamente se não tivessemos livros e o tipo de livros que nos fazem felizes são aqueles que nós próprios poderíamos escrever, se fosse preciso. Mas nós precisamos dos livros que nos afectem como uma calamidade, que nos magoem profundamente, como a morte de alguém que amávamos mais do que a nós próprios, como sermos desterrados para florestas distantes de toda a gente, como um suicídio. Um livro deve ser o machado para o mar congelado que há dentro de nós."


Franz Kafka




© Escher





sábado, abril 19, 2003

Just a Perfect Day
Sábado, 19 de Abril de 2003

Ana Teresa Pereira


Talvez seja possível amar um homem ainda antes de o conhecer, por causa de um livro, de um poema sublinhado, de uma casa, de uma música. Lembrou-se vagamente de que em tempos procurara o poema, era de Stevenson, "My house", "my house, I say". Era muito tarde, quase noite fechada, e Katharine Hepburn tocava no escuro a terceira sinfonia de Brahms, e George chegava a correr, com medo de encontrar um fantasma.

Estava frio, muito frio, mas de manhã fizera um pouco de sol, ela levantara-se cedo, como sempre, gostava das manhãs, escolhera um vestido leve, um velho blusão de ganga, a pulseira de aço com pedras semipreciosas, o seu perfume, Hugo Boss, passara os dedos pelo cabelo curto em frente do espelho, os seus olhos estavam muito verdes e tinham um ar assustado. Tomara o pequeno-almoço no café do costume, folheara o bloco de notas onde tomava apontamentos para um livro e ao sair atirara-o para o cesto dos papéis. Passeara longamente, as mãos geladas metidas nos bolsos do blusão, a cidade estava azul, o mar, os jacarandás, os lilases, comprou um ramo de lírios azuis no mercado, alguma fruta, entrou num supermercado para comprar pão e uma garrafa de vinho, aquele estranho ascetismo, algo nela recusava qualquer comida mais elaborada, só conseguia comer pão, um pouco de queijo, fruta.

Quando chegou a casa começava a chover, correu pelas escadas acima e fechou a porta atrás de si, agora tinha medo da chuva, também tinha medo do escuro, com uma sensação de horror afastou as cortinas e ficou a olhar para a varanda, os vasos de plantas, uma camisola que deixara a secar, os pássaros que cantavam nas árvores próximas e não pareciam importar-se com a chuva. Respirou fundo e foi pôr as flores numa jarra, trocou o vestido por um roupão azul-forte e calçou umas peúgas, sentou-se na sala sentindo a presença dos objectos, os livros nas estantes, as pedras, o quadro sem título pintado por um amigo, a reprodução de um Bonnard, uma mulher na penumbra. Colada numa estante estava a página de uma revista de cinema, uma foto a preto e branco de Daniel Auteuil e Emmanuelle Béart, talvez do tempo em que ainda se amavam. Eles odiavam-se quando fizeram "Un Coeur en Hiver", o ódio dava ainda mais força ao filme, lembrou-se deles correndo debaixo da chuva. Mas ela não queria chuva, procurou outro filme para pôr no vídeo e aninhou-se no sofá. Katharine Hepburn sentada num alpendre com Fred MacMurray, o ramo de violetas que ela usava no baile, as violetas que roubara no parque, e as rosas mortas, uma rosa morta pelos teus pensamentos. Foi buscar uma fatia de pão e a garrafa de vinho à cozinha antes de começar a ver "The Philadelphia Story", Katharine Hepburn entre Cary Grant e James Stewart, não sou uma deusa, sou uma mulher de carne e osso, "there is a magnificence in you, Tracy, you're lit from within, like fires, and holocausts". Estava muito escuro lá fora, bebeu um copo de vinho e escolheu o último filme, "Undercurrent", sempre gostara de contos de fadas, e aquele era uma estranha mistura de Cinderela e a Bela e o Monstro, e sempre tivera um fraco por Robert Mitchum, talvez seja possível amar um homem por causa de um livro, de um poema, de uma música, de uma casa, do olhar de uma mulher quando fala dele, da forma como o seu cão o espera. E da sua voz quando fala da "undercurrent" no mar aparentemente calmo, onde se pode morrer.

Ficou imóvel durante muito tempo depois de o filme terminar; levantou-se, levou um copo de água e o frasco dos comprimidos para a mesa-de-cabeceira, sentou-se na cama e pensou que nunca encontrara o poema de Stevenson, mas talvez seja bom deixar algo de inacabado.
Por Dentro do Corpo, para Além
Sábado, 19 de Abril de 2003

%Pedro Sena-Lino

Pela mão de Luíza Neto Jorge, numa tradução insuperável (inventiva, respeitadora do original, mordaz, seca, de um ritmo e força extraordinários - "de la musique, avant tout autre chose"), chega-nos um livro de poesia pornográfica de Paul Verlaine (1844-1896), entre o absinto da carne e a memória de anteriores bebedeiras. Parece-nos que mais que um inventário de aventuras sexuais, descritas com óbvia intenção de "épater le bourgeois", ou de rememoração de um passado, convivem duas intenções: o de levar mais longe o trabalho do libertino, num tempo onde a atenção violenta da suposta moralidade apertava cerco (e que Verlaine, pelo seu relacionamento com Rimbaud, pagou caro); e de chegar para além do corpo, para uma espécie de fusão e de totalidade que se atinge pelo corpo, mas depois deste.

O desejo é em si apenas um e absoluto - seja de carne, de alma ou de outras espécies de outro, que atiram o 'eu' para além de si. "Como a Prostituição do coração posto a nu, a poesia liberta de tudo sem fazer outra coisa que libertar, pois o prazer não é nada em si, mas apenas a força", diz Pierre Jean Jouve. O mesmo Jouve apontou, no seu espantoso livro sobre o D. Juan de Mozart, que, na segunda metade do século XVIII, "a função do libertino é destruir, não é ser livre", remetendo a importância do "trabalho do libertino contra a moral e a sociedade", e sendo "percursor da sociedade de que faz parte; precede a revolução de novos valores morais: o dissoluto prepara o fanático." (tradução nossa).

Aqui encontramos Paul Verlaine, que assina "Hombres", obra póstuma, uma sua lista de aventuras sexuais precisamente com uma alusão ao célebre "Catalogo" de D. Giovanni, na ópera de Mozart: "Mille e Tre" (supostamente as mulheres que o sedutor teria já conhecido em Espanha). O inventário verlainiano dos seus amores efébicos é, porém, bem diferente, e não apenas no género das suas conquistas; a revolução avançou, e ela deve fazer com que o libertino abra mais e mais lugar mental por entre mais e mais corpos: "Meus amantes não são nobres nem abastados:/ Rurais já tive alguns, o resto são operários,/ Idade: quinze a vinte anos mal amanhados,/ De força assaz brutal e modos ordinários. (...) O seu pau vigoroso, e o rabo prazenteiro/ Meu cu e meu caralho à noite sempre excitam; Suas carnes - de dia ou sob o candeeiro - Meu lasso, mas tenaz, desejo ressuscitam." (pág. 23).

Vamos descer mais dentro ao corpo, sem a ajuda filosófica de Sade - a poesia aqui é um corpo perfurando outro: "Restos de merda, de requeijão/ Não são bastantes para estarrecer/ Nariz e boca meus, e o tesão,/ Na paixão que é para mim lamber.// Acho, em suma, graça ao perfume/ Que tem o rabo dos meus amados." (pág. 45).

E depois, completando o catálogo, Verlaine dá-nos uma espécie de completude da libertação, juntando aos seus "Hombres" (a palavra em castelhano relembrando de novo o Catálogo Mozartiano) algumas "Mulheres", advertindo, porém, no primeiro poema, que "A fêmea é bom, por certo, e merece uma foda,/ Seu cu honra lhe presta, inda que obeso em toda,/ E já o saboreei muitas vezes, confesso (...)"; mas que "pôr esse bom cu a par de um cu viril!/ Gordo, prático, sim, mas não voluptuoso,/ E o cu do homem, flor de estética e de gozo, dizê-lo, frente àquele, apoucado e servil?" (pág. 19).

Estamos bem distantes das damas de honra supostamente ferida que faz parte do imaginário das vítimas de D. Juan/ D. Giovanni. O novo inventário que Verlaine faz consiste em trazer para a poesia não só o rol das conquistas, a descrição dos actos, o funcionamento teatral do jogo sexual. Não há erotismo, aqui: há uma gráfica descrição do caminho de carne a seguir: "Nádegas, alma, mãos, meu ser todo em roldão,/ Dorso, memória, pés, peito, nariz, orelha/ E a fressura, tudo entoa uma canção/ E numa roda-viva em mim se destrambelha." (pág. 23). O objectivo, indica-o estrofes depois, é libertar-se ("no bafo e suor seus já me perco de mim", pág. 25), e vergastar ao som do sexo supostas morais, imagens religiosas: "Antoine, ilustre já pela sua enorme piça,/ Ele, meu supremo Deus e meu rei Salomão,/ Com a pupila azul meu coração atiça/ E verruma o meu cu com o seu mortal espigão." (pág. 25). Todos eles "nunca serão demais" (pág. 27) para impor a libertação do corpo no corpo como primeiro, definitivo, básico e urgente lugar da liberdade humana.
Direito ao Furto
Sábado, 19 de Abril de 2003

%Rui Catalão

"No decorrer da minha história - disse o bom Andrés - reparei que vossa mercê não recebeu mui bem isto de chamar à nossa companhia república, parecendo-lhe que nos governamos só pelo apetite de furtar, sem outras leis nem razão, quando é muito o contrário; porque não se faz entre nós cousa nenhuma que não esteja regulada com razão, estatutos, leis e pragmática, castigando os que de outra guisa exercerem a nossa arte."

Uma espantosa coincidência e afinidade aproximam "A Desordenada Cobiça dos Bens Alheios" (1619), redigida pelo médico e filósofo espanhol Carlos Garcia, no exílio em Paris, com a "Arte de Furtar" do padre jesuíta português Manuel da Costa. Não só partilham o mesmo tema, o do roubo, como procuram desenvolver uma grelha de análise que lhes permita incluir qualquer modelo de actividade social no contexto do tira-e-leva-para-casa. Os dois livros foram escritos no séc. XVII e, ironicamente, a ambos os autores lhes foi "furtada" a sua própria obra. No caso de Manuel da Costa, foi só em 1940 que lhe foi restituída a autoria (depois de ter sido atribuída ao Padre António Vieira e a uma diversidade de outros autores mais conhecidos), enquanto Carlos García, vítima da euforia pseudonímica, com autores famosos a pretenderem passar por anónimos, chegou a ter o seu livro desviado para junto do monumental património bibliográfico de Cervantes.

Se a amplitude retórica de Carlos García e Manuel da Costa é coincidente, até pelo método universal reconhecido ao furto, já a perspectiva moral diverge. O jesuíta português desfaz as práticas económicas e políticas do seu tempo. Desde o vendedor de banca até ao mais alto cargo governamental, os modelos de transacção e negociação que analisa são reduzidos a operações de roubo. Tal como "O Príncipe" de Maquiavel, a sua obra é, no entanto, um tratado que tem como destinatário um monarca, D. João IV neste caso, e o seu discurso ético visa preparar numa lógica de Estado aquele que governa para as acções de interesse que subjazem a qualquer comportamento humano. No caso de García, cujo sentido de humor é bem espanhol, não existem excepções, porque todos somos humanos - até o Estado. E somos humanos ao ponto de a ordem dos ladrões preconizar também princípios de justiça e paridade, pois o furto participa de uma dinâmica social, em que os bens detidos por um são repostos no mercado para benefício de outros.

É num contexto tipicamente barroco, onde se entrelaçam quem-é-quem e quem-se-faz-passar-pelo-quê, que se ergue magnificamente "A Desordenada Cobiça...", jogando com o estilo e a linguagem pícara; o registo documental (de quem descreve o que viu na prisão e se limita a transcrever, mesmo o calão e a linguagem cifrada, do que ouviu de outra personagem, o ladrão Andrés); uma vertente alegórica em que a "república dos ladrões" mais não é do que um enquadramento teatral que corresponde ao modelo de todas as sociedades organizadas; e uma inversão metafórica em que o inferno deixa de fazer parte de uma chantagem mística no após-vida para passar a ter lugar na realidade viva e concreta das prisões.

"A prisão não é senão uma terra de calamidade, morada de trevas e habitação de miséria, em que habitam o sempiterno horror e nenhuma ordem", avisa-nos o autor. Sabe-se hoje que passou uma temporada nos calaboiços (mais propriamente, oito meses), sem que nenhuma acusação ou processo legal lhe tivesse sido instaurado, para além das calúnias de que era alvo enquanto médico e das injúrias sobre os seus conhecimentos filosóficos. Quase quatrocentos anos depois, o seu discurso sobre "o inferno" guarda ainda a intensidade de uma experiência reflectida em directo: "É uma torre de Babilónia, onde todos falam e ninguém se entende. É um composto contranatural, em que se vê a paz de dois contrários, misturando-se o nobre com o infame, o rico com o pobre, o civilizado com o criminoso e o pecador com o justo. É uma comunidade sem concerto, um todo 'per accidens', um composto sem partes, uma religião sem estatutos e um corpo sem cabeça. É a prisão sepultura de nobreza, desterro da cortesia, veneno da honra, centro da infâmia, quintessência do desprezo, inferno dos bons entendimentos, cilada de pretensões, paraíso do engano, martírio da inocência, turvação da verdade, tesouro do desespero, cadinho da amizade, despertador da raiva, cevo da impaciência, mina de traições, covil de raposas, refúgio da vingança, castigo da força e verdugo da vida."

O oposto do inferno é necessariamente o céu, descrito pelo entrevistado de García como uma vida de galhofa, malandragem e muita paulada, em que a liberdade é o palco para representar uma felicidade que lhe foi roubada e que tem de recuperar à força.

A Desordenada Cobiça dos Bens Alheios
Autor: Carlos Garcia
Tradutor: José Colaço Barreiros
Editor: Antígona


All That Jazz
Sábado, 19 de Abril de 2003

%Mafalda Ivo Cruz

Boris Vian viveu apenas trinta e nove anos. A 23 de Junho de 1959 acabou-se o jazz, a vida, a liberdade louca em Saint-Germain des Prés e a juventude. Uma doença de coração levou-o no princípio do Verão (fica-lhe lindamente).

Tendo nascido novo, vivido novo e morrido novo como James Dean, Vian foi, por assim dizer, um ser sem mácula. Um rapaz formado em Engenharia, de signo Aquário e que foi acertar em cheio no pós-guerra e na pequena aldeia dos existencialistas para melhor explodir para a vida com uma alegria, uma ironia e uma velocidade estonteantes.

Vian era defensor apaixonado de uma moral anticonformista, praticava o "antipensamento" com diz Pascal Pia, embora este explique que isso não estava nas intenções de Vian porque Vian não tinha intenções nenhumas. Vian só não foi anti-Vian porque nunca lhe ocorreu.

Antimilitarista, escreveu imensas canções que ficaram no repertório de Serge Reggiani. Vian fartou-se de falar do amor, da morte e da estupidez. Falava com um requinte e uma ligeireza extraordinários.

Não se sabe nada de sinistro a seu respeito, o que é uma proeza. A época era de festa, de alívio, de fogo-de-artifício. Paris não foi bombardeada durante a guerra e a penúria em que se vivia não assustava os que tinham vinte anos, viviam a aventura da Rive-Gauche e viravam costas aos dramas recentes, até porque gastavam as noites a dançar e os dias a dormir como anjos, todos embrulhados uns nos outros.

No falso policial "Morte aos Feios", traduzido por Pedro Tamen, há o eco da euforia dessas noites - e desses dias... de jazz. Jazz que, por sua vez, também se terá pensado como uma contramúsica, porque partia da improvisação.

O contra-romance de Vian - a que ele próprio nunca chamou assim, limitando-se a escrevê-lo com o máximo de prazer de que era capaz - improvisa-se romance o tempo todo. E depois farta-se de rir dos seus próprio "gags".

Por exemplo, começa com comentários de um machismo insuportável, que ao fim de algumas páginas se desvendam da seguinte maneira: "Eu queria ficar virgem até aos vinte anos." Altura em que descobrimos que a maior parte destes personagens "duríssimos" tem entre dezassete e dezanove anos.

Trata-se, em substância, de uma história policial contada a um ritmo galopante, uma história de tráfico de fotografias onde se vê a vivissecção de raparigas (apesar da ligeireza, o mais terrível é abordado, e talvez paire o fantasma dos documentos fotográficos do "laboratório" do "investigador" Mengele, um homem muito conhecido!... Mas Vian recusa-se a ceder a sua juventude, não quer ser sério, não quer entrar por aí).

A imitar os clássicos tenebrosos de Bogart e literalmente a gozar com a bela literatura francesa, Rock Bailey, Gary Kilian e o inspector Nick Defato, os protagonistas, lá seguem a investigação até ao fim. "Largue-me! Vampira! Deixe-me em paz. Eu não quero. Está a chatear-me. Ó mãe!..."

O último capítulo tem um nome imponente. Chama-se "Honra à Marinha".

Vian prefere o jazz à literatura, o cinema à política, embora seja absolutamente antimilitarista, escreve os livros que lhe apetece e este assinou: Vernon Sullivan. E quando saiu causou um escândalo enorme.

Não sendo considerado apenas um escritor, mas antes um criador, já que escreveu sobre música - "Crónicas de Jazz" publicadas em 1967 - e fez cinema, dedicou-se sempre a experiências diversas, porque além das canções que compôs tocava trompete maravilhosamente e, mais importante ainda, soube toda a vida enumerar paradoxos com uma boa educação vagamente maldosa, por isso Vian é acima tudo a sua vida exemplar.

Mas escrevia, sim. E nestes romances - além daquele que estamos a referir agora há ainda "A Espuma dos Dias", "O Outono em Pekin" e mais dois ou três - a forma não é tão simples assim.

Quer dizer: Vian só aparentemente será fácil de traduzir.

Tudo aquilo que vai da paródia à poesia sem nunca querer pousar em sítio certo por horror à pastilha elástica da pequena tragédia e a paixão amorosa como lugar-comum maçador, que fica tão bem à burguesia escritora (por exemplo, na "Espuma dos Dias" os personagens e o mundo em seu redor definham pelo excesso da paixão recíproca, pelo cumular da alegria que já não se suporta...), tudo isto, dizíamos, vive imenso das piadas sobre o francês literário, os tiques da literatura e do escrever "bem". Em "Morte aos Feios" (e entre milhares de outras coisas) Vian deita um olhar torvo à expressão "chapéu encantador". Uma mania que passou de moda, é certo. Mas que na época dele não falhava, aparecia sempre. E depois ainda a... "restaurante encantador", outra mania, esta que ainda dura e é de facto irritante. E depois encolhe os ombros. E como sempre passa a toda a velocidade e quem quiser que apanhe e se ria.

E é ainda a poesia de Vian que impregna tudo. A sua noção de que a morte chega cedo (e se calhar no Verão). Um romantismo de postura afogado em imagens de banda desenhada de uma vivacidade tão luminosa que é como se aos 39 anos ainda fosse a infância.

Boris Vian ganhou a maratona da sua própria vida, chegou a arquejar e morreu de calor como toda a gente devia morrer. E tornou-se num dos mitos de uma geração que os acumulou, a começar em Sartre, Camus, etc. Não é mau, para quem não queria nada de especial! Yees! "Tenho a cabeça a soar como um sino velho."
tenho uma boa notícia pra mim


hoje, ao fim da tarde, passei pela assírio & alvim e tive a surpresa de encontrar um livro novinho a ler. finalmente ele está à venda. chama-se "a boca na cinza" (acho que não me enganei no título). a editora é relógio d' água. a capa tem um pormenor do quadro las meninas de velásquez. hoje espretei. amanhã rondarei. e talvez, depois de amanhã, tiro o dinheiro da bolsa e trago-o pra casa.


os outros livros que vão ficar por lá , nem sequer os vigio de perto....
ouço lá do fundo: "Vem. Abre o livro. / Quem lê não está morto. / Somente aproxima as palavras / da chama do tempo" (J. M. F. Jorge, Museu das Janelas Verdes, pág. 44).

ontem telefonei ao herberto helder...

....e ele deu-me a prévia autorização pra colocar um poema nesta janela."sim, lídia, bloga os meus poemas", diz ele....




Aos amigos


Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
-Temos um talento doloroso e obscuro.
construímos um lugar de silêncio.
De paixão.



herberto helder


"Painting has nothing to do with illustration, it is in away its opposite...In a way it's purely by chance that something happens on the canvas...but while I'm painting, suddenly, out of the painting itself, in some way these forms and directions that I hadn't anticipated just appear. Itis these that I call accidents...Images can shatter the old order leaving nothing the same as before."


Francis Bacon, In Conversation with Michel Archimbaud, Phaidon, 1993.

Iraqi National Museum deputy director Mushin Hasan sits on destroyed artifacts after the looting of the Baghdad museum.


The sacking of Iraq's museums is like a "lobotomy" of an entire culture, say art experts. And they warned the Pentagon repeatedly of this potential catastrophe months before the war.


Imaginassem as amendoeiras
que estamos em pleno outono.
Vestem-se como.


Púrpura, ouro,
estão perfeitas como estão:
erradas.


Pudesse um poema, um amor,
pudesse qualquer esperança
viver assim o engano:


beleza, beleza,
beleza,
mais nada.


Eucanaã Ferraz
, Desassombro
Certa noite, longe daqui alguém me disse que a procura da Beleza é a procura de um lugar perdido. A perda desse lugar leva os Homens a sentirem uma enorme e incurável melancolia por se tratar de uma harmonia esquecida, um tempo onde se decifravam as chaves do Universo pelas imagens, uma "Idade de Ouro" perdida ( a Arcádia de Virgílio?), um mundo em que as correspondências eram compreendidas e comunicadas. Não se pode nomear a Beleza, nem explicá-la, nem falar dela. A beleza salva. A cor deslumbrante, a sumptuosa construção, o luxo agressivo, a sedução das violentas estruturas da Beleza. A construção da Beleza tem de ser possível, a Forma será o seu caminho. A Beleza no horror irá sarar as minhas feridas.


Rui Chafes, "Os Laços Invisíveis"


5 601036 307313



Dizem que ressuscitou o rock
numa pose de vampiro. Não sei.
Pelas olheiras, sobre o cabedal
tão velho, mais parece um agarrado,
desses que costumo encontrar
no 42. Mau hálito tem- quase tanto
como a voz. Mas leva sempre
suminhos, crentes de beleza, fiambre.
Dá-me a ideia que nele até o olhar
cansado é uma mentira cosmética,
que depois usa em voz alta contra o tal
"sistema". Eu talvez gritasse melhor.





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Estou a ver o estilo:a folha de canabis
ao peito, os óculos de Foucault
não-li e uma devoção macrobiótica
tão estúpida quanto inquebrantável.
Esta gente custa- e o que é pior:
cheira mal. Assoa-se à manga
da camisola, cheio de ideologia
nos sovacos. E vem fazer compras
como se estivesse outra vez no Lux,
entre amigos abstémios que só
não legalizam a vida porque
ainda há limites para o meu gosto.




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Conheço-lhe a tromba da televisão,
com a barba rude, intelectual, tão preta
- mas a dela também, loura e
desfocada. Acho que é dos jornais.
São esquisitos, nunca falam
(entre eles, ou comigo).
Não me agrada assim tanto
dizer "boa tarde" a Deus, enquanto
vou passando vinhos caros, gin
e produtos bizarros cuja serventia
desconheço. Se a esquerda é isto,
bem posso ir esperando subsídios,
aumentos, um funeral mais em conta.





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É o que se chama um "higiénico": latas,
comida feita e embalada, whisky,
cerveja ou vinho (quando não os três).
Deve beber-lhe bem e mudar pelo menos
duas vezes por semana a areia do gato.
É tímido, inseguro e- por isso mesmo-
extremamente rápido a arrumar as compras.
Vai pagar outra vez com cartão. Hoje
parece mais triste, talvez por no seu íntimo
saber já que vai escrever um poema
sobre mim, mera ajudante de leitura
dos códigos fatais em que cada um se expõe.


Mas para quê tantas palavras? Bastava-lhe
ter dito que me chamo Isilda
e que a vida que tenho não presta. A dele,
suponho, não será muito mais feliz.
Escusava era de maçar a gente
com o que sofre ou deixa de sofrer.


A minha sabedoria é muda, desumana:
um dia enlouqueço ou fico para sempre presa
a um pesadelo sentado, com barras transparentes.



Manuel de Freitas
de: Isilda ou A Nudez dos Códigos de Barras (2001)

"Que se passa para nós no domínio musical? Devemos em primeiro lugar aprender a ouvir um motivo (...) a percebê-lo, a distingui-lo, a limitá-lo e isolá-lo na sua vida própria; devemos em seguida fazer um esforço de boa vontade - para o suportar, mau grado a sua novidade - para admitir o seu aspecto, a sua expressão fisionómica - e de caridade - para tolerar a sua estranheza; chega enfim o momento em que já estamos afeitos, em que o esperamos, em que pressentimos que nos faltaria se não viesse (...) entretanto tornamo-nos os seus humildes adoradores, os seus fiéis encantados que não pedem mais nada ao mundo senão ele, ainda ele, sempre ele.
Não sucede assim apenas com a música: foi da mesma maneira que aprendemos a amar tudo o que amamos. A nossa boa vontade, a nossa paciência, a nossa equanimidade, a nossa suavidade com as coisas que nos são novas acabam sempre por ser pagas porque as coisas, pouco a pouco se despojam para nós do seu véu e apresentam-se aos nossos olhos como indizíveis belezas: é o agradecimento da nossa hospitalidade. Quem se ama a si próprio aprende a fazê-lo seguindo um caminho idêntico: existe apenas esse. O amor também deve ser aprendido."


Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, aforismo 334



"Só sei que a música é um sine qua non na minha existência. Redefine a percepção que tenho de mim mesmo, ou melhor, aquilo que eu busco no transcendental. Por outras palavras, demonstra-me a realidade de uma presença, de um "além" factual, que resiste à circunspecção analítica ou empírica. Esta realidade é simultaneamente um lugar-comum, trivial, algo de palpável e de ulterior. Exerce um singular domínio sobre nós. Nem a psicanálise nem o descontrucionismo ou o pós-modernismo conseguiram dizer algo de esclarecedor sobre a música, o que me parece um facto crucial. Esses jogos linguísticos de decifração subversiva, de suspeita na esteira da Nietzsche e Freud, são praticamente impotentes no que toca à música. Permanecem encurralados, na sua arrogância, dentro da esfera linguística que dizem relativizar ou deslindar. Por que razão os havemos de levar a sério a nível humano ou filosófico?
Outra coisa se poderá inferir- como o fez Wittgenstein quando nos contou que, mais de uma vez, o lento movimento do Terceiro Quarteto de Brahms o arredara da ideia do suicídio. A música autoriza, convida à conclusão de que as ciências teóricas e práticas ou a investigação racional jamais conseguirão decifrar completamente a existência. (...)
Os argumentos filosóficos desde a antiguidade até aos nossos dias- de Platão, de Nietzsche, por vezes de Wittgenstein-podem ter uma cadência e musicalidade distintas. As afirmações de que a arquitectura é "música congelada", de que a poesia aspira à condição de música enquanto tautologia perfeita de forma e contéudo (sendo que na música a forma é o conteúdo e vice-versa),são imagens que exprimem verdades profundamente sentidas mas não fundadas na razão.
Quem pode definir a "alma"? Mas quem é que não percebe intuitivamente a apostrófe de Shakespeare contra aqueles que "não têm música na alma", uma ideia cristalizada pela designação "música soul"?
Não ouso sequer imaginar as limitações, a miséria humana infligida pela cegueira, mas interrogo-me se a surdez não será a mais escura das escuridades."


George Steiner
, Errata: Revisões de uma vida


Uma das mais influentes vozes femininas do mundo árabe
Um belíssimo documentário que nos dá o perfil de uma mulher que tinha a musicalidade de Ella Fitzgerald, a presença de Eleanor Roosevelt e a audiência de Elvis Presley.
Esta camponesa, nascida na viragem do século XX, tornou-se rica famosa e imensamente influente. Quatro milhões de pessoas encheram as ruas do Cairo a-quando do seu funeral, em 1975. Ainda hoje o seus discos superam as vendas de qualquer outra cantora árabe.
O seu nome era Umm Kulthum.
©rtponline

Elogio da Serpente
Sábado, 19 de Abril de 2003

%António Mega Ferreira

"Atlântico", o romance fotográfico de Pedro Rosa Mendes e João Francisco Vilhena, é um objecto estético singular: faz-se de dois olhares, um que vê, o outro que escreve, e de um terceiro olhar, estereoscópico, que lê o que vê e tenta descodificar o que lê. Nem por isso deixa de ser um romance, isto é, um texto que apela à sensibilidade e à imaginação do leitor, sendo, mais, um romance que a si mesmo se apresenta e enuncia, na proposição que leio a páginas 42. É mesmo antes da imagem de uma maçã mordida (vá lá saber-se por quem...), em pleno diálogo entre Jesús e Sylvain, um dos mais notáveis "morceaux de bravoure" deste romance apaixonante, onde esses lugares selectos abundam, em número dificilmente encontrável na ficção portuguesa contemporânea. Diz Jesús, e, com o correr do romance, havemos de saber porque é que ele tem tanta razão ao dizê-lo: "Andamos com sede de vítima, de língua no chão. A serpente é esse rasto indeciso. Uma onda. Uma corda sem nó, sempre enrolada, escondendo o seu verdadeiro comprimento." É uma teoria do romance, numa frase que quase cabe na palma da mão: que faz quem escreve, que não seja inventar a desgraça e os seus actores, a dor e a sua parda luminescência, a ausência e o seu arrependimento? Não há romances felizes, ao contrário do que muito poucos teimam em querer provar. Esses, normalmente, acabam a escrever maus romances. Este não escapa à regra da infelicidade, porque a serpente, emblema e substância do Mal, verdadeira incarnação do demónio na terra, depois de o ter sido, espectacularmente, no Paraíso, a serpente é que comanda a nossa sede de imprevisto e de recordação, a nossa inapelável deserção do futuro para nos refugiarmos, como um bicho na casca que lhe foi dada ao nascer, numa certa memória do passado.

Diz Sylvain, essa exuberante e delicada flor do deserto, que ao longo do romance nos ensina a sabedoria de morrer: "A felicidade é uma diáspora. Chamamos berço ao que já era exílio. Chamamos sonho àquilo que já traímos." Por isso, e só por isso, é que escrevemos: para reinventar um passado possível, que nos reconciliasse com o futuro que nos falta e nos apaziguasse na sede de remirmos o esquecimento de nós a que nos votámos.

Deve ter sido essa assombração do passado que tolheu os autores, na noite em que ouviram, num hotel da Foz do Arelho, a ponta por onde pegaram na serpente da invenção. Devia ser uma história de histórias, porque é isso que o livro é, uma acumulação (por vezes, desconcertante, por vezes, prodigiosa) de relatos, informações, diálogos, documentos, farrapos de lembranças e restos de invenções, materiais heteróclitos aos quais o talento simultaneamente literário e visual (mas um não vai sem o outro, pois não?) emprestou a forma da serpente que astuciosamente se desembaraça do seu sono fingido para desatar as torrentes do sonho e da fantasia.

E que passado este, aquele a que Wim Wenders queria dar um filme, a que eu gostaria de ter dado uma forma, aquele a que Pedro Rosa Mendes e João Francisco Vilhena emprestam finalmente, com olhar português, uma atmosfera e um vestígio de cor: uma aguarela trágica, feita de naufrágios e enganos, de traições e desencontros, de violações e degredo, sobre pano de fundo português, digamos, para abreviar, em chita de Alcobaça. Como é costume dizer, com circunspecção académica: o "espaço de representação" de "Atlântico" é Portugal, entre a Segunda Guerra e os primeiros anos da nossa absurda guerra africana, entre os anos 40 e os anos 60: melhor, não "entre", mas a cavalo, montado em pose, como D. José no Terreiro do Paço, em dois momentos igualmente suspensos da nossa História contemporânea. E nós somos sombras, apenas espectadores do drama urdido por uma série de acasos e coincidências, de heroísmos e cobardias, que se passam, diante de nós, na tela do nosso desejo - que não é o mesmo que a nossa vontade. Pedro Rosa Mendes faz-nos embarcar na aventura desses momentos através de uma ficção cinematográfica que tem a ambição das superproduções, mas que não se reclama de Cecil B. de Mille nem de Michael Curtiz: é no inesquecível "Aurora", de Murnau, que se há-de encontrar a referência estética maior deste romance tingido de rasgos expressionistas, romance de iluminações e fantasmagorias, de detritos e de vaidades, de resíduos e de segredos, de murmúrios e enigmas, onde apenas se salva o fogo que decanta a nebulosa dos tempos e purifica a nossa invenção do passado. "Somos arquétipos em narrações de luz", diz Sylvain, a propósito de "Aurora". Justamente: são esses jactos que iluminam a parte - ou partes - da história destas figuras, todas alheias, todas tocadas pela infinita graça literária da perdição, que emergem da sombra, que nos devolvem à nossa consciência da modernidade demencial que nos fez como somos. Há uma ressonância conradiana neste tecer de referências que, pouco a pouco, vão compondo o filme que os autores projectam na nossa imaginação. E outra, mais recente, de "newsreel", a de um passado que mal vivemos e, por isso, nos pede a sua convocação.

A nossa memória da guerra, da Segunda Guerra, é a memória dos documentários e das ficções que a sustentam, uma memória de "discursos sobre": e por isso, construindo passo a passo um guião cinematográfico fingido, os autores desenham o "story-board" de um inquérito à nossa absurda condição de seres simultaneamente contemporâneos e arcaicos, reduzidos pela força da escrita e da imagem à condição de sobreviventes de um qualquer "stalag" onde se aprisionou, durante demasiado tempo, a nossa dúvida de viver na História, o exercício do direito ao pesadelo. Como poderia eu desatar e refazer os nós desta intriga, que se dissolve, por fim, na banalidade fingida da cupidez e do interesse mesquinho (mas isso é um remate magistral), se é de "nós", habilmente enrodilhados na narrativa, que se constrói "Atlântico", uns nós que, todos, se desatam num momento vertiginoso que nos vai devolver enfim a uma referência reconhecível do nosso passado recente - e que, ao leitor, e apenas a ele, compete descobrir.

Porquê nós? Porquê situar aqui, frente ao Atlântico, a convergência destes destinos inventados, que mais parecem personagens de romances de aventuras largados de pára-quedas num sertão sem nome nem paisagem? Eu acho que é por termos sido apenas figurantes, ou nem isso, apenas espectadores pouco atentos da tragédia universal do século XX, que nos continua a fascinar tanto o tempo de desassossego e sofrimento da Segunda Guerra Mundial. Por isso, porque a nossa passividade é um vaso onde se podem depositar tantas e tão desvairadas versões, omissões e desaparecimentos, acena-nos o lenço de despedida de um qualquer contingente que nunca chegou a partir, de um qualquer gesto de heroísmo que nunca teve nome português, de uma qualquer aventura em que não fomos chamados pelo destino a oficiar. É uma nostalgia sem objecto, um "frisson" sem ter de quê, um "je-ne-sais-quoi" que nos faz sentir incompletos, por não termos sido plenamente naquele tempo em que tudo era vivido à beira de todas as falésias do mundo.

Resta-nos o mar. Aqui é de nós que fala Jorge, o dono actual do Hotel do Facho, a ponta da serpente, quando proclama: "O mar é aquilo que está cheio!" É o poço de invenções de que está repleto o romance de Pedro Rosa Mendes e João Francisco Vilhena. E é o nosso horizonte de desejo, o muro de lamentações da nossa culpa, a mão divina do nosso esquecimento. No mar está tudo o que não sabemos daquilo que nos esquecemos de lembrar. Como não temos inimigos, inventamo-los no mar: o Atlântico é o nosso deserto ocidental.

É costume dizer que um romance é um diálogo entre duas pessoas: quem escreve e o leitor solitário que o lê. Este romance é uma excepção, já o disse: enquanto o lia, ia pressentindo que tinha na minha frente, não o olhar de um, mas o de dois autores, o da escrita espiando a pausa com que tentava ler as imagens, o outro, impaciente, arrancando-me constantemente, por ciúme e sentido possessivo, ao fascínio das palavras. Dei por mim a pensar que, provavelmente, neste "ménage à trois" tão pouco discreto, o "terzo incomodo" era eu. A última frase do livro deixou-me na dúvida: "A cruz são três. Fumar são dois. A viagem sou um." Nada nos impede de pensar que, pousada a cruz e consumidos os cigarros, resta o leitor para seguir viagem, num "percurso" que só ele poderá reconstituir, estimulado pelo filme que a serpente realizou, e cuja última imagem se acaba de extinguir, em prata e cinza, fora de si. É essa "invitation au voyage" que vos faço: espera-vos o "Atlântico"; e não conheço viagem mais gloriosa do que aquela que se empreende rumo ao desconhecido.

segunda-feira, abril 14, 2003


Osório e Os Novos
Sábado, 12 de Abril de 2003

%Luís Miguel Queirós

Em "Os Dois Crepúsculos" (1981), Joaquim Manuel Magalhães recolhe um texto de 16 páginas dedicado aos dois primeiros livros de António Osório. Encerrada a época dos manifestos literários, não é hoje muito habitual que um ensaio exerça influência decisiva sobre a própria criação poética do seu tempo. Parece difícil negar que este exerceu.

Um conjunto alargado de críticos e ensaístas recentemente ouvido pelo Mil Folhas a propósito da nova poesia portuguesa mostra-se quase unânime em fazer remontar a Magalhães, para o bem ou para o mal, aquela que parece ser uma das vias dominantes da lírica dos últimos anos. Pedro Mexia, ele próprio uma das vozes significativas da nossa poesia actual, afirma que esta "sai directamente dos anos 70". E, como se sabe, na terminologia da crítica literária nacional, "anos 70" é, salvo indicação expressa em contrário, um convencionado sinónimo de Joaquim Manuel Magalhães.

Por mim, sinto-me mais próximo de Manuel Gusmão, quando este afirma não sentir nos poetas mais novos o "saber prosódico muito nítido" e a "vontade de violência" que encontra na poesia de Magalhães. Se pensar em alguns dos mais significativos poetas revelados nos últimos anos, como Jorge Gomes Miranda ou José Miguel Silva (talvez o que mais aprecio), e sobretudo no próprio Mexia, parece-me começar a ser tempo de retirar da sombra um outro nome: o de António Osório. Ou, mais exactamente, o Osório que vai de "Raiz Afectuosa" (1972) a "Décima Aurora" (1982).

Num poema do seu primeiro livro, "Duplo Império", Mexia encerra um breve inventário nostálgico de colecções e ofícios - temas já de si osorianos quanto baste - com estes dois versos: "A mais delicada colecção:/ os seres amados". Osório não escreveu estes versos, mas pertencem-lhe como se os tivesse escrito.

A presença deste autor nos outros dois poetas que referi é consideravelmente mais oblíqua e talvez só possa mesmo ser avaliada à luz do que Magalhães escreveu nesse já referido ensaio de "Os Dois Crepúsculos". E não me refiro tanto ao célebre "voltar ao real", transformado em equívoca palavra de ordem, mas, por exemplo, na referência a uma "retranquilização da linguagem", ou ainda em palavras como estas: "Voltar a contar de si, voltar ao coração, voltar à ordem das mágoas por uma linguagem limpa, um equilíbrio do que se diz ao que se sente". Não é este o programa que se adivinha em alguns dos mais relevantes poetas actuais? Creio que sim. Mas convém recordar que Magalhães não publicou este texto sob o título "Manifesto para uma nova poesia portuguesa". Chamou-lhe, simplesmente, António Osório.

Como outros o são de outros modos, este é um programa arriscado. Deitar fora esse "saber prosódico" de que fala Gusmão, juntamente com a água do banho da pirotecnia formal e da obsessiva ocultação de referentes, parece-me ser um dos perigos à espreita. A tendência para alguma rarefacção temática - penso, por exemplo, nas omnipresentes e sentimentais "recollections of early childhood" - pode ser outro

Ensaio de Uma Despedida
Sábado, 12 de Abril de 2003

%Fernando Pinto do Amaral

Uma das questões com que a poesia portuguesa mais recente se tem confrontado diz respeito ao modo de lidar com as emoções: digamos que, após um período de uma certa libertação e de regresso a um lirismo mais carregado de subjectividade - de que o exemplo mais conhecido e hiperbólico terá sido uma escrita como a de Al Berto -, alguns poetas mais jovens, embora aproveitando o essencial desse clima, mostram-se por vezes cépticos quanto aos efeitos dessa libertação, desconfiando também de quaisquer virtudes da literatura.

Podemos começar por aqui a abordagem deste novo livro de Manuel de Freitas (n. 1972), uma das mais consistentes revelações dos últimos anos. De facto, no seu universo tão desencantado, é difícil que isso a que chamamos "literatura" possa ainda representar qualquer hipótese de salvação para os seres humanos: "Não mais a literatura, os seus / fúteis e imperiosos desígnios / (...) // E a mentira (a literatura) / é ainda a improvável derrota / de que não nos salvaremos / nunca. Tão igual à vida, portanto" (p. 12).

É a partir desta noção desiludida quanto ao papel da literatura que se torna legível uma constelação de temas e motivos já habituais na poesia de Manuel de Freitas e no seu magoado lirismo urbano: a noite, com os "guindastes da insónia" que nos encerram em apartamentos infernais (cf. "Terceiro Direito", p. 13); a deambulação solitária por bares onde se cruzam personagens desesperadas, sem rumo; ou ainda as fugas impossíveis a esse cenário através das miragens proporcionadas pela anestesia do álcool ou pelas ilusões do amor: "Por exemplo o amor, / essa estranha mistura de angústia, desejo / e novamente angústia" (p. 48).

Tudo isto surge aqui articulado numa escrita relativamente serena, pouco ou nada crente na "retórica gasta" das palavras, no "solene esgar da poesia" (p. 80) ou mesmo nesse "infigurável absurdo a que chamamos Deus" (p. 73). E sobretudo graças a um estilo que consegue aliar as reflexões sobre tópicos tradicionalmente considerados literários ou filosóficos - o amor, a morte, a salvação - e, no pólo oposto, as referências à banalidade de uma existência material, suja e repetitiva nos seus contornos cronológicos: "Nada é mais monótono que uma biografia: / 'Um dia e outro dia', como escreveu Irene / Lisboa" (p. 65).

A leitura deste livro obriga-nos assim a percorrer sem complacência (mas também sem receio de nos emocionarmos) essa "distância que vai da alma ao / estômago" (p. 64), para aí descobrirmos a declinação de um real feito de sensações quotidianas, de imagens e de sons quase sempre identificáveis em função da dolorosa experiência vital de um sujeito cuja perdição atravessa uma cidade onde reconhecemos a Lisboa nocturna que tem habitado a poesia de Manuel de Freitas. Sublinhe-se, acima de tudo, a importância assumida pelos últimos momentos da madrugada, quando os bares e as discotecas se esvaziam, num quase deserto onde apenas alguns sobrevivem: "Eram antes roulottes, discotecas tristes, / o sorriso de álcool com que a manhã tomba / sobre nós e se despede para sempre" (p. 71).

Os versos que acabo de citar pertencem a um poema intitulado "1952-2001", título cujas marcas temporais delimitam as fronteiras de uma vida humana - neste caso a de Miguel Bastos, aliás recentemente evocado numa "plaquette" de José Agostinho Baptista ("Afectos", Assírio & Alvim, 2002). Além de veicular uma crítica ao ritual das homenagens fúnebres - "Não foste um morto / rentável, desses sobre quem muitos / depois escrevem prantos rimados / e apressados encómios" (p. 70) -, um texto como este simboliza também um conceito de poesia como uma forma de despedida, um "ensaio de uma despedida" (Francisco Brines), um adeus que enquanto morre se prolonga na cinza das palavras: "O último copo parece-me agora / uma despedida incompleta, um rasto de cinza / que tinge de mágoa o balcão a que me encosto" (p. 72).

Estamos aqui envoltos numa atmosfera elegíaca em que a passagem do tempo se faz sentir, já que é entre muitas "coisas que os anos foram sepultando" (p. 33) que se perseguem os sinais de alguma emoção, que pode brilhar num encontro inesperado, mas que nunca chega a vencer "o frio mais frio da memória" (p. 53), essa nostalgia propagada por "dois sorrisos com dez anos" (p. 45) - também eles pouco a pouco estilhaçados pelo peso dos escombros que vão soterrando todos os caminhos, todas as hipóteses de acreditar seja no que for: "A luz dos últimos bares tomba agora / sobre um corpo esquivo, mais sozinho, / que nem sequer nestas palavras acredita" (p. 39).

Embora desejando por vezes esquecer-se do seu olhar demasiado lúcido ou sensível - "Quem me dera ser / menos realista, menos real, / menos permeável ao desgosto" (p. 77) -, o sujeito acaba por não encontrar qualquer saída para esse panorama desolador, e nem mesmo o lenitivo da música ("a única das artes") pode libertá-lo da asfixia. Convirá ler a esse respeito - e para terminar esta recensão - os dois poemas finais do livro, dedicados a Bach: "Quando a música de um homem assim / não consegue demover-nos da angústia, / percebemos que a vida é morte / - impossíveis os gestos, as fugas, os desejos" (p. 74). De facto, se nem a perfeição ou a beleza - não tenhamos medo destas palavras a propósito de Bach - conseguem já redimir-nos, resta desistir e reconhecer, sem grande dramatismo e até com um certo "fair play", que a vida que nos coube é mesmo assim. Sic.

Fragmentos Românticos
Por % HELENA VASCONCELOS
Sábado, 12 de Abril de 2003

"And then a Plank in Reason

broke,

And I dropped down, and

down - "

Emily Dickinson

A "melancolia", esse estado que já os gregos apontaram como sendo uma "doença destruidora do corpo e da alma" e que na nossa época mais prosaica passou à categoria de "estado depressivo", tem atingido com ferocidade muitos escritores como Marcel Proust , Charles Dickens, Scott Fitzgerald e as suicídas Virginia Woolf , Sylvia Plath, e Anne Sexton, que utilizaram a escrita como "fuga" ou remédio para as suas inquietações. O mesmo acontece com o autor desta "Melancolia", que parece encontrar consolo numa obra composta por fragmentos ("flashes") o que, à partida, parece contrariar o fluxo narrativo que surge com um cunho marcadamente romântico, enaltecido pelo subtítulo, "notas de viagem". É sabido que o tema da deambulação, ligado à inquietação neurótica esteve na base do romantismo mas o que confere contemporaneidade a esta obra é o aspecto extremamente visual que se manifesta em descrições fortemente influenciadas pelo cinema - "travellings", "inserts", etc. - a fotografia e as artes plásticas.

"Melancolia" começa num ambiente luminoso e sensual e termina na tristeza de um tempo inerte, desolado e fúnebre num Inverno gelado em Quioto. O espaço da narrativa desenvolve-se entre o fim de um amor e o fim de uma vida. A visão inicial, aparentemente alegre, é imediatamente destruída pela constatação de um facto - o de que aquele é o "dia", o que marca a ruptura amorosa. A incapacidade de amar é encarada como um dado adquirido - até de uma forma assaz mundana -, mas transformada em questão existencial quando reconhecida como facto consumado. Sem a presença de o "outro", o ar que se respira, os lugares que se visitam, as recordações que se invocam agigantam-se ou amesquinham-se, distorcem-se e requebram-se como num pesadelo. Uma vez que o amor possui um "corpo" próprio que nasce, evolui e se aniquila, é no rescaldo desse drama e na claustrofobia do luto que o amante (aquele que ama) se redescobre e ganha consciência, dolorosa e delirante do seu estado, experimentando a dor da perda, não tanto do(s) objecto(s) de amor, mas, principalmente da ausência do corpo palpitante, erotizado, do amor-ele-mesmo. O melancólico amante é obrigado a sobreviver num mundo subitamente transformado (e transtornado) pela ausência de tudo o que se articulara antes como sustentáculo da paixão. Aqui, sinais como uma voz, bilhetes subrepticiamente introduzidos nas malas, faxes que deslizam por baixo de portas de quartos estranhos, sonhos e pesadelos sustentam um ser cada vez mais carente, a quem tudo chega de uma forma incorpórea e, portanto, inapropriável, como meras representações de "o outro" inatingível. O personagem arrasta-se por entre o caos das memórias, em colisão directa com as "realidades" quotidianas, como o encontro com amigos e conhecidos, as actividades do âmbito social e profissional, o sexo casual, a observação distraída das bizarrias dos outros e os ocasionais "divertimentos" que ele observa com irónico distanciamento.

Em "Melancolia", o autor retoma, despudoradamente, a ideia do sofrimento psicológico, emocional, físico como um "affair" pessoal e intransmissível, uma experiência levada a cabo sem o enquadramento de um acompanhamento clínico, nem um pretenso cinismo face à adversidade. Reconhecemos neste personagem os sinais de uma sociedade sem futuro na qual o "ennuie" é constante. Os amantes separam-se, mas não há nenhuma tentativa de aproximação de parte a parte, de reinvenção do amor, nem sequer de confronto de sentimentos, de desejos, de opiniões. Homens e mulheres vivem atados nos labirintos das suas próprias estranhezas, tendo como única possibilidade a solidão assumida em espaços claustrofóbicos, que tanto podem ser cidades como Hong Kong, Rio de Janeiro, Veneza, Nova Iorque, como terminais de aeroportos ou desertos no fim do mundo. Para o melancólico contemporâneo, o divertimento, a felicidade é "imoral" - e, principalmente de muito mau gosto - porque ele sabe que não há revoluções possíveis nem possui forças ou desejo para travar o desespero.

Apesar de tudo isto - ou talvez por causa de tudo isto - António Pinto Ribeiro redescobre aqui o sentido do êxtase romântico. Sob a forma de "fragmentos", este discurso amoroso faz ecoar a tristeza magoada de Werther, a demência vertiginosa de Hamlet, o arrebatamento disruptivo de Clarissa e carrega consigo a loucura e o método que Robert Burton, no início do século XVII, utlizou para redigir a sua monumental "Anatomia da Melancolia".

Este não é decididamente um livro que se integra numa "main stream" consentida. O autor conseguiu com extrema simplicidade criar uma obra sensível e corajosa sobre o amor.

*directora da "Storm-Magazine"

http://www.storm-magazine.com

Beckett em Edição Portuguesa
Por P.E.C.
Sábado, 12 de Abril de 2003

Sem a pretensão de um registo exaustivo, oferecendo-se antes como um levantamento a merecer ajustes e correcções, aqui fica a (parca) lista possível das edições portuguesas de obras de Samuel Beckett. Da poesia, foram publicados uns "Poemas Escolhidos", completamente fora de circulação (tradução de Jorge Rosa e Armando Silva Carvalho, Dom Quixote, 1970). Da sua vasta obra dramática (32 textos, entre textos para cena, para rádio, televisão e cinema), só estarão disponíveis "Dias Felizes" (Jaime Salazar Sampaio, para o histórico espectáculo com Glicínia Quartin, em 1978, Estampa, 3ª edição em 1998!) e "À Espera de Godot" (José Maria Vieira Mendes, Cotovia, 2000). Já fora do circuito, registam-se apenas "Acto Sem Palavras" (Gleba, 1959) e "À Espera de Godot" (Nogueira Santos, Arcádia, 1964), "Fim de Festa" (Curado Ribeiro) e "A Última Gravação" (Rui Guedes da Silva, estes dois últimos títulos no mesmo volume da Arcádia, de 1964) e, mais recente, "Eu Não" (Alberto Nunes Sampaio, Hiena, 1994). No domínio da sua não menos abundante e significativa produção em prosa, para trás e seguramente esgotados, ficam os romances "Murphy" (José Manuel Simões, Presença, 1961; Círculo de Leitores, 1974) e "Molloy" (Rui Guedes da Silva, Presença, 1964, 1970), a novela "O Fim" (num volume com Kafka e Musil, Presença, 1966), "Como É" (Maria do Carmo Abreu, Ulisseia, 1969) e "Primeiro Amor" (Rui Caeiro, Hiena, 1985). Mais recentes são "Malone Está a Morrer" (Miguel Serras Pereira, Dom Quixote, 1993), "Pioravante Marche", "Sobressaltos" e "Que Palavra Será", reunidos em "Últimos Trabalhos de Samuel Beckett" (Miguel Esteves Cardoso, O Independente/Assírio & Alvim, 1996), e, por fim, "O Inominável" (Maria Jorge Vilar de Figueiredo, Assírio & Alvim, 2002).

Balbucios e Fabulações
Sábado, 12 de Abril de 2003

%Paulo Eduardo Carvalho

Não obstante a presença regular das peças de Samuel Beckett nos palcos portugueses, o destino editorial da sua obra tem sido, entre nós, pouco afortunado. Daí que a publicação desta nova tradução de "Molloy" constitua um assinalável acontecimento literário, tornando disponível ao público leitor português um dos três romances que, juntamente com "À Espera de Godot", asseguraram o definitivo reconhecimento público e crítico da obra deste escritor irlandês. Obra autónoma, "Molloy" é também o primeiro andamento de uma inesperada "trilogia" romanesca, completada por "Malone Está a Morrer" e "O Inominável".

Este singular conjunto de ficções sobre a condição do criador literário, na demanda de uma verdade última, cedo se impôs como dominado pelo tema da identidade pessoal, traduzida em narrativas fragmentadas, reflectindo a preocupação do autor com as relações entre o sujeito e o objecto, a mente perceptiva e a realidade. Beckett concretiza em toda a trilogia um conjunto de intuições que, em 1931, registara num ensaio sobre "Proust": o favorecimento da "memória involuntária" como via privilegiada para a intuição de um real que escapa tanto à experiência empírica como ao esforço racional, o reconhecimento de que o "único mundo que tem realidade e significado é o mundo da nossa consciência latente" e a convicção de que o "único desenvolvimento espiritual possível é no sentido da profundidade". Numa espécie de via negativa, Beckett empenha-se num empobrecimento incessante do seu material, através de uma progressiva renúncia a muitas das possibilidades retóricas e técnicas oferecidas pela linguagem.

Não é fácil resumir "Molloy", de tal modo este romance se afasta de uma certa ideia de literatura, questionando muitas das convenções e expectativas tradicionalmente associadas ao género romanesco. Dividido em duas partes, cada uma delas narra simultaneamente uma viagem e um regresso a si. Molloy conta-nos, primeiro, a viagem que o conduziu ao quarto da mãe, de onde nos fala, incluindo na narrativa dessa errância os diversos encontros que a pontuaram, os lugares por onde passou ou nos quais se demorou e os bizarros jogos a que se entregou para passar o tempo. Na segunda parte, a narrativa de Jacques Moran - um francês "irlandizado" cujo apelido encerra anagramaticamente a sugestão de "roman" - assume-se como mais convencional e parodicamente detectivesca: Moran recebe instruções para encontrar Molloy e a sua história será a desse círculo imperfeito que o faz sair de sua casa para a ela voltar algum tempo mais tarde. A identificação dos muitos paralelos entre estas duas errâncias e a identidade dos dois protagonistas constitui, aliás, uma das dinâmicas nas quais o leitor é convidado a participar, para concluir que Moran é e, ao mesmo tempo, não é Molloy. A dimensão que mais aproxima estes dois narradores é a repetida referência às "vozes interiores" que comandam a emissão dos seus discursos, essa sucessão de "sons articulados" sujeitos a "uma convenção que nos ordena que mintamos ou que nos calemos". O pormenor das aventuras vividas pouco importa, porque aquilo que verdadeiramente interessa é a figura do narrador narrado, na "tranquilidade da decomposição".

Claro que a viagem é também metáfora para o percurso da escrita, caracterizado por uma dupla demanda ontológica e gnoseológica. Num permanente curto-circuito do sentido para que esperamos que tenda toda a linguagem organizada, aquilo que Beckett nos oferece são fluxos quase ininterruptos de questões, hesitações, negações, confusões, como se saídas directamente da cabeça dos narradores, numa espécie de actualização da "corrente de consciência" explorada pelos primeiros modernistas. Trata-se de relatos atravessados pela contradição entre a necessidade de se dizer para atestar a existência e a identidade - "Do que preciso é de histórias, levei muito tempo a perceber isso" - e a dolorosa consciência da impossibilidade de se dizer e da inutilidade de qualquer ficção: "Dizer é inventar. Nada mais falso. Não inventamos nada, julgamos inventar, evadir-nos, mas mais não fazemos do que balbuciar a lição, fragmentos de um trabalho de casa aprendido e esquecido, a vida sem lágrimas, tal como a choramos."

Nenhum leitor deve partir para a leitura deste romance com a expectativa dos mecanismos de ilusão oferecidos pelos romances de recorte realista, obedientes a claras coordenadas de tempo e espaço, com personagens de psicologia motivada e uma intriga com nexos lógicos e causais. Esta dupla narrativa interroga os limites da percepção e as possibilidades referenciais da linguagem - "o mundo morto, negligente, grosseiramente nomeado" -, obsessivamente confrontada com a acção deformadora da ficção. E porque "toda a linguagem é um desvio da linguagem", ela é aqui um espaço de interrogação e de repetidas experiências de fracasso: "Sempre me entristeceu reincidir, mas a vida é feita de recidivas, dir-se-ia, e também a morte deve ser uma espécie de recidiva, não me espantava nada."

Reflectindo a atmosfera desencantada do seu tempo, é um "triste espectáculo" aquele que Beckett oferecia aos seus contemporâneos: a visão de uma humanidade condenada à solidão (qualquer relação está condenada à equação senhor-escravo), abjecta (veja-se as múltiplas referências aos "caprichos" do corpo) e reificada (são famosas as bizarras combinações dos narradores com as suas muletas e bicicletas). Mas haverá também que estar atento ao refinado e cáustico humor que atravessa estas páginas, ao poderoso combate à alienação provocada pelo hábito e ao pendor encantatoriamente lírico desta secular peregrinação, para que a experiência de leitura de "Molloy" possa constituir algo de intenso e vivificante.

Voluntariamente exilado em França desde 1937, Beckett vive nos anos do pós-guerra, entre 1946 e 1953, um verdadeiro "frenesim de escrita", acompanhado pela adopção do francês como língua de criação literária. Apresentada como uma via para "escrever sem estilo", esta opção revelar-se-ia determinante para a maturação de um singular projecto criativo, constituído por obras escritas ora em inglês ora em francês e, depois, traduzidas para a outra língua pelo próprio autor. Temos, assim, a partir de 1951 (o ano de publicação de "Molloy"), o desenvolvimento de uma poética do bilinguismo e da autotradução, assente na existência de um conjunto numeroso de "textos-gémeos": um "original" e uma espécie de tradução "autor-izada" que se oferece como sua continuação, transformação e amplificação, duplicidade que não terá ainda concitado a merecida atenção dos leitores e tradutores de Beckett.

A tradução agora publicada - de Dóris Graça Dias, autora de "As Casas" e de "Biblos (Os Livros)" - sugere a eficácia necessária para garantir ao leitor o percurso adequado pela sintaxe narrativa do autor, feita de rigorosas formulações, rupturas e oscilações. Destacaria, contudo, duas situações de inexplicável ligeireza que aconselham alguma prudência na abordagem. A primeira ocorre logo nas três primeiras frases do romance, decisivas para a instauração do quadro de leitura pretendido. Onde agora se lê "Estou no quarto da minha mãe. Sou eu quem vive 'aqui' agora. Não sei como 'cá' cheguei" deveria ler-se "lá" ou "aí". Tanto o texto francês do qual a tradutora parte, com a utilização do pronome adverbial "y", como a versão inglesa do autor, com "there", não deixam dúvidas quanto ao efeito dissociativo pretendido, essencial para perceber a peculiar identidade deste sujeito narrativo.

Doutra natureza é o início do segundo longo parágrafo de Molloy: "Desta vez, depois mais uma, acho eu, depois dessa acabará, acho eu, como também este mundo. É a sensação do penúltimo momento." Esta é a formulação que corresponde às primeiras edições francesas do romance, modo críptico de denunciar o plano criativo do seu autor que, à data da composição de "Molloy", previa já a escrita de "Malone Está a Morrer". Traído pela inesperada reincidência num terceiro "balbucio" textual, "O Inominável", Beckett actualizaria os termos da frase original, logo na primeira edição inglesa da trilogia, em 1959, para dar conta desses três andamentos: "Desta vez, depois mais uma, acho eu, 'depois talvez uma última vez', depois dessa acabará, acho eu, como também este mundo. É a sensação do 'antepenúltimo' momento."

"O Controlo do Tom em Turner É Fantástico"
Sábado, 12 de Abril de 2003

%Isabel Salema

Não é comum a mesma pessoa juntar as qualidades de pintor, historiador de arte e conferencista. Eric Shanes, que esteve em Lisboa na semana passada para falar sobre o mar nas pinturas de Turner, tem ainda a qualidade acrescida de gostar de tudo o que o pintor inglês fez. Gosta da luz, das cores e tons, da complexidade, do humanismo. "Gosto dele porque é moderno."

Foi nas aguarelas que J. M. W. Turner (1775-1851) aprendeu a dominar a cor e as suas diferentes tonalidades, meio que explorou numa verdadeira "linha de produção". Ele, que conseguia fazer uma aguarela parecer um óleo, usou a técnica para chegar ao modelo a ser impresso em gravura - publicou centenas delas em livros - ou para experimentar a sua imaginação.

O seu processo de trabalho nas aguarelas dedicadas ao mar é o tema da exposição do Museu Gulbenkian, um sucesso de público que já teve XXXXxxxxx visitantes.

PÚBLICO - Entre as 10 mil aguarelas de Turner, é possível ter uma ideia clara por que razão usava tanto este meio?

ERIC SHANES - Há entre nove a dez mil aguarelas, entre esboços e estudos. É muito claro que Turner as fez numa linha de produção. Espalhava muitas folhas de papel pelo quarto e, enquanto a primeira secava, já estava a trabalhar na segunda.

A aguarela é um processo onde se trabalha a paleta, obrigatoriamente, do claro para o escuro. Turner escolhia uma cor e punha um bocadinho nesta aguarela, outro naquela e assim sucessivamente à volta de todo o quarto. Depois, fazia-a ligeiramente mais escura e punha aqui, ali e além. Gradualmente, o trabalho torna-se mais escuro.

P. - Mas fazia a mesma coisa nas diferentes folhas?
R. - Quando Turner era muito novo, queria fazer aguarelas com muitos tons diferentes, várias formas de cor, do claro ao escuro. Para fazer isso, é necessário uma grande paleta de cores. Ou então é mais fácil ter apenas uma cor e pô-la em folhas diferentes. Depois, faz-se essa cor ligeiramente mais escura. Gradualmente, temos uma grande variedade, mas sem ter de usar uma grande paleta. É por isso que Turner usava muitas folhas.

P. - No final, quantas folhas diferentes teria?
R. - No final teria um trabalho como este, completamente acabado [aguarela de Plymount], mas começaria muito, muito claro. A razão por que há na exposição tantas aguarelas muito claras é porque são fases que nunca foram desenvolvidas.

Turner também faz esboços para explorar a imaginação, para ver o que vai acontecer. Nem sempre começa com uma ideia clara na cabeça. Empurra a tinta de um lado para o outro e no processo a imagem inspira-o. Por isso, fazer muitos trabalhos é também um caminho.

P. - É normal para a época esta variedade experimental?
R. - Turner é único no seu tempo, diria mesmo único noutra época qualquer.

P. - Nessa altura, na Royal Academy, os pintores aprendiam algum processo de trabalho semelhante?
R. - Não, Turner aprendeu isto através da sua própria experiência, no seu próprio estúdio.

Quando Turner era estudante de Arte, não se ensinava pintura. Havia só uma escola de Arte em Inglaterra - a Royal Academy School -, onde aprendeu a desenhar. Primeiro, através de esculturas de gesso, progredindo depois para o desenho com modelo nu.

Turner foi estudante de 1789 a 1797, indo à academia uma ou duas vezes por mês, não era como hoje a universidade. Por isso, teve que encontrar cá fora os pintores a seguir.

P. - Porque é que Turner fez tantas viagens no país e no estrangeiro. É um hábito da época?
R. - Não havia máquinas fotográficas ou outra forma de encontrar os assuntos. Os artistas do passado já faziam "tours". Os aristocratas faziam a "grand tour" - iam a Itália e França para olhar para os grandes mestres.

P. - No princípio da exposição, vemos que Turner é muito influenciado pelos mestres da pintura antiga.
R. - Durante toda a vida Turner teve um diálogo com os mestres, por causa da sua aprendizagem na Royal Academy. Tinha 14 anos quando chegou à Royal Academy e foi entrevistado pelo presidente, Sir Joshua Reynolds, um grande retratista. Reynolds encorajou-o e Turner admirou-o para o resto da vida. Quando estava a ficar velho e redigiu o seu testamento, Turner pediu mesmo para ser enterrado o mais próximo possível de Reynolds na Catedral de S. Paulo. Foi o que aconteceu.

Nas suas 15 conferências na Royal Academy, Reynolds, entre outras ideias que deu a Turner, disse que um artista tinha que aprender com os mestres do passado.

P. - Quais são as influências que se vêem na Gulbenkian?
R. - Nas marinhas, Turner tem um diálogo com a arte holandesa, que tinha uma escola de pintura de marinhas. Os franceses e os italianos nunca se dedicaram muito a pintar o mar.

Turner olhou para Ruysdael, Rembrandt, Van der Velde, Backhuysen... Nas suas marinhas, está sempre a pensar na pintura holandesa de marinhas e a tentar ultrapassá-las.

P. - Como é que descreve a evolução do uso da cor em Turner?
R. - Dos 15 aos 30 anos, ele é principalmente um tonalista. Não está interessado na cor, mas na variedade da cor, do claro ao escuro. Em 1819, vai para Itália e começa a pensar cada vez mais em termos de cor.

Mas é preciso ver que, quando as coisas são muito claras, não é possível ter uma grande variedade de tons: a razão por que as coisas parecem brilhantes é porque estão todas numa banda muito reduzida de tom.

Por isso, Turner é tonalista no princípio, chega depois às cores brilhantes, mas sempre numa variedade reduzida.

P. - Turner é criticado a certa altura por usar guache branca para representar as ondas.
R. - O papel que se usava na época de Turner, feito de trapos, era muito mais forte do que o actual, feito de madeira. Por isso, Turner molhava o papel e com a unha, ou uma pequena faca, raspava-o para revelar o branco por baixo.

Numa altura, Turner pensou que podia fazer um atalho e usar a tinta branca, mas os críticos disseram que parecia gesso e ele abandonou o processo. Depois disso, foi muito mais cuidadoso ao fazer os efeitos brancos da água.

Penso que Turner é o maior pintor do mar, porque, mais do que qualquer outro pintor na história das marinhas, percebe a dinâmica submersa da água em movimento. Isto leva-nos outra vez a Reynolds e aos seus discursos, onde dizia que um artista deve expressar, não a aparência exterior, mas as qualidades e as causas das coisas.

P. - Isso parece muito racionalista.
R. - Reynolds era um grande racionalista e Turner seguiu-o. Para Turner, era importante expressar a essência das coisas, o que inclui a economia de um sítio, a vida social, tanto como a sua beleza ou drama.

Quando chegamos à representação do mar, Turner pensou que era importante não fazer apenas as ondas parecerem onduladas e molhadas, mas dar-lhes o ritmo do mar. É o que se vê no quadro do museu Gulbenkian que representa um naufrágio. Muitos pintores representaram o mar de uma maneira mais fotográfica que Turner, mas nenhum mostrou como ele a forma como se move.

Sublinho que Turner não é um pintor impressionista, porque impressionismo tem a ver com pegar-se na tela e nas tintas, sentar-se em frente à natureza e pintar-se o que se vê. Se isso muda, pega-se noutra tela. Turner trabalhava sempre no estúdio, de memória, da observação, de esboços, criando num diálogo com a imagem. O experimentalismo serve o racionalismo.

P. - Quais são as coisas que gosta mais em Turner?
R. - Tudo. A luz. Penso que foi um dos grandes coloristas na história da arte. Haverá talvez meia dúzia de grandes coloristas - Ticiano, Monet - tão bons como Turner. Mas ele foi o maior tonalista na história do mundo. A sua capacidade de diferenciar um tom do outro é muitíssimo subtil. O controlo do tom é fantástico.

Em Turner, é também fantástico o engenho a pensar os temas. Alguns dos significados são muito complexos. Gosto também da sua visão, ele é muito moderno. Outra coisa que gosto de Turner é não ser basicamente um pintor sobre paisagem e marinhas, mas sobre a humanidade e o nosso lugar no universo. Turner é muito humanista.

P. - Acha que as suas qualidades de tonalista lhe vêm de trabalhar muito com aguarelas?
R. - Sim, completamente.


A Conquista do Silêncio
Sábado, 12 de Abril de 2003

%Joana Neves

A Lisboa 20 inaugurou recentemente o seu espaço em Campo de Ourique com uma exposição de Jorge Molder. A galeria é a continuação lógica de um projecto de Miguel Nabinho, que executava a sua tarefa de galerista através da Internet e de um acervo de obras que conservava em sua casa, aberta a coleccionadores e curiosos. Após ter alugado ou recorrido a espaços como a Sala do Veado ou a Assírio & Alvim, Nabinho criou um local de raiz para expor os seus artistas (16 ao todo). Entre eles está João Queirós, que expõe pinturas recentes, sem uma única tabela, oferecendo-se ao olhar deambulatório do espectador no piso subtérreo, consagrado à exposição das obras.

Campo de Ourique tem uma quietude quase aldeã que é prolongada no espaço da galeria, mormente pela colocação das obras no piso inferior, resguardado da actividade própria destes sítios. Mas este sossego não pareceu tão óbvio aquando da visita à exposição de Jorge Molder talvez porque a constituição do silêncio não fosse a consequência inerente à fruição das suas obras, pejadas de referências ao cinema e às suas fotografias anteriores. Aqui, face às pinturas mudas de João Queirós, o silêncio impõe-se, sulcando um espaço de libertação da percepção perante e com a obra.

Com a ausência das tabelas, as paredes aparecem despojadas e limpas, oferecendo as telas à observação múltipla e facetada do espectador. Quando se descem as escadas para a exposição, os quadros revelam-se aqui e acolá colando-se a um ponto de vista. Mais dois degraus e uma luz irrequieta sobre folhinhas pequenas ou sobre um tronco surge inesperadamente. Ao aproximar-me de uma das telas descubro as pinceladas que de longe me davam uma impressão objectual muito maior e agora desvanecem. Mas se olhar de novo, ao retirar-me da perspectiva de um quadro para me dirigir a outra, uma derradeira vez, descubro a escuridão de certos contornos e o céu - atmosfera envolvente a impor-se sobre o resto...

São paisagens naturais, naturezas-mortas, pedras e recantos. Mas, entre eles e nós, interpõe-se um jogo, um processo de desabituação da palavra, de constante reenquadramento com o que vemos. Ou, como tão bem escreve Manuel Rodrigues no texto de catálogo: "É algo que vagueia entre o espaço de representação da pintura e do seu apreciador. Como parece ter vagueado entre o motivo e o espaço de representação do pintor. O género que (já) não se reconhece - natureza-morta ou paisagem - (ainda) não se reconhece." É que, como Panofsky relembra acerca da concepção filosófica da representação artística da realidade, o pintor explora os meandros da matéria informe através das formas da imaginação.

Porquê recorrer à antiguidade? Porque subsiste uma aparência de conservadorismo na pintura de Queirós - pela ausência de títulos, de palavras, de carros e de prédios. As paisagens fotográficas naturais guardam, ao contrário, a memória do olho mecânico que as tornou possíveis. Aqui, a presença estanque da natureza trazida pelo pincel, pela imaginação sobre a tela e a retina do espectador aquieta qualquer veleidade discursiva. Lembramos logo Merleau-Ponty dizendo que o mundo do pintor é um mundo louco porque essencial e totalmente visível...

Como chega até nós este preenchimento do nosso campo e horizonte de percepção? A instabilidade dos quadros - cuja imagem se apresenta sempre de uma forma diferente consoante o nosso movimento - leva-nos a desacreditar o que vemos deste, daquele ou daqueloutro ponto de vista. E é essa incredulidade, a da passagem de anulação ou talvez de transformação, que nos leva paradoxalmente a acreditar num mundo essencialmente silencioso, perceptivo, corporalizado, construtivo, e ter a coragem de aceitar a sua eterna instabilidade.

A obra de Queirós não nos obriga a tecer relações com a paisagem lá fora (embora o façamos inevitavelmente). Força-nos a olhar para nós e para a relação que tecemos intrinsecamente com eles. A exposição é quase lúdica, zangando-nos um pouco quando nos apercebemos da mestria louca com que o pintor nos enreda por vezes demasiado na teia do quadro, em vez de inquietar a sua existência calada.

sábado, abril 12, 2003



©Ralph Gibson




©Marta Hoepffner
Portrait of Anneliese Hager-Gotz, 1946

A revelação


3.


os negros surgem à flor do papel


passo a passo
entro pela cal ferida das casas e desvendo
portas entreabertas cortinas de riscado objectos polidos pelo uso chitas
nódoas seculares risos cinzas resíduos de comida ossos
mantos de pó penumbras mornas onde se encolhem os gatos
arcos de alvenaria gavetas sem fundo trepadeiras recantos de urina
ninhos que a curiosidade das crianças largou ao esquecimento



os brancos recortam-se intensos


a aldeia assemelha-se a uma mandala de líquidos cinzentos
um pouco de amarelo arde no centro da fotografia


por detrás dos cinzentos aguados


ouço guinchos de animais recolhendo às tocas
quando a noite cresce
à medida que o revelador actua
o estrangeiro atravessa o crespúsculo
e pára surpreendido pela luz do flash



depois
basta meter a folha de papel no fixador e esperar



al berto
de : "Trabalhos do Olhar"


René Magritte, A Traição das Imagens,1928-29

como traduzir o que fica na esfera da alma?



A Cristina deu-me a tarefa,nada fácil,de escrever sobre as exposições que vimos em Lisboa, no passado domingo. Assim sendo, vou tentar passar pra palavras o que vi na exposição "O Mar e a Luz - Aguarelas de Turner na Colecção da Tate". Trata-se de um conjunto de 70 aguarelas, gravuras e duas pinturas do pintor inglês William Turner. Turner é um pintor romântico nos temas e "impressionista" na técnica. É o pintor da luz, da cor e do movimento. É o pintor visionário que nos dá a ver o espectáculo da natureza (muitas vezes com uma forte carga dramática e teatral) , o espectáculo do sublime.


O que encontrámos na exposição do Turner, mais precisamente nas paredes de um espaço penumbroso, são folhas individuais de cadernos de esboço que revelam o seu processo de trabalho, em especial o trabalho da composição da cor. E, também dão a conhecer a técnica da aguarela.
Folhas que são registos de alterações atmosféricas, de restos de nuvens, de barcos encalhados, do poder da natureza, da totalidade vazia do céu e do mar. São registos da exaltação e da subtileza da luz e cor ;são experimentações de Turner no domínio da luz e cor (inspirado pela Teoria de Goethe), em suma.


Em Turner, não há uma pintura descritiva, há o efémero, há um quase-nada ilusório, um vazio-pleno.«Com frequência apresentou telas aos seus contemporâneos que pareciam vazias, mas que ele transformava perante os seus olhos em imagens acabadas», é uma das citações do crítico e admirador, John Ruskin, retiradas da obra Modern Painters, que acompanham a exposição.


O que ainda está intacto(penso eu) na minha memória é uma certa aguarela que, para mim, é de uma transparência rothokiana lindíssima e a pintura da Foz do Sena.....
Por fim, quero dizer: quem ainda não viu a exposição, aconselho vivamente a não perder. Até 18 de Maio, na Fundação Calouste Gulbenkian.


Quanto à exposição que reúne 59 litografias realizadas pelo pintor russo Chagall e que a Fundação Arpad Szènes-Vieira da Silva apresenta até ao próximo domingo, só me ocorre agora a tal frase famosa do filósofo Wittgenstein sobre os limites da linguagem.... Neste ponto, as palavras são escassas. Não consigo agarrar. Esvoaçam como esvoaçam os corpos felizes nas litografias, nas gravuras lindíssimas do Chagall.
Em suma, como traduzir o que fica na esfera da alma?




Rothko brown and grey series


2.


O mar já não era para mim suficiente.
Fazia-me falta um rio
um rio sob sombra das árvores.


É difícil a meio da música
suportar a luz do café.


Estávamos juntos
como vejo estar no palco
sob dois projectores.


Os olhos
as mãos
todo o corpo
era só o frio da noite.


João Miguel Fernandes Jorge




Prunus en fleur. Musée de Shanghai
SHITAO


As artes do traço



A simplicidade divide-se
em noite e dia
a luz inunda as trevas
de luz
a simplicidade desdobra-se
em claro e escuro
o pássaro com o seu gesto voador
separa-se do réptil
as esplanadas estão cheias de gente
com o sol voltado para o rosto
à noite as estrelas que entram pela janela
e acendem a casa
são a mesma luz dividida
em luzes.


O pincel toca a paleta
com as cores separadas
por cor
hábeis sobre o azul
das escarpas mais altas
e do tecido da água
nos rostos cheios do sol
de um dia
os traços de pincel surgem no quadro
como um traço único
do pulso voador
que retoma a simplicidade
das coisas.



Rosa Alice Branco






las meninas, Diego Velásquez


Las meninas, 3



eu fico à esquerda no computador.
durante a tarde vou escutando discos.
a teresa foi buscar lápis de cor
e faz na folha grandes asteriscos:


desenha a jarra e a flor e outra flor;
mas como a vassourinha trás dos ciscos
a joana desaustina em derredor:
vai-se à obra da irmã e enche-a de riscos.


no espelho a luz entre água e sombras voga
e em aéreos espaços me detenho,
com a porta a rasgar-se mais ao fundo.


e o cão. e os sete anões. assim se joga,
do olhar à flor, do lápis ao desenho,
o jogo das meninas com o mundo.



Vasco Graça Moura






Francesca Woodman, from Space2 (Providence, RhodeIsland, 1975-1976)



Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.



Sophia de Mello Breyner Andresen





[SE PERGUNTAREM: DAS ARTES]



Se perguntarem: das artes do mundo?
Das artes do mundo escolho a de ver cometas
despenharem-se
nas grandes massas de água: depois, as brasas pelos
recantos,
charcos entre elas.
Quero na escuridão revolvida pelas luzes
ganhar baptismo, ofício.
Queimado nas orlas de fogo das poças.
O meu nome é esse.
E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as
noites,
caem dentro dos dias – e eu estudo
astros desmoronados, mananciais, o segredo.



HERBERTO HELDER


Alex sou eu


Lembram-se de Malcolm McDowell, aliás Alex, na Laranja Mecânica (1971) de Stanley Kubrick? Em boa verdade, aviso desde já, trata-se de um filme não muito recomendável para estes dias de angústias várias em que vivemos ou morremos.
Corremos mesmo o risco de dar de caras com algum polícia televisivo dos bons costumes, genuinamente preocupado com as imagens de «sexo» e «violência», para mais a propósito de um objecto que na altura, foi promovido por esta frase literariamente esplendorosa: Um filme sobre as aventuras de um homem cujos interesses principais são a violação, a ultraviolência e Beethoven. A censura marcelista não o deixou chegar aos olhares lusitanos, mas alguns anos passados, a história, sempre ingrata, viria a pôr em causa esse gesto de profilaxia figurativa.
Meã culpa! Enredado em preconceitos ideológicos da adolescência, levei alguns anos a perceber que Laranja Mecânica é, de facto, um objecto central – e genialmente premonitório – da história moderna das imagens. Mais do que isso: ainda a década de 70 mal tinha começado e já Kubrick conseguia definir o sistema imaginário a partir do qual, hoje em dia, funciona a quase totalidade do sistema mediático e, muito em particular ,a ideologia televisiva. A saber: um sistema em que o espectador tende a ser reduzido a peão incauto de qualquer forma de comunicação, e tanto mais quanto a gestão da sua «obrigatória» inocência está virtualmente transferida para o próprio aparato televisivo – olha para aqui que nós te protegeremos.
Compreendi, enfim (mas eu sou lento…), que somos todos encarados como variações do próprio Alex. Que quero eu dizer com isto? Pois bem, antes do mais, que o herói de Kubrick era tratado das suas pulsões mais violentas através de uma célebre posologia mediática: sentado numa sala de projecção, imobilizado numa camisa de forças e com os olhos permanentemente abertos por uma armação metálica, Alex assistia a uma enxurrada de imagens de facto violentos, precisamente para, pelo excesso e pela náusea, se curar dos eus piores instintos. Agora, temos a vantagem de não termos sido feitos prisioneiros como foi o malvado Alex. Mas a prática da saturação pela repetição é a mesma, sem dúvida mais requintada porque transforma em direito inerente ao indivíduo e à colectividade.
Dito de outro modo: as formas dominantes da televisão contemporânea tendem a funcionar como um imenso caudal de acumulação e redundância. Já nem importa que, no limite, ninguém tenha um único dado palpável para avançar. O que conta é a manutenção do fluxo, até à apoteose da tautologia : «A verdade desta imagem é a verdade desta imagem.» E sabemos, através de Roland Barthes, que a tautologia é essa figura de retórica que se perfila como ameaça arrogante de uma ordem em que se deixaria de pensar.
Semelhante resistência ao pensar é tanto mais forte quanto qualquer tentativa actual de discutir as formas de organização das imagens -, e de um modo geral, das mensagens televisivas – esbarra com uma desconfiança filosoficamente desastrada, mas simbolicamente muito forte: a de que se estaria a apelar a novas formas de censura.
Face a esta conjuntura, resta-nos, talvez, a lição de Flaubert quando, a propósito da sua Emma, esclarecia: Madame Bovary sou eu. Dizem que a história não acabou muito bem, mas se não nos identificarmos com a violência de Alex, que nos resta? A passividade de encararmos a televisão como o altar intocável de uma verdade única e universal? A inércia social de desistirmos de pensar? Ou apenas essa tragédia íntima que consiste em renegar o desejo que qualquer olhar transporta? Eu também gosto de Beethoven, Alex.


João Lopes



in Diário de Notícias, 5 Abril de 2003.



Beth


Foi a Ana que me levou a conhecer Beth Gibbons. É um nome que fascina nalguns círculos mais jovens, mas ainda não passara para fora deles. E, no entanto, trata-se de algo que se centra numa dimensão de uma modernidade ostensiva: confronta-nos com a nudez exposta da voz, o seu enigma, a sua opacidade, a sua relação com a noite do corpo, a sua travessia do espaço exterior, a sua incidência nas zonas de fronteira, isso que faz que a voz seja sempre, no seu contorcionismo doce ou desesperado, uma matéria inclassificável, o lugar onde os medos se acumulam, onde os desejos se anunciam, onde o possível se insinua, onde uma casa se constrói, onde um vendaval nos desfaz, onde o vento nos dispersa e abandona num desastre de sons e sílabas partidas. Numa postura de retraimento, como quem encena a própria timidez para melhor se enrolar nela, Beth Gibbons lança-se numa dessas experiências que Kathleen Gomes, com extrema precisão chamou de “hipnótica”: ergue à nossa volta, som a som, uma cortina de água, que a na sua verticalidade nos isola até ao mais obscuro e indizível de nós, e que na sua transparência nos faz transbordar para a cadência obsessiva que se apossa de uma sala e a empolga até ao apagamento radical. Pouco a pouco o tempo salta dos seus gonzos e entramos no planalto azul de uma memória sem fim e de um corpo imponderável.
Ouço em disco as actuações dos Portishead onde tudo isto está já inscrito – mas só o que virá a ser futuro nos deixa ver a força absoluta deste passado. De qualquer forma, há aqui uma torção dos tempos que nos dá que pensar. Se os Portishead fazem uma reciclagem de blues e fragmentos de um jazz perdido, se o cinema está sempre presente no cromatismo dos seus dramas mais intensos, nós podemos dizer, como Virgílio Ferreira ao chegar a Brasília: esta é a cidade foi construída, não a partir do passado, mas a partir do futuro. O mesmo nos acontece ao ver David Lynch: este é o cinema que ainda não existe, a nave de uma experiência inédita, a terceira margem de um confronto de espelhos. E agora com Beth Gibbons sentia-se isso mesmo: esta é a música que nos chega de um futuro que é hoje para nós uma civilização sem nome e perdida. Desse futuro o que nos espanta não é que ele irrompa, mas que seja capaz de perdurar numa gravitação infinita. E, por isso, tudo à sua volta se encurva para o lugar desta voz. A rapariga que toca violino, o espectador que fecha os olhos e deixa uma lágrima cair lentamente. A voz crispa-se, uiva-se, mancha-se de vermelho e sangue, abstrai-se, abandona-se a si própria, regressa a si própria, prolonga-se estira-se, espreguiça-me na manhã ainda enevoada, inclina-se para a noite siderante do mundo, adormece, grita, cicia, rasga, devora. “God Knows how I adore life” – diz-nos em palavras. Mas já o tinha dito antes de as palavras serem palavras. O enigma desta voz é que ela diz tudo no instante que precede o que vai dizer. “Let the show begin / It`s a sorry sight / let it all deceive / Now I`m / Pains that I`ve never found.” E neste clamoroso e eufórico desacerto procura o que não encontra e tem medo de encontrar o que nunca tinha querido encontrar.


Eduardo Prado Coelho


In Público, 7 Abril de 2003.