Uma Nova Geração de Poetas
Sábado, 29 de Março de 2003
%Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme
O interesse pela poesia é, em Portugal, algo da ordem do milagre, afirmou há um par de anos, numa entrevista ao PÚBLICO, o ensaísta Eduardo Lourenço, bem colocado para traçar comparações com o mercado editorial francês. Um fenómeno que não só não abrandou, como parece estar a intensificar-se nestes anos inaugurais do século XXI. As editoras publicam novos títulos a um ritmo alucinante, surgem novas colecções de poesia, as revistas e jornais dedicam "dossiers" aos poetas mais jovens e regressaram em força as antologias da "novíssima" lírica portuguesa, para já não referir outros sinais exteriores igualmente sintomáticos, como a recente querela entre críticos ou o facto de a polémica em torno da antologia "Século de Ouro" ter chegado ao Parlamento, episódio porventura sem precedentes na história da cultura ocidental.
Face às décadas anteriores, o que parece distinguir o momento actual é a emergência de uma genuína nova geração de poetas, algo que só seria possível encontrar, defendem alguns, remontando aos anos 70, se não à década anterior. O PÚBLICO quis saber o que pensam os críticos da hipótese de estarmos a assistir, sensivelmente desde meados dos anos 90, ao aparecimento de um conjunto de poetas que, com tudo que os distingue uns dos outros, corporizam uma geração, no sentido forte do termo. Ouvidos ensaístas de idades, percursos e registos diversos, boa parte deles também poetas, verifica-se que quase todos aceitam a tese, ainda que o consenso comece a esboroar-se quando se trata de discutir o mérito desta nova poesia, ou de lhe traçar as linhagens, ou ainda de assinalar quais serão os seus protagonistas mais revelantes.
Entre os que defendem com maior empenho a vitalidade dos anos 90, por contraste com uma década de 80 alegadamente mais pobre e incaracterística, encontram-se dois críticos que integram, enquanto poetas, a geração em causa: Pedro Mexia e José Ricardo Nunes. Ao passo que Mexia defende que a poesia actual "sai directamente dos anos 70", saltando, "como um cavalo no xadrez", sobre a década seguinte, já o segundo, mesmo aceitando que há, nos poetas de hoje, "muita melancolia e muito hiper-realismo", defende que "os melhores são os que fogem um bocado a esses escolhos".
Ainda assim, quando ambos apontam os poetas de revelação recente que mais apreciam, mostram-se sintonizados no comum apreço por dois autores: Rui Pires Cabral (n. 1967), que se estreou em 1994 com "Pensão Bellinzona & Outros Poemas" e cujo último livro, "Música Antológica & 11 Cidades" (Presença), data de 1997, e Carlos Luís Bessa (n. 1967), cujo primeiro título a solo é "Legenda", de 1995, e que publicou ainda "Termómetro. Diário" (1998) e "Lançam-se os Músculos em Brutal Oficina" (&etc., 2000). Ambos aparecem também na recém-lançada antologia "Poetas sem Qualidades" (Averno, 2002), organizada pelo poeta e crítico Manuel de Freitas.
O nome de que Mexia se sente "mais próximo" é o de Luís Quintais (n. 1968), que ganhou o prémio Aula de Poesia de Barcelona com "A Imprecisa Melancolia" (1995), e que, desde então, publicou já mais quatro títulos, o último dos quais, "Angst" (Cotovia), saiu em 2002. Mas refere também os primeiros livros de José Tolentino Mendonça (n. 1965), embora ressalvando que a poesia do autor "tem alguns perigos à espreita", designadamente "um estilo amaneirado" que o crítico considera "tributário do lado mau de Eugénio de Andrade". Recorde-se que o prefácio do último livro de Tolentino Mendonça, "De Igual para Igual" (Assírio & Alvim, 2001), é assinado pelo poeta de "As Mãos e os Frutos".
José Ricardo Nunes acrescenta à breve lista das suas afinidades electivas o próprio Pedro Mexia (n. 1973), autor de "Duplo Império" (1999), "Em Memória" (Gótica, 2000) e "Avalanche" (Quasi, 2001). E Mexia destaca também Jorge Gomes Miranda (n. 1965), que editou três títulos de poesia - "O que Nos Protege" (Pedra Formosa, 1995), "Portadas Abertas" (Presença, 1999) e "Curtas-Metragens" (Relógio d'Água, 2002) - e é ainda autor daquela que teria sido a primeira visão panorâmica da sua geração literária, "Tráfico: Antologia da Nova Literatura Portuguesa", realizada por encomenda da Porto 2001, que, inexplicavelmente, ainda não fez sair a obra. Além de se debruçar também sobre os novos ficcionistas, dramaturgos e ensaístas, o volume, com uma extensa introdução de cerca de uma centena de páginas, estuda e selecciona boa parte dos poetas aqui referidos, e ainda alguns que nenhum dos críticos ouvidos citou, como José Miguel Silva (n. 1969), autor de "O Sino de Areia" (Gilgamesh, 1999) e "Ulisses já não Mora aqui" (&etc., 2002).
No que Mexia e José Ricardo Nunes estão mesmo de acordo é na convicção de que a poesia portuguesa atravessa um momento alto. "Há de facto uma nova geração", garante o segundo, "uma fornada com mais autores e mais qualidade do que a dos anos 80". Mexia confirma. Os poetas mais recentes, diz, revelam um tom comum, cujo "traço marcante tem a ver com a revalorização daquilo a que em Espanha se chamou 'poesia da experiência'" e que resulta numa "poesia de recuperação da banalidade, do quotidiano, da experiência urbana, de um certo pessimismo".
Autor de um volume de ensaios dedicado a "9 Poetas para o Século XXI", onde aborda detalhadamente a poesia de vários dos autores aqui referidos, e ainda a de Paulo José Miranda (n. 1965), João Luís Barreto Guimarães (n. 1967) e do precocemente desaparecido Daniel Faria (1971-1999), José Ricardo Nunes reconhece que "a palavra 'realidade' é talvez a que mais continua a interpelar-nos, quando olhamos para este conjunto de poetas". No entanto, nota que, se alguns deles optam por "discursos melancólicos e crepusculares, nos quais se tem encenado o adeus e a perda", outros recorrem a "discursos mais combativos e desmistificadores".
O poeta e ensaísta Gastão Cruz também acha que a poesia portuguesa mais recente aposta naquilo a que chama "um mergulho no real" e que é devedora do modo como alguns poetas dos anos 70 procuraram romper com a sua própria geração. Mas está longe de partilhar do entusiasmo crítico de Mexia e Nunes e receia que o programa da poesia dita da experiência esteja a resultar, em muitos casos, "numa tendência para a facilidade de escrita". Evitando apontar exemplos, por julgar que "é uma coisa um bocado generalizada", Gastão Cruz crê que se está a "descurar o esforço de transfiguração do quotidiano através da linguagem", em prol de uma abordagem "mais imediata, que não recua perante a pequena crónica do centro comercial, do bar ou do supermercado" e que não oferece a possibilidade de "uma leitura menos literal".
Um juízo que a ensaísta Rosa Maria Martelo, responsável pelo capítulo relativo à poesia dos anos 90 na "História da Literatura Portuguesa" que a Alfa vem publicando, parece pôr em causa, quando sugere que este "tom menor" se articula "com a auto-apreensão de uma subjectividade que se diria procurar ainda nas pequenas coisas uma experiência de infinitude capaz de suspender a permanente disseminação de um mundo plural, sem centro e sem limites".
Num ensaio que aborda um grande número de poetas e que procura demonstrar a coexistência de diversas linhas dominantes na poesia dos anos 90 - recusando a ideia de que a temática da melancolia funcionaria como uma espécie de mínimo denominador comum -, Rosa Maria Martelo vê como uma das prováveis "marcas distintivas da poesia portuguesa recente" aquilo a que, citando um artigo de Eduardo Prado Coelho sobre Pedro Mexia, chama "o olhar que precede o discurso". Será a passagem de uma poesia que "parecia esperar que a linguagem dotasse o sujeito de um novo olhar" (a frase vem a propósito de um poema de Luiza Neto Jorge) para uma nova relação entre estes mesmos termos, na qual se diria "ser da interacção olhar/mundo que se espera ver surgir uma nova linguagem".
Também Gastão Cruz, de resto, embora sublinhe o que lhe parecem ser as fragilidades de muita da poesia actual, admite que o cenário comporta excepções. Nas "gerações mais jovens" destaca, além do já desaparecido Luís Miguel Nava, dois poetas dos anos 80, Paulo Teixeira (n. 1962) e Fernando Pinto do Amaral (n. 1960), e outros dois da década seguinte, Luís Quintais e Tolentino Mendonça. Recorda também a estreia tardia de Manuel Gusmão (n. 1945), que considera "uma das grandes revelações dos anos 90", e acrescenta: "Não podemos esquecer que alguns dos poetas que asseguraram a melhor produção desta década são de gerações anteriores, como Pedro Tamen, Fiama, Armando Silva Carvalho e Franco Alexandre, ou ainda Ramos Rosa e Eugénio de Andrade, que mantêm o seu alto nível."
Olhar não menos céptico sobre a produção dos poetas mais recentes é o de Osvaldo Silvestre, ensaísta e co-organizador da já referida antologia "Século de Ouro", que vê na generalidade do que estes escrevem "alguma debilidade discursiva". O que estes últimos anos trouxeram, segundo Silvestre, "foi a força de alguma afirmação geracional, quase toda ela em torno da editora Quasi e com a novidade da sustentação crítica, sobretudo de Pedro Mexia, a que haveria que somar ultimamente Manuel de Freitas, enquanto poeta e crítico".
Com estes dois nomes, e ainda com José Ricardo Nunes, "mas este menos publicamente empenhado", a geração actual, defende o ensaísta, "tem os tenores que as dos anos 80 ou 90 não tiveram, já que os candidatos a esse papel, e acima de todos Fernando Pinto do Amaral, rapidamente se deslocaram para um espaço crítico transgeracional".
Se aprecia o que escreveram nos anos 90 autores como Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Manuel António Pina, António Franco Alexandre, Vasco Graça Moura, Fernando Guerreiro ou Adília Lopes, entre outros, já dos poetas que se estrearam nos anos 90, Silvestre destaca apenas um nome: Daniel Faria. Está em sintonia com o poeta e ensaísta Manuel Gusmão, que, "a partir da antologia da Quasi", afirma ter sido este um dos poetas que o surpreendeu. Refere-se ao volume "Anos 90 e Agora", de Jorge Reis-Sá, entre cujas "revelações mais interessantes" Rosa Maria Martelo aponta ainda Carlos Saraiva Pinto, que, nascido em 1952, só se deu a conhecer em 1997, com "Viajante Transitório" (Tema), a que se seguiu "Escrever Foi Um Engano" (O Correio dos Navios, 2000).
Manuel Gusmão aproxima-se desta ensaísta e de José Ricardo Nunes na convicção de que nem todos os caminhos da nova poesia portuguesa passam pela melancolia. Notando que esta menção se tornou quase "um outro nome para o pós-modernismo", pensa que "a melancolia ou é um chapéu de chuva demasiado largo ou demasiado estreito, e alguns poetas ficam de fora dele". Não deixa de ser curioso que, a título de exemplo, aponte o autor de "A Imprecisa Melancolia", Luís Quintais.
Admirador de Joaquim Manuel Magalhães não apenas enquanto crítico, mas também como poeta - qualidade em que o crê subestimado -, Gusmão encara com algumas reservas o modo como muitos têm procurado aproximar a sua obra da poesia dos autores mais novos. Lembrando que, desde "Os Dias Pequenos Charcos" (1981), a poesia de Magalhães associa a "um saber prosódico muito nítido" uma "vontade de violência"; e, sublinhando que o recente "Alta Noite em Alta Fraga" (2001) é "um livro que incomoda, um livro onde a experiência do mundo é uma experiência violenta", Gusmão sugere que podemos estar perante algo que é "um reverso do consenso em torno da generalizada qualidade média da poesia portuguesa". E é justamente essa "qualidade mediana" que lhe parece perigosa. "Não sei se é falta de exigência ou falta de pujança."
Mais optimista mostra-se o ensaísta e tradutor João Barrento, que, no extenso texto com que respondeu ao pedido de um depoimento sobre a poesia portuguesa actual - espera-se que em breve o publique na íntegra -, detecta, além de vários outros nomes "significativos", seis autores cuja voz própria os torna "casos ímpares": Manuel Gusmão, Paulo Teixeira, Fernando Guerreiro, Daniel Faria, Adília Lopes e Manuel de Freitas. Este último, enquanto poeta, estreou-se já em 2000, com "Todos Contentes e Eu Também" (Campo das Letras). Desde então publicou mais seis títulos, sendo os últimos, todos de 2002, "Game Over" (&etc.), "[sic]" (Assírio & Alvim) e, em edição de autor, "Levadas".
Numa inventariação das diversas linhagens onde "os novíssimos vão ainda beber", Barrento associa este poeta a Herberto Helder e ao "filão, fortíssimo, da 'vocação animal' do poema, omnívoro e violento", afirmando que Manuel de Freitas "soube, melhor do que nenhum outro, cruzar e superar a 'lição' de Herberto (socializando-lhe o essencialismo visceral) com a visão crua, quase apocalíptica, do real que vem dos inícios da década de 80 e de Joaquim Manuel Magalhães".
Outros "filões" que o ensaísta vê ainda darem fruto são o elegíaco, que "no seu melhor surge em livros de Fernando Pinto do Amaral, José Tolentino Mendonça, ou Luís Quintais", a "melancolia culta", que, depois de Graça Moura, reconhece em Paulo Teixeira e "nalguma poesia de Pedro Mexia ou Fernando Guerreiro", a "tradição intimista", que "dá alguns bons livros de Ana Luísa Amaral, Maria do Rosário Pedreira ou Ana Marques Gastão", e ainda o "grande campo dos enredos banais de um tempo em ruínas", onde destaca Manuel de Freitas, mas encontra também lugar para Paulo José Miranda - autor de três livros editados pela Cotovia: "A Voz que Nos Trai" (1997), "A Arma do Rosto" (1998) e "Tabaco de Deus" (2002) -, Rui Pires Cabral, Jorge Gomes Miranda, Carlos Luís Bessa e Ana Paula Inácio (n. 1966), que publicou dois livros no ano 2000: "As Vinhas de Meu Pai" (Quasi) e "Vago Pressentimento Azul por Cima" (Ilhas).
Paulo José Miranda, Manuel de Freitas e Daniel Faria são também nomes destacados por Bernardo Pinto de Almeida, embora este poeta e crítico de poesia e de artes plásticas suspeite um tanto das leituras geracionais. "O país de poetas está bem, obrigado, mas isso não quer dizer nada, porque a poesia é sempre apesar disso", afirma, aproximando-se talvez, em formulação irónica, dos receios que a celebrada "qualidade média" dos poetas portugueses actuais inspira a Manuel Gusmão. "Só há poetas bons e maus, não há intermédios", sustenta Bernardo Pinto de Almeida, lembrando que, de uma geração, ficam sempre poucos poetas e, destes, "fica um verso, às vezes um poema".
Se assim for, parece razoável esperar que entre os autores desses exíguos vestígios que o futuro se dignará conservar venham a constar alguns dos nomes evocados neste texto, que se faz acompanhar de uma brevíssima escolha, que de todo não se pretende representativa, de alguns poemas do século XXI, todos eles de poetas revelados a partir dos anos 90.