domingo, março 30, 2003


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Chicago, Cidade Boomerang
Sábado, 29 de Março de 2003

%Ricardo Carvalho, em Chicago

Não é raro ouvir o comentário que atribui a Nova Iorque a qualidade de melhor cidade da Europa. De facto, a metrópole norte-americana foi o destino privilegiado de parte significativa das personagens centrais da cultura europeia do século XX. Foi também o espaço de acolhimento transversal de todas as outras culturas, o que contribui muito, a par da carga iconográfica lançada pelos media, especialmente através do cinema, para que todos aí reconheçam um lugar, o seu lugar.

Essa identificação não acontece com Chicago, que exibe uma menor diversidade, mas é raro o arquitecto que não reconhece a cidade como uma escola, a sua escola. É de facto nesta cidade do Midwest que se concentram as sementes que fizeram nascer a modernidade arquitectónica. Um pioneirismo que construiu a sua singularidade enquanto metrópole, aspecto que ainda hoje alimenta o seu imaginário. Chicago, ao contrário de Nova Iorque, não foi apenas uma cidade de acolhimento, foi antes um "boomerang" feito arquitectura lançado à Europa, que iria trazer no seu regresso alguns dos protagonistas da arquitectura do século XX.

O "boomerang" chamava-se "Escola de Chicago", um movimento que na última década do século XIX trilhou caminhos pioneiros, de grande simplicidade e pragmatismo, na construção vertical. O esqueleto de aço e os primeiros ensaios sobre a transparência dos edifícios arrancaram com a geração da década de 90, cuja figura mais importante foi Louis Sullivan (1856-1924). Estas ideias atravessaram o Atlântico e iriam ser levadas até às últimas consequências na Europa pela figura radical de Mies van der Rohe (1876-1969), quando o vidro passou a substituir as paredes nas suas torres visionárias da década de 20, projectadas para Berlim mas nunca construídas.

Quando Mies decide encerrar a Bauhaus de Berlim, antecipando-se ao aparelho nazi, tinha já aceite o lugar de novo director da Escola de Arquitectura de Chicago. Não poderemos saber o que pensava da América o mais influente arquitecto moderno alemão, mas os seus desenhos e fotomontagens para uma casa no Wyoming, feitos antes de partir, mostravam um enquadramento perfeito da paisagem. Isto apesar de sobressaírem alguns recortes de imagens de cowboys entre as montanhas e a vastidão de escala do território americano, revelando talvez o cepticismo de Mies perante o Novo Mundo. Mas a cidade que o esperava, Chicago no ano de 1938, estava nos antípodas desta visão - era já uma grande metrópole de milhões de habitantes.

Foi em resposta ao devastador incêndio de 1871 que a arquitectura da então pequena cidade do lago Michigan se tornou tecnicamente experimental e arrojada na expressão, utilizando de forma inovadora o elevador e a estrutura metálica. Hoje, no interior do Loop, definido pela metro de superfície que organiza um percurso circular, pode-se imaginar como seria a cidade quando os edifícios da Escola de Chicago configuravam as ruas. Na Avenida Dearborn, vive-se uma vibrante sequência espacial, um percurso assaltado por acontecimentos arquitectónicos da última década do século XIX, os mais antigos "modernos", como o clássico Monadnock Building (de Burnham & Root), antevisão expressionista do tema arranha-céus, e o Marquette (de Holabird & Roche), a construção da forma pura. As grandes janelas predominavam sobre a opacidade das paredes, fazendo inundar de luz as múltiplas funções que acolhiam. Edifícios em que o tratamento sumptuoso dos átrios, de expressão ecléctica e com materiais nobres, acolhiam um fluxo contínuo de pessoas. Eram escritórios, bancos e seguradoras em pioneiro "open space", eram também comércio, mas estes edifícios eram principalmente habitação organizada na vertical. Tudo concentrado num único volume, verdadeiras "cidades verticais", das quais se destacava o maior hotel do mundo com os seus três mil quartos. Sem possuir a radicalidade dos outros edifícios, o Stevens Hotel de 1923 (também de Holabird & Roche) é agora o melhor exemplo dessa memória, com as suas torres em tijolo assimiladas ao mundo industrial, e espaços colectivos onde o sonho americano se traduz nas fontes, escadarias imensas e salões de baile.

A floresta de arranha-céus do centro da cidade - o Loop -, evidencia ainda hoje uma prosperidade ganha às sucessivas crises económicas. Foi por isso que Chicago funcionou sempre com uma das cidades retrato de uma América genérica, idealizada por Henry David Thoreau, Walt Whitman e pelo arquitecto Frank Lloyd Wright. Mas é hoje uma América mais fragilizada aquela que se sente no Loop. Mesmo que as bandeiras americanas surgam nos sítios mais improváveis, dos mastros aos taipais das obras, perdeu-se uma vitalidade urbana com a já endémica fuga das classes médias brancas para os subúrbios e a "privatização" do espaço público.

A Chicago próspera que gosta de se mostrar aos que chegam concentra-se a norte - o Near North como lhe chamam -, alimentando-se de forma implícita da caução cultural da arquitectura da Escola de Chicago e de forma explícita do poder económico que baptizou esta área de "Golden Coast". Hoje, a habitação parece timidamente querer regressar ao Loop e substituir a hegemonia das grandes corporações, que dominaram programaticamente as "peças" históricas posteriores à II Guerra Mundial, como o Federal Center de Mies van der Rohe.

O Federal Center é um conjunto de três edifícios com uma variação mínima da expressão, uma fleuma em torno do aço e do vidro, capaz de gerar espaço público nesta cultura profundamente marcada pela propriedade. O edifício dos correios, um pavilhão horizontal - contraponto à verticalidade dominante - funciona mesmo como uma "praça coberta", visualmente permeável, cujo equilíbrio é posto em causa com uma escultura em aço de Alexander Calder.

Acabadas em 1974, as torres Sears (do escritório local S.O.M./ Bruce Graham), apesar de disputarem a classificação de serem um dos edifícios mais altos do mundo (e que em si mesma não comporta nenhuma qualidade), parecem nada acrescentar ao projecto de 1922 do alemão Walter Gropius para a sede do jornal Chicago Tribune, nunca construído. Não deixa de ser interessante que o projecto de Gropius tenha sido retomado conceptualmente nestas torres cinco décadas depois, principalmente porque o edifício neo-gótico que foi de facto construído para o Chicago Tribune marcou uma viragem conservadora na transição para o século XX e o fim da experimentação da Escola de Chicago.

Mas a arquitectura de Chicago, e a sua capacidade experimental, não se fez apenas com arranha-céus. As casas que alguns arquitectos construíram ao longo da primeira metade do século XX contribuíram para a redefinição do espaço doméstico.

A casa Charnley de Louis Sullivan, a casa/atelier de Frank Lloyd Wright e a casa Farnsworth de Mies van der Rohe apontam em três direcções fundadoras da cultura arquitectónica que alimenta a contemporaneidade. A via histórica com a primeira, a criação da tradição americana com a segunda (Wright afirmou mesmo ser o seu fundador) e a síntese universalista do projecto moderno com a última.

Hoje são edifícios visitáveis (a casa Farnsworth foi subitamente posta à venda) e referências culturais americanas, embora tenham causado estranheza e até incompreensão quando foram construídos. São os mesmos "cidadãos tipo", que no passado resistiram a estas propostas, que hoje ouvem atentamente os guias a falar destas obras, do seu valor artístico e sobretudo do seu valor material.

A casa desenhada por Sullivan é uma "villa urbana", individual no espaço colectivo da metrópole. Clássica, na forma como aborda o programa, parece fazer dos materiais aquilo que ninguém tinha ainda feito, atribuindo-lhe uma carga expressiva que contraria a simetria do seu desenho. A varanda coberta (a loggia), colocada por cima da pequena porta, aponta já na direcção do trabalho sobre a tensão entre escalas que vai caracterizar a obra de Wright.

Foi na paisagem horizontal de Oak Park, um subúrbio abastado a oeste da cidade, que esta figura central da história da arquitectura iniciou o seu percurso. Depois de colaborar com Louis Sullivan, Frank Lloyd Wright construiu aí a sua casa, introspectiva e radicalmente laboratorial. A sua história consiste numa adição de volumes - uma obra permanente em curso enquanto o arquitecto ali viveu -, com mudanças abruptas de escala, janelas junto ao chão, paredes que não tocam o tecto e até um piano suspenso sobre uma escada que o arquitecto não queria no meio da sala. A manipulação da luz e as proporções inesperadas dos espaços vão conduzir a arquitectura a caminhos até aí não percorridos, culminando com a realização da obra de maior visibilidade pública: o Guggenheim de Nova Iorque.

Se Wright trabalhou sobre a diversidade máxima do carácter de cada espaço da "casa", Mies van der Rohe, com a casa Farnsworth de 1945, irá trabalhar sobre a variação mínima dos mesmos temas. Este pavilhão elevado do solo, em aço pintado de branco e vidro, junto do Rio Fox (a uma hora de carro da cidade), é a melhor homenagem à arquitectura que, mais de meio século antes, tinha sido vislumbrada no Loop. Estrutura e espaço arquitectónico foram reduzidos à sua síntese limite: a casa está disponível para cada um inventar criativamente o seu modo de habitar, transcendendo a função e reinventando a paisagem. Mies terá afirmado que as suas casas não "são apenas para o corpo mas também para o espírito". Coberta de neve, numa paisagem lacónica, continua a ser uma referência inamovível para a contemporaneidade. Objectiva e lógica, mas também transcendente na carga poética, ilustra o último movimento de "boomerang" de Chicago em relação à Europa. A América precisa de uma novo movimento de regresso.





Mais Tempo, Menos Apatia
Sábado, 29 de Março de 2003

%Óscar Faria

As circunstâncias actuais, com a segunda Guerra do Golfo a pautar o quotidiano, podem servir para reactivar uma série de questões relacionadas com a forma como a arte poderá reagir à repetição de uma anunciada crise.

Em 1991, o primeiro conflito travado em território iraquiano teve como consequência, no campo artístico, o fim da euforia mercantil dos anos 80, período em que se assistiu ao heróico regresso à pintura. No início da década de 90, fecharam galerias dos dois lados do Atlântico e o mercado entrou numa recessão de que só agora dava sinais de recuperação (e a pintura, uma vez mais, assumia um destacado papel na situação presente, integrando, agora, a sua própria crítica). Substituída a incerteza dos investidores privados pela segurança do investimento institucional, com qualidade garantida por um cortejo de críticos e curadores, criaram-se as condições para que a especulação desse lugar a uma transparência oficiosa.

No actual sistema existem, contudo, experiências, na sua maioria efémeras, que procuram contrariar a constante pressão exercida pelo mercado sobre a produção artística. Essa resistência, essa independência, essa liberdade no fazer, é sobretudo protagonizada por espaços ocupados ou dirigidos por artistas. No Porto, a situação actual da arte contemporânea é sustentada por um contexto que inclui não só o Museu de Serralves e galerias mais ou menos consistentes em termos da sua programação, mas também uma série de lugares onde se realizam, com carácter irregular, exposições, debates ou eventos. As iniciativas, protagonizadas por diferentes agentes, confirmam uma certa alteração do panorama que se vivia na cidade há uma década, quando eram praticamente inexistentes as alternativas à cultura promovida pelo "statu quo".

Ao abandonar uma política iniciada, no início dos anos 90, com as Jornadas de Arte Contemporânea e prosseguida, em 2001, com a Capital Europeia da Cultura, a autarquia portuense tem cometido, porventura, um dos seus mais graves erros estratégicos no plano cultural, a saber: a distância que tomou relativamente a uma massa crítica e criativa, informada acerca dos debates e preocupações do seu tempo - não basta animar a Rua Miguel Bombarda em dia de inaugurações para com isso significar uma particular atenção à contemporaneidade. Por exemplo, não seria possível fazer da galeria de exposições da Biblioteca Almeida Garrett um laboratório de revelação e afirmação de uma nova geração de artistas que tem passado, nos últimos anos, por bares e espaços alternativos? (Citem-se, a título de exemplo, Anikibóbó, Maus Hábitos, Artmosferas, Caldeira 213, Pêssegos Prá Semana, Edifício Artes em Partes ou a casa de Nuno Grande.)

Na colectânea de ensaios "Y Aura-t-il un Deuxième Siècle de L'Art Moderne?", Robert Fleck nota que o último decénio do século XX foi dominado por dois sujeitos ou conteúdos: o corpo e o politicamente correcto. Esta situação deu origem a uma série de novas práticas na arte, "como o multiculturalismo, a abertura da arte moderna na direcção do Terceiro Mundo ou a realização de uma real igualdade homem-mulher nas exposições de arte contemporânea". No mesmo texto, o ensaísta austríaco, depois de recuperar a denúncia feita, em 1983, na revista "Flash Art", pelo filósofo e psicanalista Felix Guatarri, relativamente ao branqueamento de dinheiro realizado através da compra de objectos de arte pela máfia italiana ou por traficantes de estupefacientes, acrescenta: "Numerosos actores qualificaram esta especulação como pura loucura e sublinharam a fragilidade de uma tal euforia; o que se confirmou, em 1991, na época da Guerra do Golfo. Um conjunto de exposições pode suscitar uma reflexão sobre o estado actual das artes no Porto. Assim, no âmbito do projecto "In. Transit", que tem sido desenvolvido por Paulo Mendes no Edifício Artes em Partes, Susana Mendes Silva instalou uma série de desenhos em folhas A4 que procuram exprimir questões relacionadas quer com a identidade sexual, quer com as formas de perversão relacionadas com os poderes socialmente instituídos: as figuras/sombras com formas humanas (masculinas e femininas) combatem umas contra as outras, espelham-se nas suas vontades de domínio e destruição, submetem-se a torturas várias. Com este trabalho, que se espalhou quer pelos "media", quer pelas ruas da cidade, a artista dá continuidade às suas pesquisas sobre o corpo enquanto lugar de afirmação do político. A criadora retoma agora, num meio mais íntimo, a série "Rose Ladies" (1998), na qual representava fotograficamente os seus pés com pequenos soldados entre os dedos: tal como então, as obras actuais assumem um registo onde as relações humanas se jogam no território da mais pura perversidade.

Numa outra exposição, patente na galeria Marta Vidal, mostra-se um diálogo entre antigos projectos de Cristina Mateus e José Maçãs de Carvalho. "O Teu Corpo É o Meu Corpo", de Mateus, foi apresentado no âmbito da colectiva "Mais Tempo, Menos História" (Fundação de Serralves, 1996). Trata-se de instalação dividida em duas partes: de um lado, o sono e o fragmentação física próxima da abstracção; do outro, uma frase repetida inscrita no chão em círculos concêntricos é confrontada com um bater cardíaco. A obra, um auto-retrato, faz uma reflexão sobre as metamorfoses de um corpo que se afirma enquanto cor, som, frase e imagem. Por seu lado, Mação de Carvalho mostra o vídeo "Striptease as Textuality" (2001), que é formado por dois momentos: no primeiro, um corpo feminino, filmado num plano frontal, despe-se sem artifícios enquanto se escuta, em inglês, um fragmento retirado do livro "Small World", de David Lodge. Nele, o personagem Morris Zapp lê, perante feministas, uma conferência intitulada "Reading is Like a Striptease"; no segundo, o texto, lido em português e legendado em inglês, surge como complemento à escuridão. O resultado é um trabalho deceptivo onde se confrontam forças opostas: linguagem e imagem.

Finalmente, refira-se a pequena exposição inaugural do Salão Olímpico, que reúne obras de Eduardo Matos e Renato Ferrão. Sob o título "The Stars Turn into Stripes Forever", mostram-se obras em diferentes meios (pintura, escultura), que pretendem evidenciar a tendência mais estimulante da arte contemporânea: não fazer arte política, mas agir politicamente. A partir do tema mais interpretado em circos nos últimos cem anos, "The Stars and Stripes Forever", os artistas produziram uma micro-situação. Como nota Ferrão, o título do tema musical induz uma banalização: "Passa-se de uma exclamação utópica a uma inversão apática, sem nunca excluir a ideia de que é para sempre." É, pois, longe do corpo e do politicamente correcto que hoje nasce a crítica aos lugares de domínio, uma micropolítica do quotidiano com um sentido de comunidade e de afecto próxima do labor filosófico (dos pré-socráticos a Giorgio Agamben).




VALIA A PENA TRADUZIR
Por O VERDADEIRO "MUNDO DE SOFIA"
Sábado, 29 de Março de 2003

%Desidério Murcho

Colocar em 3 por favor...

"A tradição filosófica de que faço parte começa com Platão e Aristóteles, prossegue com Locke, Berkeley e Hume, tal como com Descartes, Leibniz e Kant, terminando em Frege, Russell, Wittgenstein e nos seus descendentes filosóficos. Esta tradição dá ênfase à clareza, rigor, argumentação, teoria e verdade. Não é uma tradição que tenha primariamente por objectivo a inspiração ou a consolação ou a ideologia." Com estas palavras, Colin McGinn esclarece o leitor menos informado, que é precisamente o leitor a que este livro se dirige. O público em geral (e, sobretudo entre nós, alguns cientistas mais desinformados) pensa por vezes que a filosofia é uma espécie de infância da ciência; ou uma espécie de religião sem confissão; ou uma espécie de cultura geral com palavras caras; ou uma espécie de especulação aleatória em que tudo vale. Este livro mostra o que é a filosofia, hoje, e constitui-se como uma espécie de "mundo de sofia" para leitores que não gostam de ser tratados como mentecaptos. E com o atractivo suplementar de não se tratar do incoerente mundo inventado de uma personagem oca, mas por se tratar do mundo real de um verdadeiro filósofo contemporâneo.

Nascido em 1950, Colin McGinn é hoje um dos filósofos mais respeitados. Inglês, de origens humildes (foi o primeiro da família a entrar na universidade), estudou nas universidades de Manchester e Oxford, onde foi também professor. Actualmente, é professor na Universidade de Rutgers, nos EUA, e vive em Nova Iorque. Começou por destacar-se pelo seu trabalho em filosofia da mente, e o seu livro "The Character of Mind" (OUP, 1982) é considerado um dos melhores do género (trata-se de uma introdução). Contudo, ao cabo de alguns anos de investigação, e depois de publicados vários livros e dezenas de artigos em revistas da especialidade, McGinn começou a suspeitar que o problema central da filosofia da mente ("O que é a consciência?") não poderia ser respondido pela mente humana. Para quem tinha investido anos da sua vida nesta área, foi necessária coragem para a abandonar. Mas foi o que ele fez, tendo-se dedicado à filosofia da literatura e à ética, sendo o seu livro "Ethics, Evil, and Fiction" (Clarendon Press, 1997) o primeiro resultado das suas novas investigações. No seu último livro de investigação, "Logical Properties" (OUP, 2000), regressa às áreas mais especializadas da filosofia, com uma clareza, rigor e concisão que são infelizmente raras.

Em "The Making of a Philosopher", McGinn usa a sua biografia como fio condutor, dando a conhecer não apenas alguns dos temas centrais da filosofia, tal como são discutidos hoje em dia, mas também o modo como um ser humano vive esses problemas. Sabendo que os filósofos são muitas vezes encarados como seres do outro mundo, McGinn mostra o lado humano de uma vida dedicada à investigação filosófica, procurando destruir a imagem romântica do "génio atormentado" que, infelizmente, alguns intelectuais gostam de cultivar. Afinal, que há de mais humano do que esta vontade de descobrir a verdade das coisas? Como Oliver Sacks comentou, este livro está "escrito de forma brilhante, é devastadoramente honesto, por vezes hilariante, e conta uma história pessoal tão fascinante quanto a filosófica". Nem mais.

The Making of a Philosopher: My Journey Through Twentieth-Century Philosophy

AUTOR Colin McGinn

EDITOR Scribner / Simon & Schuster (Londres)

241 págs., 10,00 libras

Fragmentos de Uma Língua Maior
Sábado, 29 de Março de 2003

%Eduardo Prado Coelho

Poderei dizer logo de entrada que se trata de um grande livro de ensaio? Falo de "O Poço de Babel - Para Uma Poética da Tradução Literária", o livro mais recente de João Barrento. Grande porque sentimos que, nesta reunião de ensaios precedida de um ensaio de síntese necessariamente provisório, existe uma reflexão que se apurou ao longo dos anos de um modo extremamente complexo. Foi-se formando num conhecimento muito intenso da literatura clássica, mas também dos autores mais recentes - e em particular de obras e autores que escapam ao nosso convívio, uma vez que pertencem em parte considerável à cena cultural alemã. Mas também num acompanhamento muitíssimo atento e empenhado de toda a produção literária portuguesa - o que raramente acontece na universidade portuguesa. Depois, porque João Barrento está atento à filosofia moderna e contemporânea, podendo movimentar-se à vontade nos textos de Nietzsche ou de Kierkegaard, mas também nos de Wittgenstein ou de Heidegger. Daqui resulta uma permanente circulação entre o pensamento filosófico, a teoria literária e a própria literatura, que se articulam de um modo invulgarmente respeitador, inovador e produtor, das especificidades dos respectivos domínios.

Mas todas estas virtudes só são verdadeiramente úteis porque João Barrento escreve um português de grande qualidade estilística, que alia a capacidade de estabelecer uma cumplicidade total com o leitor a um esplêndido e invulgar sentido de nitidez e da pertinência conceptual. Um livro como este é capaz de nos surpreender no plano da erudição universitária mas também pelo modo como avança para áreas extremamente sofisticadas do pensamento e da criação contemporâneos.

Não creio que já existisse entre nós uma tão ampla e bem formulada teorização da prática da tradução. Existem excelentes tradutores e alguns exemplos de reflexão teórica de primeiro plano no âmbito da teoria literária, mas não me lembro de alguém que tivesse reflectido tão profundamente sobre o trabalho da tradução a partir de uma experiência tão grande na tradução de alguns dos grandes nomes da história literária (em particular no domínio de língua alemã, mas com incursões de assinalável valor noutras áreas).

Será bom que se comece por dizer que o que interessa João Barrento é a tradução de textos literários, embora muitas das coisas que pertencem à ordem da literatura se mantenham pertinentes, se bem que com colorações de outro tipo, noutros planos: seja o da tradução de textos científicos, seja o da tradução da coloquialidade quotidiana ou da informação jornalística. Tal como sugeriu Roman Jakobson, o literário não é um território específico dentro da linguagem, mas a potenciação extrema das suas capacidades próprias - e, portanto, é a partir dele que se pode compreender o funcionamento dos seus mecanismos. A tradução é apenas uma outra etapa neste circuito hermenêutico. Partindo do princípio de que cada texto traduzido é um novo original, João Barrento vai também dizer-nos que cada original é também um texto traduzido - isto é, insere-se na longa cadeia de textos que compõem, recompõem e voltam a compor o espaço interminável das palavras. Em cada uma das instâncias desta infinita sequência há um fazer do texto que se explicita e se implicita num novo fazer. Traduzir, na proposta de Meschonnic, não é estabelecer uma correspondência entre um texto "alvo" e um texto "fonte", mas entre um fazer discursivo e um novo fazer discursivo. E daí que em cada nova etapa se deva actualizar "a consciência do fazer discursivo que é cada acto de traduzir". Nesta perspectiva, o texto traduzido não é algo de menor no destino de um texto, mas sim algo que faz parte intrínseca da própria história literária (e neste ponto João Barrento acompanha as posições recentes da escola de Telavive, de Gideon Toury e de Itamar Even-Zohar).

O ponto mais interessante de João Barrento é, na minha perspectiva, a forma subtil mas decidida como ele se vai afastando irreversivelmente de qualquer concepção estritamente funcionalista da tradução literária. Quando se diz "funcionalista", está-se a dizer que existe um método que se pode aprender, que existe uma concepção instrumental da linguagem, que existe uma convicção de que, a partir de uma perspectiva referencial, é possível saber até que ponto uma tradução tem ou não êxito. Ora o que a teoria da tradução de João Barrento nos diz é que não há uma teoria da tradução, porque cada novo fazer discursivo do tradutor implica a reformulação de todo o método e de toda a conceptualização em função de singularidade irredutível que nos é dada para traduzir. Mas que estejamos perante uma aporia não significa que se possa ou deva deixar quer de traduzir quer de pensar a tradução: o pensamento efectivo faz-se no campo da própria aporia. Como escreve João Barrento, "a produção de um texto em tradução, para o qual não há modelo objectivo, é um acto performativo desenvolvido, interiorizado e necessariamente pessoal de regras (eventualmente a infringir ). Cada tradução é assim, apesar da sua dependência do outro, um acto inaugural que nega a possibilidade de estabelecer teorias da tradução."

Mas isto não impede que um certo número de noções se ensaiem na prática reflexiva do fazer do tradutor. Por exemplo, a noção dos "invisíveis do texto": "Estão implicados no processo de tradução do texto dito literário todos os níveis da língua, numa interacção que visa produzir efeitos de sentido e de linguagem que fazem apelo à reconstituição, não apenas do nível de superfície do texto, mas também das ausências significantes, dos brancos, dos ritmos, da alusão, da denotação - em suma de tudo aquilo a que chamarei os invisíveis do texto. Na tradução do texto literário, a 'fidelidade' refere-se, assim, sobretudo ao respeito dessas instâncias instáveis e ocultas." Há por outro lado um "reino flutuante do sentido" em que João Barrento insiste longamente: são "os habituais fenómenos de conotação, alusão, polissemia, ambiguidade, que a tradução não deve 'resolver' (no sentido de tornar o texto unidimensional ou óbvio), mas deve manter a funcionar de forma homóloga à do original".

No meu trabalho de conselheiro cultural em Paris acompanhei múltiplos processos de tradução em que muitas vezes o tradutor (lembro-me em particular o caso de "Os Passos em Volta" de Herberto Helder) procurava tornar o texto mais "compreensível", argumentando que certas soluções "não se diziam em francês". Eu respondia que "em português também não", procurando explicar que era precisamente esse "não se dizer" que precisava de ser traduzido. Porque "o sentido é intraduzível: e de facto aquilo que se traduz é sempre uma forma particular do sentido, indissociável da língua que se usa". Esta noção de "forma do sentido" é outra pedra fundamental do universo teórico de Barrento.

Mas o ponto fundamental é a ideia de "uma terceira voz". Por outras palavras, depois de um breve mas estimulante inventário de situações em que emergem "terceiras instâncias", João Barrento procura mostrar que, citando Calasso, "toda a história a dois é uma história a três": "A realidade do poema em tradução não corresponde apenas nem a um texto-outro tornado próprio, nem a um texto inscrito sobre o outro, mas a uma terceira coisa: nessa nova realidade textual fala uma terceira voz, que eu definiria, de momento, como a memória (múltipla, estratificada) da minha língua e da sua tradição poética ou o meu inconsciente delas." Neste ponto, a reflexão de Barrento cruza-se necessariamente com Walter Benjamin e Jacques Derrida. Mas enquanto Benjamin atribuía a esta terceira instância uma espécie de língua absoluta para a qual a tradução remeteria sempre, Derrida parte da ideia de que se trata sempre de fragmentos de uma língua maior e que se pode designar como "um terceiro excluído". Traduzir é negar esta exclusão e pô-la em prática através de uma persistente negação da própria negação.


Uma Nova Geração de Poetas
Sábado, 29 de Março de 2003

%Luís Miguel Queirós e Carlos Câmara Leme

O interesse pela poesia é, em Portugal, algo da ordem do milagre, afirmou há um par de anos, numa entrevista ao PÚBLICO, o ensaísta Eduardo Lourenço, bem colocado para traçar comparações com o mercado editorial francês. Um fenómeno que não só não abrandou, como parece estar a intensificar-se nestes anos inaugurais do século XXI. As editoras publicam novos títulos a um ritmo alucinante, surgem novas colecções de poesia, as revistas e jornais dedicam "dossiers" aos poetas mais jovens e regressaram em força as antologias da "novíssima" lírica portuguesa, para já não referir outros sinais exteriores igualmente sintomáticos, como a recente querela entre críticos ou o facto de a polémica em torno da antologia "Século de Ouro" ter chegado ao Parlamento, episódio porventura sem precedentes na história da cultura ocidental.

Face às décadas anteriores, o que parece distinguir o momento actual é a emergência de uma genuína nova geração de poetas, algo que só seria possível encontrar, defendem alguns, remontando aos anos 70, se não à década anterior. O PÚBLICO quis saber o que pensam os críticos da hipótese de estarmos a assistir, sensivelmente desde meados dos anos 90, ao aparecimento de um conjunto de poetas que, com tudo que os distingue uns dos outros, corporizam uma geração, no sentido forte do termo. Ouvidos ensaístas de idades, percursos e registos diversos, boa parte deles também poetas, verifica-se que quase todos aceitam a tese, ainda que o consenso comece a esboroar-se quando se trata de discutir o mérito desta nova poesia, ou de lhe traçar as linhagens, ou ainda de assinalar quais serão os seus protagonistas mais revelantes.

Entre os que defendem com maior empenho a vitalidade dos anos 90, por contraste com uma década de 80 alegadamente mais pobre e incaracterística, encontram-se dois críticos que integram, enquanto poetas, a geração em causa: Pedro Mexia e José Ricardo Nunes. Ao passo que Mexia defende que a poesia actual "sai directamente dos anos 70", saltando, "como um cavalo no xadrez", sobre a década seguinte, já o segundo, mesmo aceitando que há, nos poetas de hoje, "muita melancolia e muito hiper-realismo", defende que "os melhores são os que fogem um bocado a esses escolhos".

Ainda assim, quando ambos apontam os poetas de revelação recente que mais apreciam, mostram-se sintonizados no comum apreço por dois autores: Rui Pires Cabral (n. 1967), que se estreou em 1994 com "Pensão Bellinzona & Outros Poemas" e cujo último livro, "Música Antológica & 11 Cidades" (Presença), data de 1997, e Carlos Luís Bessa (n. 1967), cujo primeiro título a solo é "Legenda", de 1995, e que publicou ainda "Termómetro. Diário" (1998) e "Lançam-se os Músculos em Brutal Oficina" (&etc., 2000). Ambos aparecem também na recém-lançada antologia "Poetas sem Qualidades" (Averno, 2002), organizada pelo poeta e crítico Manuel de Freitas.

O nome de que Mexia se sente "mais próximo" é o de Luís Quintais (n. 1968), que ganhou o prémio Aula de Poesia de Barcelona com "A Imprecisa Melancolia" (1995), e que, desde então, publicou já mais quatro títulos, o último dos quais, "Angst" (Cotovia), saiu em 2002. Mas refere também os primeiros livros de José Tolentino Mendonça (n. 1965), embora ressalvando que a poesia do autor "tem alguns perigos à espreita", designadamente "um estilo amaneirado" que o crítico considera "tributário do lado mau de Eugénio de Andrade". Recorde-se que o prefácio do último livro de Tolentino Mendonça, "De Igual para Igual" (Assírio & Alvim, 2001), é assinado pelo poeta de "As Mãos e os Frutos".

José Ricardo Nunes acrescenta à breve lista das suas afinidades electivas o próprio Pedro Mexia (n. 1973), autor de "Duplo Império" (1999), "Em Memória" (Gótica, 2000) e "Avalanche" (Quasi, 2001). E Mexia destaca também Jorge Gomes Miranda (n. 1965), que editou três títulos de poesia - "O que Nos Protege" (Pedra Formosa, 1995), "Portadas Abertas" (Presença, 1999) e "Curtas-Metragens" (Relógio d'Água, 2002) - e é ainda autor daquela que teria sido a primeira visão panorâmica da sua geração literária, "Tráfico: Antologia da Nova Literatura Portuguesa", realizada por encomenda da Porto 2001, que, inexplicavelmente, ainda não fez sair a obra. Além de se debruçar também sobre os novos ficcionistas, dramaturgos e ensaístas, o volume, com uma extensa introdução de cerca de uma centena de páginas, estuda e selecciona boa parte dos poetas aqui referidos, e ainda alguns que nenhum dos críticos ouvidos citou, como José Miguel Silva (n. 1969), autor de "O Sino de Areia" (Gilgamesh, 1999) e "Ulisses já não Mora aqui" (&etc., 2002).

No que Mexia e José Ricardo Nunes estão mesmo de acordo é na convicção de que a poesia portuguesa atravessa um momento alto. "Há de facto uma nova geração", garante o segundo, "uma fornada com mais autores e mais qualidade do que a dos anos 80". Mexia confirma. Os poetas mais recentes, diz, revelam um tom comum, cujo "traço marcante tem a ver com a revalorização daquilo a que em Espanha se chamou 'poesia da experiência'" e que resulta numa "poesia de recuperação da banalidade, do quotidiano, da experiência urbana, de um certo pessimismo".

Autor de um volume de ensaios dedicado a "9 Poetas para o Século XXI", onde aborda detalhadamente a poesia de vários dos autores aqui referidos, e ainda a de Paulo José Miranda (n. 1965), João Luís Barreto Guimarães (n. 1967) e do precocemente desaparecido Daniel Faria (1971-1999), José Ricardo Nunes reconhece que "a palavra 'realidade' é talvez a que mais continua a interpelar-nos, quando olhamos para este conjunto de poetas". No entanto, nota que, se alguns deles optam por "discursos melancólicos e crepusculares, nos quais se tem encenado o adeus e a perda", outros recorrem a "discursos mais combativos e desmistificadores".

O poeta e ensaísta Gastão Cruz também acha que a poesia portuguesa mais recente aposta naquilo a que chama "um mergulho no real" e que é devedora do modo como alguns poetas dos anos 70 procuraram romper com a sua própria geração. Mas está longe de partilhar do entusiasmo crítico de Mexia e Nunes e receia que o programa da poesia dita da experiência esteja a resultar, em muitos casos, "numa tendência para a facilidade de escrita". Evitando apontar exemplos, por julgar que "é uma coisa um bocado generalizada", Gastão Cruz crê que se está a "descurar o esforço de transfiguração do quotidiano através da linguagem", em prol de uma abordagem "mais imediata, que não recua perante a pequena crónica do centro comercial, do bar ou do supermercado" e que não oferece a possibilidade de "uma leitura menos literal".

Um juízo que a ensaísta Rosa Maria Martelo, responsável pelo capítulo relativo à poesia dos anos 90 na "História da Literatura Portuguesa" que a Alfa vem publicando, parece pôr em causa, quando sugere que este "tom menor" se articula "com a auto-apreensão de uma subjectividade que se diria procurar ainda nas pequenas coisas uma experiência de infinitude capaz de suspender a permanente disseminação de um mundo plural, sem centro e sem limites".

Num ensaio que aborda um grande número de poetas e que procura demonstrar a coexistência de diversas linhas dominantes na poesia dos anos 90 - recusando a ideia de que a temática da melancolia funcionaria como uma espécie de mínimo denominador comum -, Rosa Maria Martelo vê como uma das prováveis "marcas distintivas da poesia portuguesa recente" aquilo a que, citando um artigo de Eduardo Prado Coelho sobre Pedro Mexia, chama "o olhar que precede o discurso". Será a passagem de uma poesia que "parecia esperar que a linguagem dotasse o sujeito de um novo olhar" (a frase vem a propósito de um poema de Luiza Neto Jorge) para uma nova relação entre estes mesmos termos, na qual se diria "ser da interacção olhar/mundo que se espera ver surgir uma nova linguagem".

Também Gastão Cruz, de resto, embora sublinhe o que lhe parecem ser as fragilidades de muita da poesia actual, admite que o cenário comporta excepções. Nas "gerações mais jovens" destaca, além do já desaparecido Luís Miguel Nava, dois poetas dos anos 80, Paulo Teixeira (n. 1962) e Fernando Pinto do Amaral (n. 1960), e outros dois da década seguinte, Luís Quintais e Tolentino Mendonça. Recorda também a estreia tardia de Manuel Gusmão (n. 1945), que considera "uma das grandes revelações dos anos 90", e acrescenta: "Não podemos esquecer que alguns dos poetas que asseguraram a melhor produção desta década são de gerações anteriores, como Pedro Tamen, Fiama, Armando Silva Carvalho e Franco Alexandre, ou ainda Ramos Rosa e Eugénio de Andrade, que mantêm o seu alto nível."

Olhar não menos céptico sobre a produção dos poetas mais recentes é o de Osvaldo Silvestre, ensaísta e co-organizador da já referida antologia "Século de Ouro", que vê na generalidade do que estes escrevem "alguma debilidade discursiva". O que estes últimos anos trouxeram, segundo Silvestre, "foi a força de alguma afirmação geracional, quase toda ela em torno da editora Quasi e com a novidade da sustentação crítica, sobretudo de Pedro Mexia, a que haveria que somar ultimamente Manuel de Freitas, enquanto poeta e crítico".

Com estes dois nomes, e ainda com José Ricardo Nunes, "mas este menos publicamente empenhado", a geração actual, defende o ensaísta, "tem os tenores que as dos anos 80 ou 90 não tiveram, já que os candidatos a esse papel, e acima de todos Fernando Pinto do Amaral, rapidamente se deslocaram para um espaço crítico transgeracional".

Se aprecia o que escreveram nos anos 90 autores como Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Manuel António Pina, António Franco Alexandre, Vasco Graça Moura, Fernando Guerreiro ou Adília Lopes, entre outros, já dos poetas que se estrearam nos anos 90, Silvestre destaca apenas um nome: Daniel Faria. Está em sintonia com o poeta e ensaísta Manuel Gusmão, que, "a partir da antologia da Quasi", afirma ter sido este um dos poetas que o surpreendeu. Refere-se ao volume "Anos 90 e Agora", de Jorge Reis-Sá, entre cujas "revelações mais interessantes" Rosa Maria Martelo aponta ainda Carlos Saraiva Pinto, que, nascido em 1952, só se deu a conhecer em 1997, com "Viajante Transitório" (Tema), a que se seguiu "Escrever Foi Um Engano" (O Correio dos Navios, 2000).

Manuel Gusmão aproxima-se desta ensaísta e de José Ricardo Nunes na convicção de que nem todos os caminhos da nova poesia portuguesa passam pela melancolia. Notando que esta menção se tornou quase "um outro nome para o pós-modernismo", pensa que "a melancolia ou é um chapéu de chuva demasiado largo ou demasiado estreito, e alguns poetas ficam de fora dele". Não deixa de ser curioso que, a título de exemplo, aponte o autor de "A Imprecisa Melancolia", Luís Quintais.

Admirador de Joaquim Manuel Magalhães não apenas enquanto crítico, mas também como poeta - qualidade em que o crê subestimado -, Gusmão encara com algumas reservas o modo como muitos têm procurado aproximar a sua obra da poesia dos autores mais novos. Lembrando que, desde "Os Dias Pequenos Charcos" (1981), a poesia de Magalhães associa a "um saber prosódico muito nítido" uma "vontade de violência"; e, sublinhando que o recente "Alta Noite em Alta Fraga" (2001) é "um livro que incomoda, um livro onde a experiência do mundo é uma experiência violenta", Gusmão sugere que podemos estar perante algo que é "um reverso do consenso em torno da generalizada qualidade média da poesia portuguesa". E é justamente essa "qualidade mediana" que lhe parece perigosa. "Não sei se é falta de exigência ou falta de pujança."

Mais optimista mostra-se o ensaísta e tradutor João Barrento, que, no extenso texto com que respondeu ao pedido de um depoimento sobre a poesia portuguesa actual - espera-se que em breve o publique na íntegra -, detecta, além de vários outros nomes "significativos", seis autores cuja voz própria os torna "casos ímpares": Manuel Gusmão, Paulo Teixeira, Fernando Guerreiro, Daniel Faria, Adília Lopes e Manuel de Freitas. Este último, enquanto poeta, estreou-se já em 2000, com "Todos Contentes e Eu Também" (Campo das Letras). Desde então publicou mais seis títulos, sendo os últimos, todos de 2002, "Game Over" (&etc.), "[sic]" (Assírio & Alvim) e, em edição de autor, "Levadas".

Numa inventariação das diversas linhagens onde "os novíssimos vão ainda beber", Barrento associa este poeta a Herberto Helder e ao "filão, fortíssimo, da 'vocação animal' do poema, omnívoro e violento", afirmando que Manuel de Freitas "soube, melhor do que nenhum outro, cruzar e superar a 'lição' de Herberto (socializando-lhe o essencialismo visceral) com a visão crua, quase apocalíptica, do real que vem dos inícios da década de 80 e de Joaquim Manuel Magalhães".

Outros "filões" que o ensaísta vê ainda darem fruto são o elegíaco, que "no seu melhor surge em livros de Fernando Pinto do Amaral, José Tolentino Mendonça, ou Luís Quintais", a "melancolia culta", que, depois de Graça Moura, reconhece em Paulo Teixeira e "nalguma poesia de Pedro Mexia ou Fernando Guerreiro", a "tradição intimista", que "dá alguns bons livros de Ana Luísa Amaral, Maria do Rosário Pedreira ou Ana Marques Gastão", e ainda o "grande campo dos enredos banais de um tempo em ruínas", onde destaca Manuel de Freitas, mas encontra também lugar para Paulo José Miranda - autor de três livros editados pela Cotovia: "A Voz que Nos Trai" (1997), "A Arma do Rosto" (1998) e "Tabaco de Deus" (2002) -, Rui Pires Cabral, Jorge Gomes Miranda, Carlos Luís Bessa e Ana Paula Inácio (n. 1966), que publicou dois livros no ano 2000: "As Vinhas de Meu Pai" (Quasi) e "Vago Pressentimento Azul por Cima" (Ilhas).

Paulo José Miranda, Manuel de Freitas e Daniel Faria são também nomes destacados por Bernardo Pinto de Almeida, embora este poeta e crítico de poesia e de artes plásticas suspeite um tanto das leituras geracionais. "O país de poetas está bem, obrigado, mas isso não quer dizer nada, porque a poesia é sempre apesar disso", afirma, aproximando-se talvez, em formulação irónica, dos receios que a celebrada "qualidade média" dos poetas portugueses actuais inspira a Manuel Gusmão. "Só há poetas bons e maus, não há intermédios", sustenta Bernardo Pinto de Almeida, lembrando que, de uma geração, ficam sempre poucos poetas e, destes, "fica um verso, às vezes um poema".

Se assim for, parece razoável esperar que entre os autores desses exíguos vestígios que o futuro se dignará conservar venham a constar alguns dos nomes evocados neste texto, que se faz acompanhar de uma brevíssima escolha, que de todo não se pretende representativa, de alguns poemas do século XXI, todos eles de poetas revelados a partir dos anos 90.


tricky:
http://nme.co.uk/news/104554.htm

http://www.moon-palace.de/tricky/news.html

http://www.drownedinsound.com/articles/6344.html



ANUNCIAÇÃO

Se a guerra viesse agora
em forma de canção, o céu tão
de laranja de repente
obliterando o sol,
se a guerra aqui viesse às oito e
meia da manhã e uma
primavera ainda tão de cheiros
e muros luminosos,
se ela agora chegasse em olho
de ciclope,

não via essa varanda de traseiras,
sapatos de criança em parapeito a este
sol oblíquo? ou a rapariguinha para a
escola, o cabelo molhado e
limpo? persianas erguendo-se de novo
e outra vez, e um rosto? um mulher de saia
azul e cesto posto ao braço voltando
de mercado? os diários ofícios de silêncio
e amor? relva a nascer? flores
repentinas? tranças? lenços? pão
quente?

Se a guerra aqui viesse
e em brilho incandescente o tempo
se parasse por segundo
em desperdício agudo
e de rotina ausente

Nem deus, nem anjo a radiar
o céu -
sobrado fumegante -
metade de um sapato
e atacador, cavalo replicando
em contra-movimento: resíduos de uma
flor e de uma

trança

In "E MUITOS OS CAMINHOS", Poetas das Letras, Porto, 1995
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QUASE DE NADA MÍSTICO

Não, não deve ser nada este pulsar
de dentro: só um lento desejo
de dançar. E nem deve ter grande
significado este vapor dourado,

e invisível a olhares alheios:
só um pólen a meio, como de abelha
à espera de voar. E não é com certeza
relevante este brilhante aqui:

poeira de diamante que encontrei
pelo verso e por acaso, poema
muito breve e muito raso,
que (aproveitando) trago para ti.

In "ÀS VEZES O PARAISO", Quetzal Editores, Lisboa, 1998
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AS PEQUENAS GAVETAS DO AMOR

Se for preciso, irei buscar um sol
para falar de nós:
ao ponto mais longínquo
do verso mais remoto que te fiz

Devagar, meu amor, se for preciso,
cobrirei este chão
de estrelas mais brilhantes
que a mais constelação,
para que as mãos depois sejam tão
brandas
com as desta tarde

Na memória mais funda guardarei
em pequenas gavetas
palavras e olhares, se for preciso:
tão minúsculos centros
de cheiros e sabores

Só não trarei o resto
da ternura em resto desta tarde,
que nem nos foi preciso:
no fundo do amor, tenho-a comigo:
quando a quiseres -

In "IMAGIAS", Gótica, Lisboa, 2002
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Ana Luísa Amaral



A VERDADE HISTÓRICA

A minha filha partiu uma tijela
na cozinha.
E eu que me apetecia escrever
sobre o evento,
tive que pôr de lado inspiração e lápis,
pegar numa vassoura e varrer
a cozinha.

A cozinha varrida de tijela
ficou diferente da cozinha
de tijela intacta:
local propício a escavação e estudo,
curto mapa arqueológico
num futuro remoto.

Uma tijela de louça branca
com flores,
restos de cereais tratados
em embalagem estanque
espalhados pelo chão.

Não eram grãos de trigo de Pompeia,
mas eram respeitosos cereais
de qualquer forma.
E a tijela, mesmo não sendo da dinastia Ming,
mas das Caldas,
daqui a cinco ou dez mil anos
devia ter estatuto admirativo.

Mas a hecatombe
deu-se.
E escorregada de pequeninas mãos,
ficou esquecida de famas e proveitos,
varrida de varrouras e memórias.

Por mísero e cruel balde de lixo
azul
em plástico moderno
(indestrutível)

In "MINHA SENHORA DE QUÊ"(1990), 2ª edição, Quetzal Editores, Lisboa, 1999
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KAMASUTRAS

Atira a roupa toda
para o chão.
Depressa. Sem momento sedutor
nenhum.

As peças aos bocados,
desmaiadas,
caídas pelo chão.
Do mais pesado ao mais quase
infinito de leveza.

E deixa a luz
acesa. Sem sedução
nenhuma. Uma luz pelo menos
de 60 watts.
Ou então crua,
de supermercado

Escolhe armário,
sítio esquadriado
onde os corpos
não possam descansar.
Sem qualquer tipo
de preliminar,
assalta-me
vestida:
que eu tenha a roupa
toda. Do mais pesado
ao mais
quase íntimo de leveza.
Luzes todas acesas
Depressa
e de repente

Passemos à cozinha.

E lá, numa poética de mãos,
em suprema ginástica de olhar,
comamos lentamente,
com saber hindu,
os restos do assado sobrado
do jantar

À luz
fosforescente
e sedutora, no mais
preliminar,
lança contra o fogão,
por sobre o ombro,
o copo de cristal
(dos de pé alto!)

Que o chão,
ao ser-lhe agudo como asfalto,
lhe ensine o kamasutra
em última edição

In "COISAS DE PARTIR"(1993), 2ª edição, Gótica, Lisboa, 2001
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Ana Luísa Amaral


sexta-feira, março 28, 2003




A minúcia de Vermeer em mínimas palavras:


Vermeer de Delft


É manhã no copo:
Tempo de decifrar o mapa
Com seus amarelos e azuis,
De abrir as cortinas – o sol frio nasce
Nos ladrilhos silenciosos –,
De ler uma carta perturbadora
Que veio pela galera da China:
Até que a lição do cravo
Através de seus cristais
Restitui a inocência.



Murilo Mendes





é mais do que um monumento de fotografia, é uma obra de arte.
é, sem dúvida, uma grande lição de fotografia.
é um poema em imagens, em fotografias.
é um poema a preto e branco com tanta luz.
já perdi as vezes que vi Persona.
quando o volto a ver, é sempre o primeiro olhar que volta,porque não há maneira de sublinhar uma cena, não há maneira de influenciar uma segunda visão-leitura.
não, a fotografia não é um elemento secundário, porque, vamos a ver, o cinema é ainda uma questão de fotografia.
agora que comecei a dizer alguma coisa sobre fotografia, obviamente penso mais em fotografia e, também assalta-me a vontade de deixar de escrever.hoje pensei em passar pela fnac, pelo fim da tarde, pra ver fotografias, fotografias. ver somente e não pensar nas referências imediatas à outros fotógrafos. é cada vez mais complicado ver fotografia sem cair na sedução dos cruzamentos.



Alphaville (Une Etrange Aventure de Lemmy Caution) (1965), de Jean-Luc Godard







Not all the inhabitants died, but they were all stricken


Those not asphyxiated by the absence of light...
...sped about crazily, like ants
It was 23.15, Oceanic Time...
...when Natasha and I left Alphaville by the ring road
A night drive across intersidereal space, and we’d be home


Johnson: Don’t look back
Natasha: Do you think they’re all dead?
Johnson: Not yet
They may recover, and Alphaville will be happy, like Florence
Like Angoulême City, like Tokyorama
Natasha: Have I slept for long?
Johnson: No, just the span of a moment
Natasha: Where are we? In the Lands Without?
Johnson: Not yet
Natasha: You’re looking at me very strangely
Johnson: Yes
Natasha: You’re waiting for me to say something to you
Johnson: Yes
Natasha: I don’t know what to say
They’re words I don’t know
I wasn’t taught them
Help me
Johnson: Impossible, Princess. Help yourself, then you’ll be saved
If you don’t, you’re as lost as the dead of Alphaville
Natasha: I
love
you
I love you


The End


Ouvre tes ailes beau visage
Impose au monde d'être sage
Puisque nous devenons réels.


Paul Éluard

CAPITAL DA DOR




A internet é ainda a velocidade de luz num campo de guerra...

um diário de guerra que não devia existir (pelas razões que todos já conhecemos):
http://dear_raed.blogspot.com


a citação em destaque do blog:
"the West won the world not by the superiority of its ideas or values or religion but rather by its superiority in applying organized violence. Westerners often forget this fact, non-Westerners never do."
Samuel P. Huntington

"Sonhos e conflitos" Bienal de arte de Veneza dedicada aos conflitos no Mundo

A 50.ª edição da Bienal de Veneza de arte contemporânea, de 15 de Junho a 2 de Novembro, terá por tema "Sonhos e conflitos: a ditadura do espectador", anunciou o seu director, Francesco Bonami. A mostra é um dos acontecimentos culturais com maior prestígio ede maior projecção no Mundo; procurará, este ano, aproximar a arte da realidade, retratando conflitos e crises mundiais.
Portugal estará representado por Pedro Cabrita Reis, ficando o pavilhão português instalado nos Antichi Granai, na ilha de Giudecca. Este pavilhão foi produzido e organizado pelo Instituto de Arte Contemporânea, sendo comissariado por Vicente Todoli e João Fernandes, através do Museu de Serralves.
Pela primeira vez, a mostra geral será composta por uma dezena de projectos com uma identidade e autonomia próprias, cada um deles confiado a um director diferente "de modo a ter em consideração a diversidade da realidade artística contemporânea", precisou Bonami.
A exposição decorrerá em vários locais da cidade dos Doges, nomeadamente nos Jardins da Bienal, no Arsenal e no Museu Correr, na Praça de São Marcos, e apresentará várias centenas de trabalhos de 64 países.
"A nossa época já não permite conceber um grande evento de arte contemporânea como um exercício puramente estético dissociado do mundo no qual vivemos", sustentou Bonami.


© JN Online

"Há dois géneros de autores dramáticos. Os primeiros fazem jogos teatrais com a realidade. Alguns fazem-no mal, outros fazem-no bem, e neste caso as suas peças podem mesmo continuar a ser interessantes. Os autores do segundo género mudam a realidade. É o que fizeram os Gregos e Shakespeare. (...)
Sarah Kane era uma autora dramática do segundo género. O confronto com o implacável criava as suas peças. Terá ela sabido- terá o autor dentro dela sabido- que poderia deixar de ser capaz de o enfrentar nas suas peças? A nossa sociedade e o nosso teatro opõem-se. Devemos consumir para manter a economia, para manter a única via que nos damos ao trabalho de imaginar. Mas a necessidade de consumir não é o desejo de ser humano. Este desejo é a necessidade de enfrentar o implacável. É esta lógica da nossa situação. Se não o enfrentarmos para encontrar a nossa humanidade, é ele que nos enfrentará e destruirá. É esta a lógica do século XXI. (...)
Sarah kane tinha de enfrentar o implacável. Só podemos retardar o confronto se estivermos certos de que ele ocorrerá num dado momento. Senão ele esquivar-se-á. Tudo o que Sarah Kane fazia tinha autoridade. Se pensava que o confronto talvez não pudesse ocorrer no nosso teatro- porque está a perder a sua função de compreensão e os seus meios-não podia correr o risco de esperar. Em vez disso, representou-o noutro lugar. Os meios de enfrentar o implacável são a morte, a casa de banho e os atacadores de sapatos. São eles o comentário que ela tinha a fazer sobre a perda de sentido do nosso teatro, das nossas vidas e dos nossos falsos deuses. A sua morte é a primeira morte do séc XXI. "



Edward Bond


Ensaio de Alberto Pimenta "O Silêncio dos Poetas" volta às livrarias


O ensaio "O Silêncio dos Poetas", de Alberto Pimenta, esgotado em Portugal desde finais da década de 80, volta às livrarias numa
nova edição que inclui dois novos estudos, com chancela da Cotovia.

Publicado em Portugal pela primeira vez em 1978 pela editora A Regra do Jogo, "O Silêncio dos Poetas" regressa agora com os estudos "Reflexões sobre a função da arte literária" e "A dimensão poética das línguas".


Para Alberto Pimenta, a unir estes dois novos textos entre si e ao livro antes editado está "uma ideia central, a de que a expressão estética exige uma apreensão estética".


A professora universitária italiana Carmen M. Radulet recorda que o ensaio de Alberto Pimenta "nasce através de uma reflexão complexa de carácter teórico, iniciada na Alemanha em fins dos anos 60, e aperfeiçoada depois durante um confronto a nível académico com os investigadores italianos".


É também esta docente quem sublinha o carácter provocador do poeta, que chegou a queimar o seu livro para o ver renascer agora, por ocasião do centenário do nascimento de Th. W. Adorno, teórico que lhe esteve e continua a estar mais próximo.


O livro é divulgado de norte a sul do país na primeira quinzena de Abril, mas pode ser já encontrado na livraria da Cotovia em Lisboa com 10% de desconto, numa iniciativa que visa ajudar ao relançamento deste espaço livreiro.


Alberto Pimenta nasceu em 1937 e entre os seus livros publicados desde 1970 destacam-se "O Labirintodonte", "Os Entes e os Contraentes", "Heterofonia", "A Visita do Papa", "Homilíada Joyce", "Read & Mad" e "As 4 Estações".


São também de sua autoria "The Rape", "Sex Shop Suey", "IV de Ouros", "Tomai Isto é o meu Porco", "A Divina Multi(co)média", "Santa Copla Carnal", "Obra Quase Incompleta" e "A magia que tira os pecados do mundo".


Agência LUSA



If I could tell you


TIme will say nothing but I told you so,
Time only knows the price we have to pay;
If I could tell you I would let you know.

If we should weep when clowns put on their show,
If we should stumble when musicians play,
Time will say nothing but I told you so.

There are no fortunes to be told, although,
Because I love you more than I can say,
If I could tell you I would let you know.

The winds must come from somewhere when they blow,
There must be reasons why the leaves decay;
Time will say nothing but I told you so.

Perhaps the roses really want to grow,
The vision seriously intends to stay;
If I could tell you I would let you know.

Suppose the lions all get up and go,
And all the brooks and soldiers run away;
Will Time say nothing but I told you so?
If I could tell you I would let you know.


W. H. Auden (1907 - 73)





Her Anxiety



Earth in beauty dressed
Awaits returning spring.
All true love must die,
Alter at the best
Into some lesser thing
Prove that I lie.

Such body lovers have,
Such exacting breath,
Theat they touch or sigh.
Every touch they give,
Love is nearer death.
Prove that I lie.

W. B. Yeats (1865 - 1939)


Piano


Softly, in the dusk, a woman is singing to me;
Taking me back down the vista of years, till I see
A child sitting under the piano, in the boom of the tingling strings
And pressing the small, poised feet of a mother who smiles as she sings.

In spite of myself, the insidious mastery of song
Betrays me back, till the heart of me weeps to belong
To the old Sunday evenings at home, with winter outside
And hymns in the cosy parlour, the tinkling piano our guide.

So now it is vain for the singer to burst into clamour
With the great black piano appassionato. The glamour
Of childish days is upon me, my manhood is cast
Down in the flood of rememberance, I weep like a child for the past.

D. H. LAWRENCE (1885 - 1930)





`Much Madness is divinest Sense`


Much Madness is divinest Sense -
To a discerning Eye -
Much Sense - the starkest Madness -
`Tis the Majority
In this, as All, prevail -
Assent - and you are sane -
Demur - you`re straightaway dangerous -
And handled with a Chain -

Emily Dickinson (1830 - 86)






The Sick Rose


O Rose thou art sick.
The invisible worm
That flies in the night
In the howling storm,

Has found out they bed
Of crimson joy:
And his dark secret love
Does they life destroy.


William Blake (1757 - 1827)



arquivo de poemas:
http://www.thetube.com/content/poems/archive.asp




Segredo do corpo e do sexo


Uma significação ética para o corpo dir-se-ia aquilo que Mathilde Monnier, figura relevante da dança francesa e responsável pelo Centro Coreográfico Nacional de Montpellier, procura. Toda a relação passa pelo segredo do corpo, real ou ideal, lugar do desejo, da emoção, das sensações, suporte da existência psíquica. A coreógrafa sabe-o, ela que o tratou de forma abstracta, depurado o gesto, ou se interessou pelo estudo das patologias sociais e culturais (autismo, doença mental, incomunicabilidade), considerando a dança intervenção sociológica ou política. Signé, Signés, díptico construído entre o Verão de 2000 e o Inverno de 2001, é hoje e amanhã apresentado, às 21.30, na Culturgest e a 3 e 4 de Abril, no Teatro Viriato, em Viseu.

Duas partes, portanto, nesta coreografia, a da evocação do mestre, Merce Cunningham, «nem didáctica, nem conceptual», mais musical; e a da sexualidade, o valor do corpo despojado, metaforicamente nu, construído a partir da sua finitude e extensão carnais.

Curiosa a eliminação do elemento feminino na peça (porquê, pela necessidade de exploração do universo masculino?) e a afirmação repetitiva do gesto, reveladora não só do facto solidão, como da experiência da fisicalidade e do erotismo.

Não é Cunningham puro o de Mathilde Monnier, embora em Signé, Signés se encontrem a instalação vídeo, os pássaros na gaiola (com tratamento sonoro correspondente), lembrando o livro de John Cage, For The Birds. Apesar da ausência de narração e da concentração no movimento, ele existe, para Mathilde Monnier (ao contrário do criador de Points in Space oude Two Step), como signo de um estado afectivo e não somente como objecto artístico. A artista quis falar do seu passado pós-moderno. Para além de todas as intenções e implicações psicológicas, há que reconhecer em Mathilde Monnier eloquência no despojamento, expressividade poética, a sonoridade do gesto conjugado com a sensualidade. Nada é limitado, codificado, e vai surgindo uma variedade de situações e de ambiências que transporta o espectador para uma ideia de solidão e de paisagem emocional. Nesta coreografia, com cenografia eficaz de Annie Tolleter, música de Erikm, luzes de Éric Wurtz, imagens de Karim Zeriahen, passa-se da abstracção à história de quatro bailarinos debruçados sobre a intersubjectividade e sobre a sua relação com a sexualidade. O olhar é indirecto, subtil, às vezes árido.


ANA MARQUES GASTÃO
DN Online

quinta-feira, março 27, 2003


A Autora: Cristina Campo - Poeta e ensaísta

Apesar de na obra de Cristina Campo se poderem distinguir três géneros literários, a poesia, o ensaio e a tradução, é o poema (embora tenha escrito apenas 31) que se impõe na escrita da autora de Quadernetto, cada palavra com o «sabor máximo», a que se referiu Simone Weil. Inquieta, saúde debilitada, «o coração batendo como um pêndulo», a escritora jogou com pseudónimos, Maria Angelica, Marcella, Cristina, no silêncio de uma sociedade literária que a não compreendeu. Infância em Bolonha, juventude florentina, viveu os anos da guerra e os de Roma. A biografia Belinda e il Mostro/Vita Secreta di Cristina Campo (Adelphi, 2002) revela as amizades (mantidas, muitas vezes, por carta), os amores (turbulenta a relação com Elémire Zolla, casado há pouco com Maria Luisa Spaziani), a semente da escrita, a fé, as causas religiosas. Publicados estão Gli Imperdonabili (1987), Sotto Falso Nome (1998), Lettere a Mita (1999). La Tigre Assenza inclui todos os poemas e traduções poéticas, editados e inéditos.


Mínimas as palavras na orla de uma ferida


A evidência do amor não é dissecação anatómica na obra poética, mínima e rigorosa, de Cristina Campo (1923-1977). Não é imotivada nem aparenta amar sem medida. A evidência do amor nos poemas da também exímia ensaísta e tradutora italiana dir-se-ia transfiguração distante, solitária, percepção obscura, como referiu Leibniz, realidade de uma experiência concreta aliada a uma percepção do absoluto: «Ficou a carícia que não encontro/senão entre dois sonos, a infinita/minha sabedoria em pedaços. E tu, palavra/que transfiguravas o sangue em lágrimas.»

Insere-se o poema no livro O Passo do Adeus (1956), recentemente editado pela Assírio & Alvim, com delicada tradução e excelente prefácio do poeta José Tolentino Mendonça. Morreremos Separados é o primeiro poema (embora não tenha sido o primeiro que escreveu), inspirado nos corpos de dois jovens que Cristina Campo viu numa sala do Museu do Vaticano, primeiro unidos e, mais tarde, separados. Ao dar-se conta da separação, explicaria em carta a Margherita Dalmati, o coração partiu-se com os seus. A escrita viria mais tarde: «Morreremos separados. Quando muito/pousarei a face na tua mão/ao terminar do ano; se em minha mão o rasto/de uma outra migração contemplares.»

Esta uma primeira percepção da poesia da autora do peculiar livro de ensaios, Gli Imperdonabili, que nos lança na transcendência amorosa, numa ética da intenção, num acto contínuo anulando a distância entre um Eu e um Tu, que pode ser também relação divina: «(Agora a vida inteira no meu olhar,/brilha sobre ti, sobre o mundo que o teu passo fecha).»

Pseudónimo de Vittoria Guerrini, Cristina Campo nasce em Bolonha, em 1923. Nos anos da infância, tem raízes o seu universo sapiencial da fábula, determinante no pensamento literário assente também na passagem por Florença e na escrita iluminada de Hofmannsthal e Simone Weil. Mario Luzi, Leone Traverso, Gabriella Bemporad, Margherita Dalmati e Margherita Pierraci (que se ocupará da sua obra) serão vozes marcantes de um mundo ocupado, como disse Pound, em tudo dizer num número mínimo e exacto de palavras.

Harmónico no uso da linguagem, O Passo do Adeus foi incompreendido pela crítica: «La mia lingua, lo so bene, è armoniosa, troppo, persino. È proprio questo che a me non va. Io faccio dell'oreficeria, mentre si deve lavorare la pietra.» Cristina Campo abeirava-se da escrita, di-lo Tolentino Mendonça, com «aquele luxo de que só é capaz um asceta», numa aproximação «entre poesia e liturgia» na recusa do supérfluo. E as suas traduções, reunidas com a poesia em La Tigre Assenza (Adelphi, 1991) são diálogos de amizade nos quais se reconhecem os dotes da escritora contemplativa que viaja do culto católico ao bizantino, consciente, na literatura, do equilíbrio imagem/metáfora/símbolo/mito.

Num continuum sensorial e estético move-se a escrita de Cristina Campo, no poema curto ou longo, na incorporação organizada de uma grande variedade de experiências humanas. O melhor mundo é, para Spinoza, aquele em que há um máximo de ser, habitando o poeta «entre as orlas de uma ferida»: Nada mais resta que estender a mão/até ela ficar do tamanho da noite;/e divisar a espera da sua consolação,/seio antigo que perdeu o leite.»

Já Jankélévitch dizia que «é moral amar», porque o amor é um valor categórico. Um valor de atenção suprema, de rigor.

ANA MARQUES GASTÃO
DN Online



quarta-feira, março 26, 2003


Digas o que disseres, não digas nada


I
Escrevo logo após um jornalista inglês
“sobre isto cá da Irlanda” pedir “pontos de vista”.
E nos quartéis de inverno eis-me outra vez
onde não é notícia notícia má que exista,


onde os homens dos media farejam e perguntam
e zooms, gravadores, cabos em rodopio
põem hotéis em desordem. Os tempos desconjuntam
mas das contas de um rosário me fio


tanto como de análises e frases
da gente dos jornais, da política élite
que da longa campanha escrevinhou, dos gases
e do protesto e de armas, gelinhite,


que em seu pulsar provou “escalada”, “reacção”,
“repressão”, e “braço militar”, e “tanto”
ódio de longa dura” e “polarização”.
Porém eu vivo aqui, eu também vivo aqui, eu canto,


falo hábil, civilmente, com vizinhos civis
no arame das primeiras transmissões sem fio,
sorvendo o gosto falso, o pedernal matriz
de estafada resposta com bafio:


“Oh concordo, decerto, é uma desgraça incrível”,
“Onde é que isto termina?” “Inda o pior provoca.”
“São assassinos.” “O internamento, compreensível…”
A “voz da sanidade” está a ficar rouca.


Seamus Heaney
(tradução de Vasco Graça Moura)


As Árvores Botticellianas


O alfabeto das
árvores


esvai-se na
canção das folhas


as hastes interceptadas
das finas


letras que enunciavam
o inverno


e o frio
iluminaram-se


de verde vivo
com


a chuva e o sol —
Os rigorosos e simples


princípios dos
ramos rectos


vão sendo alterados
por íntimos


retoques de cor, cláusulas
devotas


os sorrisos do amor —
……


até que as frases
nuas


se movem como o corpo de
uma mulher debaixo do vestido


e louvam com sigilo e
desejo


a supremacia do amor
no verão —


No verão a canção
canta-se por si


sobre a surdina das palavras —


William Carlos Williams
(tradução de José Agostinho Baptista)


Inscrição


Quando morrer voltarei para buscar
os instantes que não vivi junto do mar



Sophia de Mello Breyner Andresen




Há ainda as glícinias caídas do lado
de lá do muro
o canto dos tanques no recanto do caminho
a rede na porta
a luz do sul que se fazia a norte
há na casa um calor húmido deixado pelo frio
e há Agosto
manchas de mosto num tempo ou lugar onde
a voz de Lotte para sempre ecoaria


Maria Andresen de Sousa






Na Rua das Mónicas


Nos meus vinte anos,
almoçar em casa de Sofia
era ouvir ferver em cachão, frigir
na cozinha,arfar a cafeteira da poesia.
Era ver a ama de Sofia,
e de todos os filhos,de muitos versos,
cuidar de muitas gerações de memórias,
no lar desses versos tão caseiros.
E era beber, ali, na mesa,uma água
que, mais do que a da torneira,
concitou o mar para cada copo.
Era olhar um rosto de coral
(o que exorciza as Fúrias,na cozinha)
um rosto de mar novo, de geografia.
Era escutar as palavras da boca
do vocábulo grego para sabedoria,
o que me confirma o poder dos nomes,
ao serem Verbo,sobre os seres e as coisas.
Era sentar-me, lado a lado,
no espaço irradiante da volúvel lareira,
no Outono apagada, na Primavera acesa,
e com o fogaréu alimentado
por papéis venais de outra política
(que não a da sua humanidade),
que a prudência mandava destruir no fogo.
Era entrar e sair pela porta das Mónicas,
a das mulheres congregadas
sob invocação da mãe de Agostinho,
o que para mim celebrava também
o amor de mãe, da velha ama, da Poesia.


Fiama Hasse Pais Brandão





Eis o que disse Eduardo Lourenço, no dia de Poesia:
«Neste momento, com a violência de novo no palco iluminado do mundo (...), que sentido tem ainda esse fazer obscuro, enigmático, ao mesmo tempo inútil e sublime, que nós continuamos a chamar poesia? Porventura a violência e o mal onde enraíza são tão racionais como Kant o pensava e a poesia com que tentamos exorcizá-los a mais absurda e quixotesca actividade humana. Contudo, esse é o preço que devemos pagar se queremos converter a inumanidade de onde emergimos na única luz que dela nos redime.» (...)
«A poesia é apenas o homem resistindo à tentação de se deixar silenciar pelo que o nega e se sobrepõe à sua voz. Uma só rosa no meio do inferno é o paraíso inteiro.»

António Franco Alexandre ao dizer "apenas vou ler uns poemas insignificantes", diz claramente que os poemas têm uma importância menor.
E só pode ter mesmo, porque, na verdade, a poesia não eterniza nada, não nos salva de nada ,não redime coisa nenhuma. Sendo assim, para quê escrever poesia, se é mesmo um fazer inútil?
Eduardo Lourenço fala em esperança.
Adorno fala na barbariedade de um homem escrever poemas de Auschwitz, pois a flor já não é azul. Só que há também o reinvidicar do direito ao sonho.

Tenho que procurar um poema de Eugénio de Andrade, porque a sua poesia não é somente solar....



se um poeta consegue fazer um dique entre o teatro do mundo e o fazer poético, depende muito do poeta, na verdade.
resposta ainda suspensa na minha cabeça. eu volto de certeza.

já agora h helder, também em photomaton & Vox,

" a realidade é um repto. A poesia é um rapto. De uma para outra queimam-se os dedos (...)"

"o mundo não está para futuros".







O uso da cor e a transposição para a película da crueza da paisagem industrial e da vivência conturbada que Giuliana, papel interpretado por Monica Vitti, faz desse cenário mereceu a Michelangelo Antonioni o Leão de Ouro e o Prémio Especial da Crítica no Festival de Veneza por este Deserto Vermelho. Giuliana é a mulher de um industrial que vive no limite da sanidade mental, perturbada e alienada pelas vozes e sons electrónicos que só ela ouve, fruto da sua relação destrutiva com o mundo moderno. Distante do marido Ugo – Carlo Chionetti – e perturbada pela tecnologia que os rodeia, encontra na relação com Corrado – Richard Harris – uma amizade polvilhada por atracção sexual que não a afasta das preocupações com o filho nem da demência.


©Públiconline


Excelente!!!!!!!!





© Igort








A internet, ainda a velocidade de luz num campo de guerra...

um diário de guerra que não devia existir (pelas razões que todos já conhecemos):
http://dear_raed.blogspot.com


a citação em destaque do blog:
"the West won the world not by the superiority of its ideas or values or religion but rather by its superiority in applying organized violence. Westerners often forget this fact, non-Westerners never do."
Samuel P. Huntington



Da Poesia Moderna


O poema da mente no acto de encontrar
Quanto baste. Nem sempre teve
Que encontrar: a cena estava montada; repetia o que
Estava no guião.
Então o teatro foi mudado
Para outra coisa. Seu passado era uma lembrança.
Ele tem que estar vivo, que aprender o discurso do sítio.
Tem que enfrentar os homens do tempo e encontrar-se com
As mulheres do tempo. Tem que pensar sobre a guerra
E tem que encontrar quanto baste. Tem
Que construir um novo palco. Tem que estar nesse palco
E, como um actor insaciável, vagarosamente e
Com meditação, dizer palavras que ao ouvido,
Ao mais delicado ouvido da mente, repitam,
Exactamente, o que ele quer ouvir, ao som
Das quais, uma audiência invisível escuta,
Não a peça, mas a si mesma, expressa
Numa emoção como de duas pessoas, como de duas
Emoções a tornarem-se numa. O actor é
Um metafísico no escuro, tangendo
Um instrumento, tangendo uma corda de metal que dá
Sons a passarem por súbitas exactidões, na totalidade
A conter a mente, abaixo da qual não pode descer,
Além da qual não quer elevar-se.
Deve
Ser o encontar uma satisfação, e pode
Ser de um homem patinando, uma mulher dançando, uma mulher
Penteando-se. O poema do acto da mente.


Wallace Stevens



©Josef Koudelka. Prague. Play: The Three Sisters. 1966.









Sonhei com actores
num teatro, que quererá isto significar?
Um sonho a preto e branco (já não sonho a cores),
não sei que peça
se representava; eu (alguém)
era um espectador, pois via o palco:
parados, que se tivessem subitamente esquecido
do que deviam dizer,
olhando-me (se se tratava realmente de mim)
longamente e angustiadamente, à espera
que eu acordasse
e que o meu sonho- tinha que ser um sonho
de alguém, estavam certamente a sonhar,
iriam acordar e não passaria tudo de um sonho!-
terminasse.



Manuel António Pina, Cuidados Intensivos, 1994.



"Sonhos e conflitos" Bienal de arte de Veneza dedicada aos conflitos no Mundo



A 50.ª edição da Bienal de Veneza de arte contemporânea, de 15 de Junho a 2 de Novembro, terá por tema "Sonhos e conflitos: a ditadura do espectador", anunciou o seu director, Francesco Bonami. A mostra é um dos acontecimentos culturais com maior prestígio ede maior projecção no Mundo; procurará, este ano, aproximar a arte da realidade, retratando conflitos e crises mundiais.
Portugal estará representado por Pedro Cabrita Reis, ficando o pavilhão português instalado nos Antichi Granai, na ilha de Giudecca. Este pavilhão foi produzido e organizado pelo Instituto de Arte Contemporânea, sendo comissariado por Vicente Todoli e João Fernandes, através do Museu de Serralves.
Pela primeira vez, a mostra geral será composta por uma dezena de projectos com uma identidade e autonomia próprias, cada um deles confiado a um director diferente "de modo a ter em consideração a diversidade da realidade artística contemporânea", precisou Bonami.
A exposição decorrerá em vários locais da cidade dos Doges, nomeadamente nos Jardins da Bienal, no Arsenal e no Museu Correr, na Praça de São Marcos, e apresentará várias centenas de trabalhos de 64 países.
"A nossa época já não permite conceber um grande evento de arte contemporânea como um exercício puramente estético dissociado do mundo no qual vivemos", sustentou Bonami.



© JN Online











© Miguel Rio Branco - Magnum






Ao contrário da fotografia que fixa uma imagem, o cinema é, na sua essência, a imagem em movimento. Daí também as viagens. (Com a fotografia consegues fazer as mesmas viagens?)
No entanto, há momentos em que o realizador, num longo plano, fixa a câmara num rosto, num objecto,etcs. E, assim, surge a fotografia de dentro do cinema. Eu podia desenrolar uma série grande de fotografias que o cinema me deu. O rosto de Alma e o rosto de Elisabet em Persona de Bergman; os olhares de fé, de esperança no quarto de Inger Borgen, acabada de morrer...e o milagre da palavra, a alma de volta ao corpo...em Ordet de Dreyer ;o rapaz que ergue os olhos para o amigo que parte para as estrelas em E.T de Spielberg; um piano abandonado à mercê das marés em The piano de Jane Campion; os sussurros por entre paredes...., num filme de Wong Kar-Wai ( o seu último filme esbanja beleza.), etcs, etcs.
E o cinema, ao dar ,de vez em quando, estas fotografias, acaba por contrariar a sua própria essência. E,ainda bem que assim é.
Do filme The Hours, fiquei só com uma fotografia. Não sei muito bem como pode ser expressa em palavras, porque considero a imagem mais forte e a mais bonita do filme. Laura no hotel, pensa na morte, imagina a entrar num rio, quase-morte, depois o voltar...passa a mão pelo ventre. Pra mim, há muita luz. Em especial, nas cenas da Virginia. Na primeira cena, acho que a luz solar é demasiada. No livro fala-se de um céu escurecido. Como tu, também gostei do filme, só que não fiz a viagem, porque se calhar não entrei logo no filme ou filme não me agarrou pra dentro. Acho que foi mais a segunda. São os filmes que nos deixam na estação a olhar de fora para dentro.

A música distancia-se muito da fotografia, pois a música não é visível. no entanto, há muitas músicas que evocam imagens, fotografias. é curioso o facto do cinema, que é imagem em movimento, querer a companhia da música. há as bandas sonoras. há os video-clips. há as orquestras nos filmes. a música está longe da imagem, porém querem colocar a música por perto, quase sempre.
pois, há possiblidade de impor som à fotografia, sugerindo mesmo o som ou tirando proveito da nossa imaginação. Contudo, mais do que o som, a música que se pode impor, gosto do silêncio que fecha certas fotografias, naturalmente.
lembro-me do cinema mudo, em que o rosto mudo, o milagre do rosto mudo (por vezes)transcendiam qualquer música que colocassem por cima.


Arnold Newman
Igor Stravinsky, 1946


Arnold Newman
Stravinsky's Hand






Kathe Kollwitz ,The Prisoners (1908)


Kathe Kollwitz ,The Mothers (1921)


segunda-feira, março 24, 2003



Isabelle em Estado de Graça

Por JOANA GORJÃO HENRIQUES
Segunda-feira, 24 de Março de 2003

É a última a chegar ao palco do São Carlos, em Lisboa. Para se colocar ao centro, sempre ao centro. Porque Isabelle Huppert é alguém que "está só e ao mesmo tempo no meio de todos", diz. É o quarto dia de ensaio de "Jeanne d'Arc au bûcher", oratória dramática escrita por Paul Claudel com partitura musical de Arthur Honegger e encenação de Luís Miguel Cintra, que hoje estreia. A actriz francesa, de 48 anos, parece uma rapariga, com o cabelo apanhado, camisa branca, calças e ténis pretos.

A "metamorfose" subtil do rosto será uma constante: Isabelle combativa e masculina, mulher e rapariga, santa e heroína que morre pela verdade, pelo amor a Deus e aos homens. Isabelle sacrificada, em estado de graça. Isabelle e não Jeanne d'Arc porque, citando Luis Miguel Cintra, "é uma actriz com uma interpretação pessoal e inteligente dos papéis que faz; há uma espécie de dureza, de violência na figura da Jeanne que creio ser uma visão pessoal da figura e que surpreende."

O olhar de Claudel e Honeger sobre Joana d'Arc, a mítica pastora iletrada que um dia vestiu a armadura, montou a cavalo e lutou contra a ocupação inglesa na Guerra dos 100 Anos, integra as diversas facetas, diz Huppert que a interpreta pela segunda vez - agora ao lado de Cintra (Frére Dominique) e do maestro britânico Jonathan Webb - 12 anos depois de ter subido ao palco da Ópera de Bastille, na versão teatral de Claude Régy.

Passaram-se pouco mais de dois meses sobre o inesquecível "4.48 Psicose", de Sarah Kane (Culturgest, pela mão do mesmo Régy), onde assistimos à morte hierática de Isabelle. E passaram-se anos desde a encenação de Bob Wilson de "Orlando", uma figura entre homem e mulher. Em "Jeanne d'Arc au bûcher" Huppert volta a estar "entre" - a vida e a morte, o masculino e o feminino.

PÚBLICO: Como é a experiência de regressar a Jeanne D'Arc?
Isabelle Huppert - É muito divertido, porque é uma obra de que gosto imenso. Adoro a música... Para mim é como se estivesse num concerto, todas as noites. A [encenação] é muito diferente. Trabalhei durante muito tempo da primeira vez porque não conhecia verdadeiramente a obra. A encenação de Luis Miguel Cintra é diferente da de Claude Régy: o palco não é o mesmo, isso muda.

P. E o seu olhar sobre a personagem mudou?

R. Não. A oratória é uma forma particular: não creio que se faça uma pesquisa da personagem nem que se reflicta sobre ela da mesma maneira que no teatro, a expressão está ligada à presença da música, é diferente. A partir do momento em que estamos numa oratória, a passagem entre a palavra e a música, a palavra normal e a palavra ritmada, torna-se muito mais num trabalho sobre a forma. O sentimento vem da forma, há uma intensidade que dá o sentimento.

P. Qual é a particularidade da Jeanne d'Arc de Claudel?

R. Não sei. Não sou grande conhecedora das obras à volta de Jeanne d'Arc. Parece-me que nesta existe tudo o que possamos imaginar sobre ela, a infância, a santidade... Há também humor na música de Honegger. Há algumas situações que são irónicas, há uma música muito distanciada. É também um drama popular com a presença do povo à volta de Jeanne. E há a santidade e uma parte guerreira de Jeanne - é isso que transmite a música de Jeanne, que fala um pouco ao ritmo do seu cavalo.

P. Claude Régy é um encenador fotográfico, Luís Miguel Cintra sublinha a teatralidade.

R. Claude Régy também fez uma encenação muito teatral, talvez mais fria. Cintra traduz bem a organização no espaço, a forma como toda gente se movimenta - embora não veja bem, porque estou à frente. Tenho a impressão que toda a relação com o grupo está muito bem conduzida nesta encenação. Jeanne está só e ao mesmo tempo no meio de todos. Na encenação de Régy eu estava numa coluna alta, a 10 metros do solo, como uma virgem crucificada. Era uma imagem que se aproximava de Cristo. Passaram-se doze anos, não me recordo bem, mas aqui tenho a impressão de estar muito livre - bom, sou obrigada a respeitar a partitura musical. Claude Régy é mais restritivo quanto à forma de pronunciar a palavra, faz um trabalho mais formal. É divertido trabalhar com o maestro, Jonathan Webb. Para uma actriz, é uma experiência teatral diferente e gosto muito disso. A relação com o maestro é muito particular, é engraçado ver como se dirige uma orquestra, um coro. Sou simultaneamente actriz, espectadora e eu própria.

P. Conhecia o trabalho de Luis Miguel Cintra?

R. Como encenador não, conhecia como actor de cinema. Agrada-me fazer esta peça com o Luis Miguel e adoro música e ópera. Uma actriz devia sonhar sempre em ser cantora porque o canto é a expressão última, está no topo da arte dramática. É por prazer que me aproximo um pouco do canto.

P. Jeanne d'Arc é uma figura mítica sobre a qual há recriações artísticas, da literatura ao cinema. Como geriu esta herança?

R. Não coloquei essa questão. Para mim é um trabalho musical e não sobre a personagem. Vi o filme de Rivette [com Sandrine Bonnaire], vi a Falconetti no filme de Dreyer, não me lembro se vi o filme de Bresson.

P. Algum desses filmes foi uma referência em termos de imagem?

R. Não. A imagem somos nós próprios que a encontramos. Não é preciso ter uma referência.

P. Vimo-la no teatro, a representar papéis entre o masculino e o feminino, a vida e a morte; e imóvel.

R. É verdade. Mas já agora: a diferença entre este espectáculo e o de Régy é que aqui há uma imagem mais infantil de Jeanne D'Arc (tenho um vestido) e no espectáculo de Régy tinha uma imagem mais masculina, estava vestida com fato de guerra. Mas isso é que é interessante: podemos fazer Jeanne D'Arc como uma criança, uma guerreira, um homem, uma mulher, ela tem todas as facetas. A faceta combativa e guerreira está sempre no texto mas aqui a forma de representação é mais feminina, como virgem. Não fui eu que escolhi, foi Luis Miguel. É uma representação como um ícone, mais religiosa. Jeanne é ao mesmo tempo espiritual e terrestre, é a imagem da santa e da guerreira. É uma imagem complexa. O que é fascinante é pensar que ela é muito jovem, alguém que não sabe ler mas muito inteligente - a forma como se defende dos que a julgam é um modelo de retórica.

P. Como trabalhou a sexualidade dessas personagens?

R. Em Jeanne D'Arc não reflecti muito sobre nisso. Acho que está na energia, na combatividade, que podemos ver como algo masculino. Em 'Psicose' estava no texto. Ela diz que é ao mesmo tempo homem e mulher. Não foi um trabalho muito consciente: está no texto e há o espectador que o recebe e que no seu imaginário constrói o que há de masculino e feminino. Em 'Psicose' sei que tinha calças, e que a luz me tornava andrógina. No teatro e no cinema, o actor não faz mais do que ser o elo de transmissão entre os signos que o espectador recebe e ele próprio. Aqui tenho um vestido, há a música e conheço Jeanne d'Arc: isso é suficiente para trabalhar o imaginário do espectador.

P. Em 'Psicose', a decisão de morte era voluntária. Qual é a relação de Jeanne d'Arc com a morte?

R. Ela prefere morrer do que abdicar da sua verdade. Há várias personagens, como Antígona, que têm esta relação com a verdade, que em nome das ideias preferem morrer do que abdicar. É por isso que as representamos regularmente: há uma força e uma relação com a verdade que força a admiração.

P. Isso fascina-a?

R. Morrer pelas ideias... Não sei. Não é por isso que faço o espectáculo, mas pela adesão a uma construção.

P. Tem uma relação com Deus?

R. Tenho uma relação forte com o que faço. Não sei se Deus faz parte. Talvez.

P. Jeanne d'Arc tem a inocência, a fragilidade da força e a força da fragilidade que estão presentes noutros papéis que representou. Esta complexidade é tão extrema quanto a de 'Psicose' e a de 'A Pianista'?

R. Fiz papéis que são tão extremos quanto este. É sempre bom representar os que têm esta mistura entre força e energia e ao mesmo tempo fragilidade. Todos somos fortes e frágeis, isso não é original. O que é forte é representá-los e permitir que as pessoas se aproximem dessa força e fragilidade. Em Jeanne também existem esses extremos: ela é uma rapariga e ao mesmo tempo uma guerreira.

P. Jeanne d'Arc, Sarah Kane, Maria e Madalena de "Deux", de Schroeter, são mais novas do que a Isabelle Huppert. Agrada-lhe representar o conflito entre a rapariga e a mulher?

R. No filme de Schroeter é uma hipótese literária: são personagens que exploram a infância, a juventude. Não penso que seja um conflito entre a rapariga e a mulher mas uma relação com a infância. Mesmo Sarah Kane fala da doença de crescer. É uma frase obscura, porque não sabemos se para ela os doentes são os que cresceram ou os que não chegaram a crescer, é ambíguo. No fundo, esta é a doença de toda a gente. A vida é esse compromisso com o que fomos, o que somos e em quem nos vamos tornar. Não é uma escolha particular que eu faça, é uma maneira de falar de toda a gente.

P. A propósito de Sarah Kane, disse que era essencial preservar uma parte de inocência...

R. Em todos os papéis é preciso que haja uma parte de inocência. Em Sarah Kane há esta violência contra o mundo e contra ela própria mas há acima de tudo uma inocência que faz com que nos possamos interessar por ela.

P. O que é a inocência, para si?

R. É difícil... Podemos dizer: "Não faço o bem nem o mal, sei simplesmente existir" - cá está, é esta a parte de inocência da personagem. É como a personagem de "A Pianista". Foi sobretudo com ela que desenvolvi esta ideia de inocência. Porque ela incarna toda a violência do mundo mas tem a sua parte de inocência, que lhe dificulta a vida, mas há algo de legítimo na forma como procura o amor. Legítimo aos seus próprios olhos e legítimo para mim: tem uma ideia absoluta do sentimento amoroso e em nome disso comete coisas horríveis. Mas nesse absoluto não deixam de existir coisas inocentes. Isso não é culpável

O Que Viram Os Meus Olhos
Sábado, 22 de Março de 2003

%Ana Teresa Pereira

Lembro-me mal do conto: havia um menino que era testemunha de um crime, numa noite de Verão, quando brincava na escada de incêndio do prédio onde vivia; os assassinos davam-se conta da sua presença e tentavam matá-lo; não sei se o menino era o mesmo de "Se Eu Morrer...". Do filme, um velho filme a preto e branco, lembro-me da escada de incêndio, um labirinto de ferro onde decorria uma grande parte da acção.

"A não ser que exista uma memória do universo", escreve Jorge Luís Borges num pequeno texto chamado "A Testemunha", o que morrerá comigo quando eu morrer; e fala de uma voz, a de Macedónio Femandez, de um cavalo, de um objecto na gaveta de uma secretária. "A não ser que exista uma memória do universo", em cada morte desaparece uma coisa ou um número infinito de coisas.

O que morrerá comigo quando eu morrer? (Afinal, eu vi naves espaciais ardendo mais além de Órion, raios-C a brilhar na escuridão perto do Portal de Tarínhauser... ) O meu primeiro gato; o meu pai chegando a casa com um pacote de livros debaixo do braço; os pássaros cantando às cinco da manhã; todos os meus gatos (e foram muitos); o meu cão "Charlie" a olhar para o mar; a minha cadela "Jimmy" a correr para mim; o Paul do Mar, uma linha de terra entre as montanhas e o oceano; o teu rosto quando vinhas ao meu encontro na primeira manhã (e parecias dez anos mais novo do que na noite anterior, entre aquelas pessoas tão cinzentas); os teus olhos quando estás feliz, o teu sono cheio de monstros; a tua dor de estar vivo; Gloria Grahame na porta do apartamento vendo Bogart ir-se embora: "I lived a few weeks while you loved me"; Ida Lupino roçando um sino de vento, a folhagem de uma planta, um ramo seco de árvore; Sterling Hayden dizendo "Don't go away" e a voz de Joan Crawford no escuro: "I haven't moved"; o rosto de James Stewart quando diz a Kini Novak "and then I'll be free of the past"; Isabel Archer deitada na cama do seu primo Ralph, quando ele está a morrer; Charlotte Stant esquecendo-se de um livro (o segundo volume de um romance) num banco de jardim; Carel Fislier a fazer amor com Elizabeth no centro da casa (da reitoria), num espelho, como se fosse debaixo do mar; a chegada de Edward a Scegard, a casa enorme, as três mulheres, as escadas da torre, o deus-monstro no quarto do cimo da torre; Marcus Vallar sentado junto à pedra sagrada, onde todas as manhãs lhe deixam grinaldas de flores, ramos, pedras; Iris Murdoch passeando no nevoeiro de Londres com Elias Canetti; William Irish sozinho num quarto de hotel, a escrever "O Que Viram os Meus Olhos"; um anjo de Uke (belo e terrível) num castelo perdido; um anjo de Rilke sentado à minha mesa, fazendo bolinhas com as migalhas de pão; Drácula caminhando no jardim da casa de Lucy, na noite em que o quarto dela está cheio de flores; Maria da Luz dizendo "Talvez este vale seja um vale maldito" num livro de Enid Blyton; o sótão onde Sara Crewe vivia, o silêncio e os ratos, a janela no telhado, os telhados de Londres, os pássaros; o rosto de Lance Henriksen quando ouve "O Mikado"; a tua voz: "Tu ainda estás apaixonada por actores de cinema..."; Jane Frost caminhando na Charing Cross Road, debaixo da chuva, com os seus "jeans" velhos e o casaco preto, a mochila com algumas roupas e quatro livros; Jane Frost sentada na sala Rothko da Tate Gallery, a bolsa esquecida num banco; Jane Frost acordando sozinha na casa de praia numa noite gelada de Inverno; o livro que Tom estava a escrever quando conheceu Jane; a livraria de Michael, as velhas edições de Stevenson e Richmal Crompton, os "Notebooks" de Henry James; o rosto de Byrne na penumbra do apartamento; a neve caindo nos meus livros.


Livro de Bordo
Sábado, 22 de Março de 2003

%Jorge Gomes Miranda

Afirma algures Fernando Pessoa que "deve haver no mais pequeno poema de um poeta qualquer coisa por onde se note que existiu Homero".

Um dos seus heterónimos, Bernardo Soares, e o autor da epígrafe do ciclo inicial de "Ulisses já não Mora aqui", obra de José Miguel Silva que utiliza a "Odisseia" de Homero quer como mote no seu desígnio de cimentar a ligação entre a cultura contemporânea e a cultura grega, quer como símbolo do escrutínio a que submete a sociedade portuguesa de agora.

Na construção dum discurso claro e inteligente sobre o mundo em que (sobre)vivemos, o poeta inspirara-se com precisão, lucidez e sobriedade em passagens da viagem de Ulisses, sem nunca as glosar, antes revivificando-as em poemas que, por vezes, ecoam no seu caminho breves referências, rápidas alusões a lugares e histórias, e outras vezes permitem que a presença de perenes personagens dessa gesta grega lateje ainda no que nos cerca.

Em José Miguel Silva, encontramos uma forma de entender o tempo, semelhante a que Eliot sinaliza, falando da "Odisseia" de James Joyce. "Com o uso do mito, com a utilização de um paralelismo ininterrupto do contemporâneo e da antiguidade, Joyce, coloca em prática um método que outros devem utilizar depois dele. (...) não é imitação, como não é um imitador o científico que utiliza as descobertas de Einstein para continuar os seus próprios independentes e mais avançados: é só uma maneira de pôr à prova, regularizar, dar forma e significado ao panorama infinito de vaidade e anarquia que é a história contemporânea."

Acrescente-se que Yeats e Kavafis sentem igualmente essa necessidade de possuírem uma determinada visão histórica para expressarem sensações mais profundas.

Como Eliot mostrou em "The Waste Land", todos somos habitantes da "Terra sem Vida", possuidores da consciência do mal e da destruição.

Pertencendo a uma geração que atravessa um mar de escolhos, ficando tantas vezes cativa do sem-sentido, José Miguel Silva interroga-se, ao longo destes poemas do desassossego, sobre o que prever dum futuro alugado? Sem Cassandra por pitonisa, aporta algumas vezes em ilhas benfazejas; outras vezes, qual Ulisses a caminho do que saberemos demasiado tarde, lança a âncora em lugares tão heteróclitos como um centro comercial, o espaço onde decorre a Feira do Livro, pelos corredores e salas da faculdade, surgindo os poemas como palcos de combates antecipadamente vencidos contra os optimistas, esses que nem consentem palavras de melancolia e vazio.

Imersos no tempo presente da cidade, numa assumida recusa do bucolismo, realizam estes poemas uma importante observação: a lírica moderna urbana, de raiz baudelairiana, não é herdeira da poesia de cidade antiga. Esta tinha o seu próprio subgénero, o canto apologético, que era uma exaltação externa da cidade nobre: a sua fundação, os seus heróis, as suas muralhas, as suas maravilhas. Ao poeta actual interessa-lhe unicamente o aspecto interno, íntimo, da vivência urbana. Narra episódios urbanos, exemplos do mal viver na cidade.

Como em Cesário, a sua poesia, resolutamente antiliterária, antioratória, rebela-se contra a idealização tradicional em poesia. E valoriza o real na sua nudez, liberto de quaisquer embelezamentos metafóricos, perseguindo a autenticidade do tangível.

O Romantismo identificou a inspiração poética com a tristeza, a dor e o desalento. Nunca como agora, a máxima de Pessoa "nada vale a pena", contraponto da "tudo vale a pena", é poeticamente vivida. Poeta do mundo exterior, circundante, José Miguel Silva evidencia um profundo sentimento de solidão que apenas alguns vislumbres da infância e o amor vivido domesticamente junto de "Penélope" conseguem atenuar.

Uma palavra ainda para o uso do monólogo dramático na releitura, levada a cabo no notável ciclo "À maneira de Edgar Lee Masters", da obra "Spoon River Anthology", que, como afirma Jorge de Sena, une "a forma do epitáfio falante da poesia grega clássica com a confissão póstuma que é um retrato psicológico, desenvolvida por Dante, e usando o verso livre (...), o poeta compôs uma sequência de epitáfios dos habitantes de uma imaginária vila do Estado de Illinois".