Sábado, 23 de Outubro de 2004
%Óscar Faria
Em 1885, o psicólogo belga Joseph Delboeuf visita a escola de La Salpêtrière, em Paris, onde eram célebres as apresentações públicas, semanais, de doentes histéricos hipnotizados ali internados. As sessões eram orientadas pelo neurologista Jean Martin Charcot, que, com Paul Richer, escreveu "Les Demoniaques Dans l' Art" (1887). O relato escrito por Delboeuf é não só atravessado por descrições das demonstrações preparadas pelo médico, mas também por outras observações acerca do contexto onde aquelas decorriam: "Cheguei um quarto de hora adiantado. Empreguei-o a examinar a espécie de locutório onde fui introduzido. Ele é decorado com grandes desenhos devidos ao lápis de M. P. Richer (...). Estes desenhos, muito bem feitos, onde as figuras têm quase uma dimensão natural, representam as quatro fases do grande ataque histérico (...)"
Extremamente interessante, cheio de pormenores acerca da história privada de La Salpêtrière, o relato de Delboeuf conduz o leitor para o interior da grande sala onde decorreu a primeira sessão de Charcot a que assistiu. Tudo acontecia numa "espécie de museu", onde se podiam ver um número assinalável "de desenhos, de pinturas, de gravuras, de fotografias que representavam ora cenas com vários personagens, ora um único doente nu ou vestido, de pé, sentado ou deitado, ora uma ou duas pernas, uma mão, um torso, ou outra parte do corpo". A paciente, uma jovem rapariga de nome C., parisiense e florista, entrou finalmente no espaço de observação: "Ela é como uma grande boneca cujas articulações são absolutamente maleáveis."
C. entrou rapidamente em catalepsia: "Algumas poses conformam-se às leis da paixão, e obtém-se assim atitudes passionais, de uma verdade impressionante. É um manequim de uma inteligência sem igual", observa Delboeuf. E continua: "(...) as covinhas do rosto cavam-se nas suas bochechas, ela sorri e o seu olhar envia um apelo a um amante invisível." O psicólogo, sempre com alguma desconfiança quanto à espontaneidade da cena, escreve ainda: "A assistência estava maravilhada. Não, jamais algum actor, algum pintor, jamais Rachel ou Sarah Bernhardt, Rubens ou Rafael chegaram a este poder de expressão. Esta jovem rapariga realizava uma série de quadros que apagavam em brilho e em força os mais sublimes esforços da arte". Não podíamos sonhar com um modelo mais admirável".
Beleza convulsiva
"Possessão" (2004) é o título da mais recente série de Paula Rego - sete pinturas em pastel, onde se faz sentir a influência das fotografias e desenhos realizados respectivamente por Charcot e Richer e publicados quer em "Les Demoniaques Dans l' Art", quer noutros volumes dos mesmos autores. Como nota a própria artista: "Sempre me interessei muito pelos gestos que as pessoas dão para exprimirem situações interiores de angústia. Nos quadros Renascentistas há posições de dor bastante extremas, que são muito expressivas." A narrativa de Delboeuf parece servir como uma luva ao novo conjunto apresentado em Serralves pela pintora, pois a figura tem escala humana, algumas das suas poses conformam-se às leis da paixão, podendo mesmo ver-se nas representações um apelo a um invisível amante. São trabalhos de uma beleza convulsiva; de um invulgar auto-erotismo, que passam pela sugestão de uma masturbação e um momento posterior ao êxtase, o último quadro do políptico.
Beleza convulsiva é o conceito com o qual André Breton finaliza "Nadja" (1928) - "A beleza será convulsiva ou não será" -, noção aprofundada em "O Amor Louco" (1937) - "La beauté convulsive sera érotique-voilée, explosante-fixe, magico-circonstancielle ou ne sera pas." As teorias de Freud sobre o inconsciente e a sua relação com os sonhos influenciaram decisivamente Breton, que definiu como objectivo do surrealismo "a resolução dos estados de sonho e realidade, aparentemente contraditórios, numa espécie de realidade absoluta, uma 'surrealidade'". E é no número 11 do órgão oficial dos surrealistas, "La Révolution Surreéaliste" (1928), que Breton e Aragon assinalam o cinquentenário da histeria, "meio supremo da expressão", num artigo ilustrado com fotografias tiradas por Charcot - num álbum privado, Breton juntava na mesma página retratos deste neurologista e de Freud. Um outro autor conotado com a primeira fase do movimento, Salvador Dalí, numa colaboração com a revista "Minotaure", publica, em 1933, a fotocolagem "Le phénomène de l'extase".
A série de Paula Rego integra, portanto, as investigações surrealistas sobre a beleza convulsiva, que, no seu caso, são apresentadas sob a forma de uma sequência de repente invadida pelo sonho - no plano superior da terceira pintura de "Possessão" surgem estrelas, que, de alguma forma, podemos relacionar, pelo facto de a acção continuar a desenrolar-se sobre "um divã de psiquiatra", com a passagem para o outro lado do espelho, para o imaginário, habitado pelo medo e pelo desejo. Parece, no entanto, demasiado limitado interpretar estas obras à luz da psicanálise, até porque, como assinalam Isabelle Schmitz e Pauline Soreau, mesmo se o surrealismo e a psicanálise "reconhecem o poder do desejo e do inconsciente na vida humana e lhe dão um lugar fundamental, o primeiro visa a realização do desejo, o segundo a sua sublimação". E continuam: "A psicanálise propõe-se curar indivíduos inadaptados para os reinserir na sociedade, enquanto o surrealismo entende libertar as forças reprimidas e mudar as condições de vida."
Devir-animal
Qual é, portanto, a hipótese de sair desse impasse criado por um excesso de clínica na interpretação dos trabalhos de Paula Rego e, por extensão, de qualquer obra de arte. Uma outra série de pinturas e desenhos (2002) inspirados no livro "Metamorfose", de Franz Kafka, também apresentados em Serralves, pode servir como uma possível linha de fuga - e recorde-se que a artista, desde os anos 50, procede a uma constante transformação do animal em humano e vice-versa. Estamos assim perante, como diria o filósofo francês Gilles Deleuze, uma sucessão de "devires-animal", tal como aconteceu com Gregório Samsa, que um dia acordou barata e foi varrido deste mundo, já morto.
Num dos seus livros fundamentais, "Logique de la Sensation" (1981), no qual estuda a obra de Francis Bacon, Deleuze dedica um capítulo, o sétimo, à histeria, no qual afirma existir uma relação especial da pintura com a histeria: "É muito simples. A pintura propõe-se libertar directamente as presenças sob a representação, para além da representação." E pergunta: "Podemos falar de uma essência histérica da pintura, em nome de uma clínica puramente estética, e independentemente de toda a psiquiatria, de toda a psicanálise?"
Ler a obra de Paula Rego através dos seus fluxos de intensidade, que surgem aqui e ali na transposição quer da literatura popular e erudita, quer do religioso, quer do desejo, quer ainda da dor, para desenhos e pinturas nos quais se afirma o primado da liberdade criativa para além de todos os constrangimentos de ordem moral e política, parece ser a mais produtiva das acções. A actual exposição, que reúne cerca de uma década da produção da artista, é percorrida por esse estado único, onde amor e morte se confundem: "O devir é uma captura, uma possessão, uma mais-valia, nunca uma reprodução ou uma imitação" ("Kafka. Pour une littérature mineure", de Gilles Deleuze e Félix Guattari, 1975).