Lhasa a Arte de Bem Cantar a Toda a Sela
Sexta-feira, 02 de Julho de 2004
João Bonifácio
A estrada canta quando ela parte. Vai à cata de homens que invariavelmente a temem, que usam facas porque a temem. E a cada abandono ela canta os homens excessivos, a bebida excessiva, o excesso de ver excesso em tudo. Canta. Bem demais. Canta como quem põe as vísceras na garganta. Como quem não pode impedir que saia. Como Chavela Vargas, a grande cantora mexicana que ela tanto gosta, Lhasa de Sela canta os amores e as quase mortes os amores de morte, canta a estrada porque ao fim de tanto correr ela já é a própria estrada.
E porque não se dá bem com o sucesso foi trabalhar para um circo. Na verdade, nunca esteve parada. Filha de uma americana e um mexicano, percorreu, desde cedo, todo o México, acompanhada por uma extensa parelha de irmãs, meias-irmãs e irmãos e meios-irmãos. Sorte deles, não havia televisão para ninguém, a família dedicava-se a cantar pela noite dentro. Valeu-lhe uma carreira e medo. O medo do sucesso, o medo que atrasou o segundo álbum, que nos fez esperar cinco anos pelo segundo. E Lhasa já canta: "o futuro será melhor".
A faca na liga, a voz arrastada a medir cada palavra, naquele jeito de quem não quer dizer mas vai dizer. Naquele jeito de quem a qualquer momento pode deixar cair a granada (com a cavilha nos dentes e um sorriso doce e louco), Lhasa fala com o Y como se já nos conhecesse há muito. Nós encostamo-nos para trás e ouvimo-la falar de circos, homens, partir, voltar, sentir, partir outra vez. E imaginamos o que poderão ser os concertos da senhora esta semana: dia 7 em Lisboa, no Fórum Lisboa, dia 8 em Coimbra, dia 9 em Aveiro e dia 10 no Porto [ver páginas de roteiro]. Palavra que ocorre imediatamente: "intensos". A estrada canta quando ela parte, os homens trazem facas por medo a ela. Mas nós iremos em paz: sabemos de antemão que quando a cortina cair ela irá para outro lado, oferecer a voz para que durante duas horas sintamos através dela o que não temos nunca coragem de sentir por nós.
vida de circo. O ano era 1998, o disco era "Lla Llorona", aparecia-nos uma mulher de voz arrastada mas estranhamente etérea, como se o corpo estivesse ali mas ela escorresse entre as coisas sem ser tocada por elas, como se já não pudesse ser tocada por elas à conta do excesso de nódoas negras. Cantava o deserto, peixes ébrios, mulheres ciumentas, uma estranha espiritualidade carnal, uma latinidade trágica que é mais imaginária que verdadeira, que naquela voz era intensamente verdadeira. Não precisava de mais que isto: uma guitarra acústica e a voz. Folk, flamenco, trejeitos de canção francesa, tudo cantado em espanhol e muita simbologia
Agora, em "The living road", está diferente e ainda bem: resolveu de uma penada o problema da fórmula guitarra+voz, ampliou o espectro sonoro, mas, para o mal e para o bem, o que ela, a última das ultra-românticas, canta ainda é o mesmo: "Gracias a tu cuerpo/voy curarme". A diferença é que por trás, agora, está um piano numa pianíssima valsa, que dá um tom fúnebre à esgrima dos afectos. Não, não é brincadeira. A ideia que Lhasa tem de um homem é esta: "Llegarás mañana/ para el fin del mundo/ mañana te mato". Olé (guarda a orelha, pequena, guarda a orelha...).
Ao princípio (éramos estranhos e ela é tímida) não há grandes explicações para a demora de cinco anos ("The living road" é do ano passado, mas só em 2004 foi distribuído em Portugal), apenas o cliché do "tinha de aprender coisas sobre mim própria, não o que os outros pensam sobre mim, mas o que sou" - não deixa de ser curiosa esta preocupação em quem passa a vida de um lado para o outro. E como a última das ultra-românticas precisava de aprender "coisas sobre o amor e sobre mim", o que resolveu fazer? "Juntar-me a um circo". Não um circo qualquer, antes aquele em que as irmãs trabalhavam. "Atravessei toda a França ao lado das minhas irmãs", que já lá trabalhavam antes de Lhasa se juntar. Nada de malabarismos: "Cantava, fazia teatro, montava e desmontava a tenda. E foi magnífico trabalhar com as minhas irmãs".
Há uma única justificação de Lhasa para o seu amor ao circo: "Tinha de fugir". Ok, aceita-se e tenta-se perceber a dimensão do "ter" e, aí sim, percebe-se que a relação de Lhasa com as canções é intensa: "Estava cheia de medo. Paralisada. Perdida." À conta do quê? "Do sucesso", claro. Porque "é demasiado fácil ser-se auto-destrutivo. E eu preferi construir."
Atente-se numa frase solta ao longo da entrevista, talvez se perceba como funciona esta cabeça (só aparentemente) tonta: "Em 1997 eu andava a viver 'Lla Llorona'". Ou seja: viver para contá-la. "Agora estava a viver outras coisas". Aliás, "viver" é palavra que Lhasa usa abundantemente: "viver", "experimentar", "sentir" - muitas das justificações de Lhasa para o seu eterno nomadismo andam à volta disto. Como se não pudesse cantar o que não tivesse vivido. Talvez só assim ela possa dizer de forma descansada: "Este é um álbum muito honesto". E quando dizemos que antes parecia haver mais vísceras e agora mais teatro, ela fica em silênciom e vai deixando sair: "Acha? [Pausa longa] Acha mesmo? [Nova pausa] Este é tão mais exposto... Exponho-me tanto neste...Este é muito, muito, muito pessoal". Quatro vezes mais pessoal que o primeiro? "Sim." Momento perfeito para a pergunta apetecida que tem como resposta (entre risos matreiros): "Sim? Não? Não? Sim? Próxima pergunta?"
A pergunta era simples e, convenhamos, cruel: sente necessidade de se expor?
agora é que isto vai começar. Munidos da resposta periclitante de Lhasa atacámos o flanco e sai-nos o tiro ao lado: "Sim, sofrer pode ser inspirador para compor. Mas não me interessa sofrer 'for the sake of the song'." Aliás, Lhasa tem palavras que definem o que subjaz à sua música, o que espera que a sua música transmita: "Em vez de desespero, amor e fé. Amor e fé." (Embora não nos pareça que estejamos a falar de religião, antes de uma pessoal forma de crença em qualquer coisa de impossível.)
Seja como for, ela vai admitindo que durante a composição de "The Living Road" passou "por tempos muito difíceis". E volta atrás, à exposição, para (finalmente) explicar a sua relação com as canções: "Se eu acredito numa canção, então ela atravessa-me, transporta-me e eu não tenho medo. Depois de a cantar nem penso nisso. Amo as canções que vão fundo, e acredito sempre que posso ir ainda mais fundo. Numa canção não há nada a esconder, não tenho nada a esconder." (Talvez seja esta a crença impossível de Lhasa.)
Repitamo-nos: não deixa de ser curiosa, sem dúvida, esta necessidade de justificar com a vida as canções, como se o sentir não podesse partir apenas da imaginação. Mas a verdade é que se acredita em cada uma das palavras de Lhasa, ouvindo os discos. O que é que separa "The living road" da excelente estreia? Instrumentos. Onde antes só havia a guitarra acústica, agora há banjos, violinos, clarinetes, violoncelos, marimbas, órgãos, pianos, theremins, rumbas marotas, valsas decadentes, cortinas rasgadas, tiroteio de fronteira, reboliço no celeiro à socapa.
Onde antes havia simbologias místicas ("La Llorona" é uma figura azteca que seduz os homens para depois transformá-los em pedra, o que diz bem do imaginário trágico/cruel/vingativo de Lhasa), agora há, mais que "storytelling", "roleplaying". Lhasa concorda com a ideia: "Queria que em cada canção houvesse um pequeno filme, tinha de haver acção em cada canção, as personagens tinham de ir de A para B."
Mas o que mais encanta nem é tanto a forma como uma história é cantada. É a noção do espaço numa canção: o piano na valsa grave e soturna de "Para llegar a tu lado" a funcionar como ponto para a voz - "gracias a tu cuerpo voy curarme", canta ela, apenas isto, o piano, a voz, e nós sempre a esperarmos que algo expluda, mas não, treme-se apenas, nunca nada rompe, vai rasgando, devagarinho; a quase country de "Abro la ventana" em que a slide-guitar cria um ambiente cinemático de mão no coldre e desgraça à espreita, Lhasa a cantar sobre mãos que não voltam; e Tom Waits e Piaff a espreitarem em "La Maree Haute" ("A estrada canta/ quando eu parto"), ela pela entrega, ele pelos arranjos de cordas, de oboé, pelo piano cambaleante (a sombra de Waits ainda aparece na magnífica "Anywhere on this road" - ambiente assustador, percussão com o seu quê de tribal e a voz em narração sorumbática; muito bom, muito bom, mesmo.)
O que mais fascina, aqui, é a noção de que Lhasa tem os trunfos na mão, que Lhasa procura sempre e em cada jogada a carta mais alta, para depois fazer de conta que era bluff, virar as costas e ir embora (mas não era bluff e sabemo-lo). Estar à beira de gritar e nunca, sequer, dizer. Como se a tensão (e se há coisa em que Lhasa é mestre, é em criar uma pequena e surda tensão) já dissesse tudo. Porque "el juego es quererte/ sin quererte desnudo". Não é perversão - é amor à tragédia. Nós adoramos, claro - que seria de nós sem a tragédia dos outros?
Escusados os adjectivos, esses procure-os o leitor. Graças à variedade instrumental e de ambiências, "The living road" está um pontinho acima de "La Llorona". E a questão é: se Lhasa começou a escrever o primeiro disco aos 23 anos e só o gravou aos 28 e se o segundo aparece quando a rapariga já tem 33 anos, que esperar agora? Mais cinco anos de intervalo? Mais fuga para circos? Nada disso: "É como uma história de amor. Quando alguém se apaixona não é o fim da história, é o princípio. Por isso o meu pequeno sucesso é o começo do trabalho a sério. Agora é que isto vai começar."
in Público, Y
Sexta-feira, 02 de Julho de 2004
João Bonifácio
A estrada canta quando ela parte. Vai à cata de homens que invariavelmente a temem, que usam facas porque a temem. E a cada abandono ela canta os homens excessivos, a bebida excessiva, o excesso de ver excesso em tudo. Canta. Bem demais. Canta como quem põe as vísceras na garganta. Como quem não pode impedir que saia. Como Chavela Vargas, a grande cantora mexicana que ela tanto gosta, Lhasa de Sela canta os amores e as quase mortes os amores de morte, canta a estrada porque ao fim de tanto correr ela já é a própria estrada.
E porque não se dá bem com o sucesso foi trabalhar para um circo. Na verdade, nunca esteve parada. Filha de uma americana e um mexicano, percorreu, desde cedo, todo o México, acompanhada por uma extensa parelha de irmãs, meias-irmãs e irmãos e meios-irmãos. Sorte deles, não havia televisão para ninguém, a família dedicava-se a cantar pela noite dentro. Valeu-lhe uma carreira e medo. O medo do sucesso, o medo que atrasou o segundo álbum, que nos fez esperar cinco anos pelo segundo. E Lhasa já canta: "o futuro será melhor".
A faca na liga, a voz arrastada a medir cada palavra, naquele jeito de quem não quer dizer mas vai dizer. Naquele jeito de quem a qualquer momento pode deixar cair a granada (com a cavilha nos dentes e um sorriso doce e louco), Lhasa fala com o Y como se já nos conhecesse há muito. Nós encostamo-nos para trás e ouvimo-la falar de circos, homens, partir, voltar, sentir, partir outra vez. E imaginamos o que poderão ser os concertos da senhora esta semana: dia 7 em Lisboa, no Fórum Lisboa, dia 8 em Coimbra, dia 9 em Aveiro e dia 10 no Porto [ver páginas de roteiro]. Palavra que ocorre imediatamente: "intensos". A estrada canta quando ela parte, os homens trazem facas por medo a ela. Mas nós iremos em paz: sabemos de antemão que quando a cortina cair ela irá para outro lado, oferecer a voz para que durante duas horas sintamos através dela o que não temos nunca coragem de sentir por nós.
vida de circo. O ano era 1998, o disco era "Lla Llorona", aparecia-nos uma mulher de voz arrastada mas estranhamente etérea, como se o corpo estivesse ali mas ela escorresse entre as coisas sem ser tocada por elas, como se já não pudesse ser tocada por elas à conta do excesso de nódoas negras. Cantava o deserto, peixes ébrios, mulheres ciumentas, uma estranha espiritualidade carnal, uma latinidade trágica que é mais imaginária que verdadeira, que naquela voz era intensamente verdadeira. Não precisava de mais que isto: uma guitarra acústica e a voz. Folk, flamenco, trejeitos de canção francesa, tudo cantado em espanhol e muita simbologia
Agora, em "The living road", está diferente e ainda bem: resolveu de uma penada o problema da fórmula guitarra+voz, ampliou o espectro sonoro, mas, para o mal e para o bem, o que ela, a última das ultra-românticas, canta ainda é o mesmo: "Gracias a tu cuerpo/voy curarme". A diferença é que por trás, agora, está um piano numa pianíssima valsa, que dá um tom fúnebre à esgrima dos afectos. Não, não é brincadeira. A ideia que Lhasa tem de um homem é esta: "Llegarás mañana/ para el fin del mundo/ mañana te mato". Olé (guarda a orelha, pequena, guarda a orelha...).
Ao princípio (éramos estranhos e ela é tímida) não há grandes explicações para a demora de cinco anos ("The living road" é do ano passado, mas só em 2004 foi distribuído em Portugal), apenas o cliché do "tinha de aprender coisas sobre mim própria, não o que os outros pensam sobre mim, mas o que sou" - não deixa de ser curiosa esta preocupação em quem passa a vida de um lado para o outro. E como a última das ultra-românticas precisava de aprender "coisas sobre o amor e sobre mim", o que resolveu fazer? "Juntar-me a um circo". Não um circo qualquer, antes aquele em que as irmãs trabalhavam. "Atravessei toda a França ao lado das minhas irmãs", que já lá trabalhavam antes de Lhasa se juntar. Nada de malabarismos: "Cantava, fazia teatro, montava e desmontava a tenda. E foi magnífico trabalhar com as minhas irmãs".
Há uma única justificação de Lhasa para o seu amor ao circo: "Tinha de fugir". Ok, aceita-se e tenta-se perceber a dimensão do "ter" e, aí sim, percebe-se que a relação de Lhasa com as canções é intensa: "Estava cheia de medo. Paralisada. Perdida." À conta do quê? "Do sucesso", claro. Porque "é demasiado fácil ser-se auto-destrutivo. E eu preferi construir."
Atente-se numa frase solta ao longo da entrevista, talvez se perceba como funciona esta cabeça (só aparentemente) tonta: "Em 1997 eu andava a viver 'Lla Llorona'". Ou seja: viver para contá-la. "Agora estava a viver outras coisas". Aliás, "viver" é palavra que Lhasa usa abundantemente: "viver", "experimentar", "sentir" - muitas das justificações de Lhasa para o seu eterno nomadismo andam à volta disto. Como se não pudesse cantar o que não tivesse vivido. Talvez só assim ela possa dizer de forma descansada: "Este é um álbum muito honesto". E quando dizemos que antes parecia haver mais vísceras e agora mais teatro, ela fica em silênciom e vai deixando sair: "Acha? [Pausa longa] Acha mesmo? [Nova pausa] Este é tão mais exposto... Exponho-me tanto neste...Este é muito, muito, muito pessoal". Quatro vezes mais pessoal que o primeiro? "Sim." Momento perfeito para a pergunta apetecida que tem como resposta (entre risos matreiros): "Sim? Não? Não? Sim? Próxima pergunta?"
A pergunta era simples e, convenhamos, cruel: sente necessidade de se expor?
agora é que isto vai começar. Munidos da resposta periclitante de Lhasa atacámos o flanco e sai-nos o tiro ao lado: "Sim, sofrer pode ser inspirador para compor. Mas não me interessa sofrer 'for the sake of the song'." Aliás, Lhasa tem palavras que definem o que subjaz à sua música, o que espera que a sua música transmita: "Em vez de desespero, amor e fé. Amor e fé." (Embora não nos pareça que estejamos a falar de religião, antes de uma pessoal forma de crença em qualquer coisa de impossível.)
Seja como for, ela vai admitindo que durante a composição de "The Living Road" passou "por tempos muito difíceis". E volta atrás, à exposição, para (finalmente) explicar a sua relação com as canções: "Se eu acredito numa canção, então ela atravessa-me, transporta-me e eu não tenho medo. Depois de a cantar nem penso nisso. Amo as canções que vão fundo, e acredito sempre que posso ir ainda mais fundo. Numa canção não há nada a esconder, não tenho nada a esconder." (Talvez seja esta a crença impossível de Lhasa.)
Repitamo-nos: não deixa de ser curiosa, sem dúvida, esta necessidade de justificar com a vida as canções, como se o sentir não podesse partir apenas da imaginação. Mas a verdade é que se acredita em cada uma das palavras de Lhasa, ouvindo os discos. O que é que separa "The living road" da excelente estreia? Instrumentos. Onde antes só havia a guitarra acústica, agora há banjos, violinos, clarinetes, violoncelos, marimbas, órgãos, pianos, theremins, rumbas marotas, valsas decadentes, cortinas rasgadas, tiroteio de fronteira, reboliço no celeiro à socapa.
Onde antes havia simbologias místicas ("La Llorona" é uma figura azteca que seduz os homens para depois transformá-los em pedra, o que diz bem do imaginário trágico/cruel/vingativo de Lhasa), agora há, mais que "storytelling", "roleplaying". Lhasa concorda com a ideia: "Queria que em cada canção houvesse um pequeno filme, tinha de haver acção em cada canção, as personagens tinham de ir de A para B."
Mas o que mais encanta nem é tanto a forma como uma história é cantada. É a noção do espaço numa canção: o piano na valsa grave e soturna de "Para llegar a tu lado" a funcionar como ponto para a voz - "gracias a tu cuerpo voy curarme", canta ela, apenas isto, o piano, a voz, e nós sempre a esperarmos que algo expluda, mas não, treme-se apenas, nunca nada rompe, vai rasgando, devagarinho; a quase country de "Abro la ventana" em que a slide-guitar cria um ambiente cinemático de mão no coldre e desgraça à espreita, Lhasa a cantar sobre mãos que não voltam; e Tom Waits e Piaff a espreitarem em "La Maree Haute" ("A estrada canta/ quando eu parto"), ela pela entrega, ele pelos arranjos de cordas, de oboé, pelo piano cambaleante (a sombra de Waits ainda aparece na magnífica "Anywhere on this road" - ambiente assustador, percussão com o seu quê de tribal e a voz em narração sorumbática; muito bom, muito bom, mesmo.)
O que mais fascina, aqui, é a noção de que Lhasa tem os trunfos na mão, que Lhasa procura sempre e em cada jogada a carta mais alta, para depois fazer de conta que era bluff, virar as costas e ir embora (mas não era bluff e sabemo-lo). Estar à beira de gritar e nunca, sequer, dizer. Como se a tensão (e se há coisa em que Lhasa é mestre, é em criar uma pequena e surda tensão) já dissesse tudo. Porque "el juego es quererte/ sin quererte desnudo". Não é perversão - é amor à tragédia. Nós adoramos, claro - que seria de nós sem a tragédia dos outros?
Escusados os adjectivos, esses procure-os o leitor. Graças à variedade instrumental e de ambiências, "The living road" está um pontinho acima de "La Llorona". E a questão é: se Lhasa começou a escrever o primeiro disco aos 23 anos e só o gravou aos 28 e se o segundo aparece quando a rapariga já tem 33 anos, que esperar agora? Mais cinco anos de intervalo? Mais fuga para circos? Nada disso: "É como uma história de amor. Quando alguém se apaixona não é o fim da história, é o princípio. Por isso o meu pequeno sucesso é o começo do trabalho a sério. Agora é que isto vai começar."
in Público, Y