Quem Regressa Onde?
Por EDUARDO PRADO COELHOO FIO DO HORIZONTE
Sexta-feira, 13 de Agosto de 2004
Trata-se do melhor filme em cartaz neste momento. E contudo uma obra extremamente desamparada, com todas as características para passar despercebida. Em primeiro lugar, é um filme russo, com actores desconhecidos. Depois, o nome do seu autor, inteiramente estranho entre nós, é dificilmente pronunciável e praticamente impossível de memorizar: Andre Zviaguintsev.
Acresce a tudo isto que a narrativa é escassa de acontecimentos - embora densa de pressentimentos e expectativas: dois irmãos, Ivan, o mais novo, e Andrei vivem com a mãe e a avó materna. O pai, ausente desde há 12 anos por motivos que não chegam a ser conhecidos, regressa de súbito. Nas primeiras imagens, os dois rapazes olham para fotografias da memória familiar. Aliás, o filme abre com fotografias e fecha com fotografias. Como se as imagens ganhassem cadência e depois se desacelerassem. As primeiras sequências são blocos sacudidos e algo abruptos de uma adolescência de jogos de perseguição, de lutas, de correrias na floresta. Os cortes deixam as imagens suspensas, numa sobreposição de situações. A dada altura, o filho mais novo abraça-se à mãe, num enorme medo da morte. As imagens recortam-se a negro sobre o horizonte.
Todo o filme, que, aliás, é breve, consiste em precipitar dois tipos de movimentos: um conduz-nos da fala ao silêncio; outro leva-nos da vida social para uma espécie de vazio raso de referências, num Inverno sem fim, onde o frio e o sofrimento preferem calar-se a gritar. As perguntas são obsessivas: que levou à partida deste pai emparedado na sua distância infinita em relação aos outros? Que explica o seu regresso? Regressou para quê? Para amar os filhos que não conhece? Ou para morrer?
Se as referências a Tarkovski parecem óbvias, elas são talvez formalmente enganadoras. O filme não tem o fundo de demanda obsessiva do sagrado que Tarkovski desenvolve. A dimensão dominante é aqui inteiramente imanente ao lento esvaziamento das imagens. O pai reencontrado não cabe no espaço da ficção. O que nos deixa no limiar do segundo movimento: pouco a pouco, envolvido numa pesquisa que é também uma viagem (como em Angelopoulos), Zviaguintsev conduz-nos até um espaço anterior à multiplicação dos espaços, para uma zona devastada e espessa de recalcamentos, em que tudo o que é vida parece ameaçado pela presença obsessiva da morte.
Andre Zviaguintsev filma admiravelmente, mas sobretudo filma a distância entre os seres em imagens de dor aguda e quase insuportável. Não sabemos se há um fim, ou se chega mesmo a haver um começo. Há apenas uma deriva em direcção à matéria mais longínqua, que acaba por entrar nos corpos imóveis, nos olhares aflitos, nas interrogações dolorosas. Poucos filmes conseguem ser tão densos e tão voltados para o seu próprio interior. E poucos filmes conseguem que esse interior seja de uma exterioridade absoluta: o mundo inicial onde cada ser é a primeira mulher e o primeiro homem.
Um filme a não perder - repito. O grande momento cinematográfico deste Verão de 2004.
Por EDUARDO PRADO COELHOO FIO DO HORIZONTE
Sexta-feira, 13 de Agosto de 2004
Trata-se do melhor filme em cartaz neste momento. E contudo uma obra extremamente desamparada, com todas as características para passar despercebida. Em primeiro lugar, é um filme russo, com actores desconhecidos. Depois, o nome do seu autor, inteiramente estranho entre nós, é dificilmente pronunciável e praticamente impossível de memorizar: Andre Zviaguintsev.
Acresce a tudo isto que a narrativa é escassa de acontecimentos - embora densa de pressentimentos e expectativas: dois irmãos, Ivan, o mais novo, e Andrei vivem com a mãe e a avó materna. O pai, ausente desde há 12 anos por motivos que não chegam a ser conhecidos, regressa de súbito. Nas primeiras imagens, os dois rapazes olham para fotografias da memória familiar. Aliás, o filme abre com fotografias e fecha com fotografias. Como se as imagens ganhassem cadência e depois se desacelerassem. As primeiras sequências são blocos sacudidos e algo abruptos de uma adolescência de jogos de perseguição, de lutas, de correrias na floresta. Os cortes deixam as imagens suspensas, numa sobreposição de situações. A dada altura, o filho mais novo abraça-se à mãe, num enorme medo da morte. As imagens recortam-se a negro sobre o horizonte.
Todo o filme, que, aliás, é breve, consiste em precipitar dois tipos de movimentos: um conduz-nos da fala ao silêncio; outro leva-nos da vida social para uma espécie de vazio raso de referências, num Inverno sem fim, onde o frio e o sofrimento preferem calar-se a gritar. As perguntas são obsessivas: que levou à partida deste pai emparedado na sua distância infinita em relação aos outros? Que explica o seu regresso? Regressou para quê? Para amar os filhos que não conhece? Ou para morrer?
Se as referências a Tarkovski parecem óbvias, elas são talvez formalmente enganadoras. O filme não tem o fundo de demanda obsessiva do sagrado que Tarkovski desenvolve. A dimensão dominante é aqui inteiramente imanente ao lento esvaziamento das imagens. O pai reencontrado não cabe no espaço da ficção. O que nos deixa no limiar do segundo movimento: pouco a pouco, envolvido numa pesquisa que é também uma viagem (como em Angelopoulos), Zviaguintsev conduz-nos até um espaço anterior à multiplicação dos espaços, para uma zona devastada e espessa de recalcamentos, em que tudo o que é vida parece ameaçado pela presença obsessiva da morte.
Andre Zviaguintsev filma admiravelmente, mas sobretudo filma a distância entre os seres em imagens de dor aguda e quase insuportável. Não sabemos se há um fim, ou se chega mesmo a haver um começo. Há apenas uma deriva em direcção à matéria mais longínqua, que acaba por entrar nos corpos imóveis, nos olhares aflitos, nas interrogações dolorosas. Poucos filmes conseguem ser tão densos e tão voltados para o seu próprio interior. E poucos filmes conseguem que esse interior seja de uma exterioridade absoluta: o mundo inicial onde cada ser é a primeira mulher e o primeiro homem.
Um filme a não perder - repito. O grande momento cinematográfico deste Verão de 2004.