Entrevista com António Lobo Antunes nos Seus 25 Anos de Carreira: "Acho Que Já Podia Morrer"
Terça-feira, 09 de Novembro de 2004
Praxes em Santarém são origem a acusação do Ministério Público. Em causa estão crimes de ofensa à integridade física qualificada, coacção e injúria
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António Lobo Antunes, 25 anos de carreira. Entrevista ao PÚBLICO no dia em que o escritor lança o seu último livro, Eu Hei-de Amar Uma Pedr
Naciona
%Adelino Gomes (textos) e Rui Gaudêncio (fotos)
Vira as folhas onde escreve, quando entramos. Só falta escondê-las dentro de um livro de Geografia ou História, como, não tarda, nos contará que fazia no tempo da adolescência, em que os pais lhe censuravam a ambição literária.
Passaram 25 anos sobre o lançamento dos seus dois primeiros livros, "Memória de Elefante" e "Os Cus de Judas", em 1979. Aparentemente alheio à azáfama com que a editora prepara a celebração da efeméride, numa festa marcada para o fim do dia de hoje, em Lisboa, António Lobo Antunes debruça-se, desde o princípio da manhã, sobre o tampo de vidro da pequena secretária, quase escondida à esquerda de quem entra na vastidão da garagem emprestada, onde tem trabalhado os seus últimos livros.
A meio da entrevista tomará a iniciativa de mostrar, fugazmente, o resultado da sessão. Frases escritas à mão, numa letra miudinha, delimitadas por traços que parecem marcar deixas das personagens. As quatro horas de hoje deram "um dedo" de texto. Que junto a centenas de outros "dedos", revistos, cortados, refeitos incessantemente, até Março, hão-de constituir a primeira versão do próximo livro.
O anterior, "Eu Hei-de Amar uma Pedra", 17º da sua bibliografia enquanto romancista - só hoje será apresentado oficialmente. Numa sessão ao fim da tarde no São Luiz, em Lisboa, a que a editora de sempre, a Dom Quixote, deu um toque de homenagem internacional.
Se lhe fosse dado escolher, entre vivos e mortos - diz ao PÚBLICO - gostaria de ver lá, a tocar, alguns dos seus ídolos do jazz. "A gente aprende a frasear com eles. Charlie Parker. John Lester. Johnny Rodgers. Thelonious Monk..." O que não quer dizer que gostasse de falar com eles. "Mitificamos as grandes figuras e nem sempre elas correspondem ao que esperamos. É muito raro aparecer um Oscar Wilde; um Churchill a quem perguntam aos 80 anos a que é que atribui o segredo da longevidade: "À ginástica, que nunca pratiquei"; um De Gaulle que confrontado com as reivindicações dos operários de uma fábrica de chocolates que visitava diz: "Vou tomar nota na minha tablette."
António Lobo Antunes, 62 anos, eterno candidato a Nobel da Literatura, o sonho de acabar como Tolstoi: excertos em nove capítulos de uma conversa de três horas.
PÚBLICO - Esta entrevista é publicada no dia em que se comemoram 25 anos sobre o lançamento do seu primeiro livro ["Memória de Elefante", começado a escrever em 1976 e publicado em 1979].
ANTÓNIO LOBO ANTUNES - ...vinte e cinco anos! É assustador. Porque se olha para trás e se pensa: "O que eu podia ter feito, o que fiz e o que não devia ter feito da minha vida...'
P - O que é que fez que gostava de não ter feito?
R - Não ter magoado pessoas que magoei; não ter sido desatento em situações de amor (amor homem-mulher, amor com os filhos, amor com os amigos); a pouca disponibilidade para as pessoas, por exemplo amigos doentes. Eu ia lá muitas vezes. Mas devia ir mais. Fui agora a Paris visitar o Christian [Bourgois, seu editor em França e grande amigo, a quem foi diagnosticado um cancro há poucos meses] Fui lá uma semana só para o ver. Mas levei o "tricot". Escrevia todas as noites como um danado. Não sei, espero que rezem pela minha alma pecadora.
P - Admite a hipótese de um dia parar de escrever para viver? Para fazer algumas dessas coisas que acabou de dizer?
R - Para fazer? Toda a minha construção mental foi feita para escrever. Eu mesmo me construí todo nesse sentido - para escrever.
P - No penúltimo livro ["Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo", 2003]...
R - ...mas os livros também são silêncio. Já reparou?
P - O que é que quer dizer com isso?
R - Quando a gente houve o Sinatra cantar, o que o torna ainda mais extraordinário é o silêncio. Como aquele homem gere as pausas! Outro dia estava a ouvir (tanto quanto consigo ouvir) os "Impromptus" de Schubert, pelo [Alfred] Brendel, salvo erro. Aquilo está cheio de silêncio, meu Deus! Se calhar toda a arte devia tender para o silêncio Quanto mais silêncio houver num livro, melhor ele é. Porque nos permite escrever o livro melhor, como leitor.
P - Como é o silêncio num livro?
R - Quando perguntaram a Santo Agostinho o que era o tempo, lembra-se o que é que ele respondeu?
R - Lembro ["Se não me perguntas, sei o que é, e se me perguntas, já não sei."], porque já respondeu dessa forma numa outra entrevista. Aliás é um problema tremendo entrevistá-lo, porque tem dado inúmeras entrevistas.
R - Foi só esta semana.
P - Não. No último livro, nos anteriores.
R - São muitas?
P - São.
Do trabalho árduo para escrever"como ninguém", antecedido da alegria da frase certa, ou as dores de parto de um novo livro
R - Está-me a lembrar aquele verso do Régio, da Carta de Amor: Poderia dizer-te sem falsidade,
Coisas que ditas, já não são verdade.
Isto às vezes é tremendo porque a gente quer exprimir sentimentos em relação a pessoas e as palavras são gastas e poucas. E depois aquilo que a gente sente é tão mais forte que as palavras... Dizem que o (poeta russo,1799-1837) Putshkin, quando usa a palavra "carne", a gente sente-lhe o gosto na boca. A palavra carne é sempre a mesma, depende das palavras que se põem antes e das palavras que se põem depois. Para que as pessoas sintam o gosto na boca eu tenho que trabalhar como um cão, até encontrar as palavras exactas antes e depois. Mas quando eu estava a corrigir o livro senti que ele estava cheio de silêncio. E estava contente com isso. Se trabalhar muito no osso, despindo da gordura -adjectivos, advérbios de modo, proposições - acaba por chegar lá. Percebe o que quero dizer?
P - Tento. Gostava de perceber melhor, para saber qual é o momento em que sente que a frase está certa.
R - Ah, isso é uma alegria enorme: "É isto! É isto!". [Vira-se para a direita e pega numas folhas de papel, com o timbre do Hospital Miguel Bombarda] Este é um manuscrito. É o capítulo que estou a fazer [de um novo livro]. Uma primeira versão. [Baixinho, como quem fala para si mesmo] O que estou a fazer não posso fazer, que dá azar. [Aponta para uma mancha azul e preta de letras e traços.] Comecei por aqui, estava uma merda. Continuei aqui. Comentário? [Pergunta, assinalando o que escreveu à margem, também à mão]
P - "Que porcaria".
R - Pois. Dois dias para fazer isto. Mas como já tinha começado, esta [folha] já me demorou só um dia. [Nova folha] Mas esta já demorou dois dias. Por que é que isto acontece? [Assinala outra vez palavras escritas à margem]
P - "Uma merda. 3.11"
R - Três do onze? Isso então é uma grande merda. Mas depois, ao mesmo tempo, no meio disto, há momentos de uma alegria tão grande...quase de êxtase. Parece que levita.
R - Desculpe fazer este parêntesis. Esteve a mostrar-me coisas que muito lhe agradeço e os leitores do PÚBLICO também...
R - ...não estive a mostrar ao PÚBLICO, estive a mostrar a si, nem sequer ao jornalista...
P - ...e eu faço-lhe a pergunta que muita gente fará quando vê essa letra miudinha, aliás impossível de descodificar por olhos estranhos: há alguma razão, de ordem física que lhe exija esse contacto com o papel e a caneta? O computador facilitava-lhe imenso as coisas. Porque, desculpe, aquilo que é "merda", cortava, deletava como se diz agora.
R - Comecei a escrever nestes blocos que eram os das receitas do Hospital Miguel Bombarda, do meu pai. Os meus pais não queriam que eu escrevesse. Portanto eu tinha que escrever em folhas pequenas: tinha o livro de Geografia ou de História posto por baixo, ouvia os passos deles e trocava a ordem. Ainda hoje escrevo com um livro aberto. Está aí. Para os adultos eu era um factor de inquietação permanente. Os meus irmãos eram bons alunos, eu era o mau aluno. A minha mãe conta que foi pedir aos professores do liceu que me sentassem à frente porque eu estava sentado ao contrário nas carteiras. Ela dizia: "Tiras o curso, sempre te deixo com uma enxada". Eu compreendo. Um escritor, um compositor, um fotógrafo que não tenha talento, a partir dos 40 começa a ficar muito amargo. Já reparou na quantidade de bares cheios de escritores que não escrevem, de pintores que não pintam? Penso que eles, à maneira deles, estavam a tentar proteger-me.
P - Entretanto passaram cinquenta e tal anos. Já se inventou o fax, o computador, e até agora há o telemóvel.
R - Telemóvel não posso ter. Interfere com o campo eléctrico [do aparelho auditivo que é obrigado a usar]. Mas por exemplo, eu não sei pôr a funcionar um DVD. Nunca abri um computador na vida. Mas eu gosto deste contacto físico, gosto de desenhar as letras.
P - Desenhar? Quase não se vêem. São microscópicas.
R - Então não se vêem? Às vezes ofereço uns capítulos aos amigos. Olhe, ao Júlio Pomar, fui lá a casa e ele tinha aquilo encaixilhado, outros põem nas paredes. E realmente assim até é bonito.
P - Pois, mais como um quadro.
R - E nós a chamarmos romances a estes quadros...
P - Estávamos a falar do arranque do seu trabalho literário, com a "Memória de Elefante". Houve outros livros antes, mas fê-los desaparecer.
R - Sim, houve vários romances antes. Com esse, achei, prematuramente, que podia publicar.
P - Prematuramente?
R - Agora acho bem, mas mais tarde achava que devia ter esperado mais tempo. Não ter pressa. Que só devia ter começado a publicar a partir de "O Manual dos Inquisidores" [1996]. Eu era muito consciente de que o que fazia era muito mau. Mas também de que se trabalhasse muito, faria coisas que mais ninguém faria.
P - É aí que os entrevistadores costumam introduzir a questão da vaidade, a que responde que não é vaidoso. Mas com uma grande vaidade.
R - Vaidade? Estou a ser sincero. O Adelino não encontra quem escreva como eu. Agora dizem todos isso. Naquela altura era eu sozinho a dizer para mim mesmo. E com vontade de dizer "não, porque eu só faço porcaria". Na minha geração, eu lembro-me de sair "A Paixão", de Almeida Faria [1965] e eu com 19 anos a pensar "nunca chegarei aos calcanhares deste homem'; ou os poemas da Luíza Neto Jorge; ou os poemas do Gastão Cruz, sei lá, tanta gente publicava, e todos eles eram melhores do que eu.
P - Depois houve um dia que descobriu...
R - Qual quê? Depois foi trabalhar, trabalhar, trabalhar. Porque para mim a coisa era clara: eu não tenho nenhum dom natural, mas não posso fazer a minha vida sem isto. Também não tinha vivido [ainda, naquela altura]. Tinha a sensação de ter muitos quartos, mas que só vivia em dois deles, não abrira as outras portas e janelas.
P - Há muitas portas e janelas ainda para abrir?
R - Espero bem que sim. Cada livro é mais um. Embora um livro nunca esteja acabado. Escreve-se um para corrigir o anterior.
P - Qual foi o melhor livro que escreveu?
R - Não sei dizer. Julgo que têm vindo a ser progressivamente - melhores é uma palavra que não quero usar - mais conformes à ideia que eu faço do que deve ser um livro.
P - O último normalmente fica mais perto?
R - É o mais parecido com aquilo que eu acho que deve ser um livro.
P - E o pior? [Por esta ordem de ideias] Foi o primeiro?
R - Folheei-os, agora, por causa destas edições "ne varietur" [por uma equipa coordenada por Alzira Seixo, que estabelece ou fixa o texto definitivo das primeiras edições e das reedições] e fiquei surpreendido. São os livros de um outro. O rapaz que escreveu aqueles livros não existe. É um antepassado meu. Olho para ele como para outra pessoa: as ideias, os sentimentos, as emoções dele escapam-me, muitas delas. Estão cheios de força e essa força surpreendeu-me, no caso da "Memória de Elefante". Mas depois comecei a perceber por que é que os editores o recusaram. Andava o pobre do Daniel Sampaio a levá-lo aos editores. Aquilo era muito estranho na época. Mas pensei, ao mesmo tempo que, se eu fosse editor, publicava, porque pensaria: 'Isto tem tanta força que se calhar ele vem a fazer coisas de jeito'...
P - Há uma coerência interna na sua obra?
R - Há, "malgré moi". Eu só há pouco tempo é que deixei traduzir a "Memória de Elefante". Achava que me desfigurava.
P - Mas não "Os Cus de Judas".
R - Com esse passou-se o mesmo que em Portugal. Ninguém queria os meus livros lá fora. E então o editor começou a oferecer "Os Cus de Judas" porque falava de guerra. Foi, em geral, o primeiro livro a ser traduzido. Mas o livro que me escancarou as portas foi o "Fado Alexandrino" [1983]. Encheu as páginas dos jornais franceses, teve uma crítica extraordinária de Jean Clémentin do "Canard Enchainé". É curioso, a própria "Memória de Elefante": acaba de ser traduzida na Alemanha, era o único que faltava. A crítica foi extraordinária. Para grande espanto meu.
Dos sonhos de glória e da embriaguês do sucesso ao medo de "não conseguir", com breve passagem por Saramago
P - Estes 25 anos ficaram aquém, atingiram, ou ultrapassaram os seus melhores sonhos?
R - Eu nunca tive sonhos de glória nem de reconhecimento. Aos 14 anos tinha. Mandam-me muitos manuscritos. O que é que esperam? Que eu os leia à segunda-feira, que lhes diga que são bestiais à terça, que na quarta sejam publicados e na quinta tenham reconhecimento universal. Escrever não é isto. Mas o que me aconteceu ultrapassou aquilo que podia imaginar. Quando saiu o primeiro livro eu era um inocente: não conhecia um único escritor, não sabia como é que uma editora funcionava, sabia lá o que era um agente. Caio de pára-quedas aos 36 anos num mundo que me era completamente desconhecido. Quando o livro saiu eu fui de férias. Quando voltei (já estava a escrever o terceiro livro) era famoso. O livro estava em todo o lado, vendia imenso, fizeram-se várias edições, e eu ia à noite - tinha vergonha de ir durante o dia - espreitar as montras da Baixa e ver o meu nome impresso. Só o tinha visto nas pautas.
P - Ultrapassou os sonhos, diz. Mas a ideia com que se fica logo nas suas primeiras entrevistas é que chegou com uma enorme arrogância. Sabe que é já, ou pelo menos que está escrito já nas estrelas, que vai ser um grande escritor.
R - Achava-me investido de uma grande autoridade. Achava que ia ou que estava a renovar a arte do romance. E então, embriagado pelo sucesso, comecei desajeitadamente e de uma maneira injusta, a ser arrogante e violento para pessoas que não o mereciam. Inclusivé para pessoas de quem depois me tornei muito amigo, como o Zé [Cardoso Pires]. A literatura não existia, começava comigo. Há maneiras mais delicadas de se pensar isso [ri]. Tinha necessidade de o dizer - 'Vejam, vejam, vejam!' -, como o menino que achou a bola.
P - Dos seus ódios de estimação só resta [José] Saramago?
R - Não quero nem tenho tempo para odiar seja quem for. Não tem que ver com isso. Tem que ver com o facto de ser tudo uma floresta de enganos. E me parecer... Ó Adelino, ainda é muito cedo para a gente avaliar o que eu estou a fazer.
P - Do seu lado já avaliou. Até diz e repete: "Ninguém escreve como eu."
R - Isso é outra coisa.
P - Até pode ser ambíguo e querer dizer simplesmente: "Tenho o meu estilo".
R - Estou mesmo convencido da qualidade dos livros. O meu problema agora, o que me assusta mais, é se desiludo as pessoas que puseram em mim uma fé que eu não partilhava - o Thomas [Colchie], o agente, e mais outras pessoas que acreditavam firmemente que aquelas merdas iam fazer livros. Foram muito importantes para mim essas pessoas. Deram-me muito alento nos momentos de desânimo que são muito grandes.
Da democracia, das classes altas e respectivos caseiros, e da dor "de ver o povo a viver a assim"
P - Sente-se refém das expectativas criadas nas pessoas que admira e também no leitor, de quem eventualmente tem uma imagem?
R - É curioso: só tenho [a imagem dos leitores] da Feira do Livro. No estrangeiro, por exemplo na Alemanha, quando vou lá, é um teatro e são mil e tal pessoas. E as pessoas pagam para entrar. Na Feira é que vejo as pessoas. Mas não há muito tempo, porque os de trás já estão a protestar.
P - De qualquer maneira, deve ter a ideia do tipo de leitor. A escrita vai dirigida a alguém? Quando está a escrever o livro está a fazer isso?
R - Não, quem escreve está a desembaraçar-se. Está a desembaraçar-se de uma coisa.
P - [Se assim fosse] Isso é atirar à sorte pela janela.
R - É atirar à sorte mas atirar bem. Deixar tudo muito bem dobradinho. Não é atirar a roupa para o chão. E então começa a ter pressa de se livrar daquilo. E também está a lutar contra o tempo. Quanto tempo mais é que eu vou ter? Quantos livros mais é que eu vou conseguir? Será que eu vou conseguir escrever mais algum? Isto é constante, constante, constante.
P - Está-me a dizer algo que é o contrário do que tem dito sobre a relação exclusiva que se estabelece entre o leitor e o livro. Agora o que diz é que não escreve para mim. Por mais que eu sinta que aquele livro foi escrito para mim?
R - Se eu piscar o olho ao leitor o livro é mau. Seria uma solução óbvia. Eu não gosto de mulheres óbvias. Nisso o Hitchcock tinha razão quando dizia que as mulheres mais ardentes (julgo que estava a falar em termos cinematográficos) são aquelas que têm uma aparência física distante e que se vestem de uma maneira muito púdica. Basta reparar nos estereótipos femininos que aquele homem foi usando ao longo da obra dele. Os meus leitores quem são? Olhe, adolescentes. Já tenho contado aquela história do pai de 40 e tal anos que me aparece com o "Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura" [2000], que foi talvez o livro mais complexo que eu escrevi, era acerca de uma agonia e de uma morte que eu estava a viver. Levava a filha, Joana, e disse que não percebia nada dos meus livros, o que é uma coisa que me surpreende. Perguntei-lhe a ela se achava os meus livros difíceis e ela olhou-me como para um homem do Neandertal. Os meus leitores são gente nova, gente com pouco dinheiro, da classe média, que é aquela que é mais penalizada por aquilo a que se chama democracia.
P - "A que se chama democracia"?
R - A gente não vive em democracia, como é evidente. Não vive. Há algumas quase democracias - a Holanda, a Bélgica, a Suíça [com] aquele arranjo [federal] complicado. A democracia implicava um constante referendar pelo povo das decisões do poder. Não existe.
P - O povo se calhar cansava-se. Em 75, quando estava tudo a ser posto em causa todos os dias, as pessoas cansaram-se, estar todos os dias a votar...
R - ...as pessoas tinham medo, estavam apavoradas. Lembro-me do senhor José, que era o caseiro do meu avô dizer: "É preciso que venham os franceses tomar conta da gente".
P - Significa que aquilo que estava a apontar como o ideal da democracia é qualquer coisa que as pessoas se calhar não querem.
R - Eu acho que querem, mas também não têm oportunidade. O que é que lhes resta? Votar de quatro em quatro anos?
P - Pois, mas quando podiam votar todos os dias, de braço no ar, não quiseram.
R - Votar de braço no ar não é democrático. Isso não é democracia.
P - O que é então a democracia para si? Em que sociedade gostava de vier?
R - Paradoxalmente, eu vivo muito fechado. Não gosto de ver o meu povo a viver assim. Dói-me. Dói-me chegar à Feira do Livro e a pessoa dizer: "Só posso comprar um livro". E então eu peço ao meu editor para oferecer o livro. E deixam-me dar aos mais novos, que não têm dinheiro, e a pessoas que se nota pelas roupas que não têm muitas posses. Eles querem comprar livros e não podem. Ganham pouco, vivem longe, porque é mais barato. No Cacém por exemplo. Oito horas de trabalho, não sei quantas de transportes públicos, chegam a casa, o marido, a mulher, os filhos, telefone, televisão. São pessoas que estão a gastar o dinheiro e o tempo delas, que é muito pouco, para me lerem, tenho que me sentir grato. Uma vez um homem estendeu-me um livro: "Assine, porque sou o seu patrão". E tinha toda a razão. Essas pessoas permitem que eu viva dos livros. Tenho que as respeitar. São tão calorosas. Bem, às vezes, por causa de "Os Cus de Judas" tive uma série de problemas. E do Tratado [das Paixões da Alma, 1990]. Até com "As Naus" [1988]. Aí a direita acusava-me de dizer mal dos grandes vultos nacionais; a esquerda de dizer mal das grandes conquistas da Revolução. Os meus primeiros livros - achava graça - provocavam reacções emotivas extremadas. Chegou a haver tentativas de agressão física. Julgo que por falarem de uma realidade imediata. Foram precisos anos para fazer esta grande unanimidade. Que veio do estrangeiro, não nasceu cá.
P - Como é que explica que o mesmo livro entusiasme o homem que vive no Cacém e uma mulher que vive na Suécia ou nos EUA? Quando de resto os seus temas são a Brandoa, o cachucho, o naperon....
R - Serão? O que eu tenho tentado é mostrar todas as classes sociais, todas as formas de viver. O "Auto dos Danados", por exemplo, é claramente sobre as classes altas.
P - Estão sempre lá os caseiros...
P - Estão. Porque eles existem. Como dizia o Balzac é preciso ter escavado à vida social para ser um escritor, porque o romance é a história privada das nações. O que eu tento é que apareçam pessoas de todas as classes sociais. E isso acontece naturalmente. Mas essas classes [mais baixas] são mais importantes para mim. Sabe, a frase mais importante que eu ouvi na minha vida foi na Faculdade de Medicina, numa aula de Neurologia com o professor Miller Guerra. A doente era uma senhora com Parkinson, com dificuldade em mover-se. "Como é que a senhora consegue fazer a lida da casa?", perguntou-lhe o professor. "É tudo a poder de lágrimas e ais". Eu tinha 20 anos e nunca mais esqueci. Se eu pudesse escrever assim!... As grandes lições da minha vida não foram dadas pelas pessoas do meio onde nasci. Foram-me dadas pelas pessoas que vivam a poder de lágrimas e de ais. Quando estava no hospital, dava-me muito melhor com os serventes, os operários. Julgo que herdei isto do meu pai. Porque os admirava, porque os respeitava. E tenho muitos amigos assim. Se tenho um problema no carro, num cano, ou não sei quê, tenho logo amigos que vêm.
O pé do Zé Francisco, a revisitação da infância na Beira Alta, a noite a transformar-se em manhã, ou de como o autor se vê, apaziguado, entre instâncias que lhe escapam
P - Continua a ir ao hospital?
R - Acabou agora. Até há pouco tempo ia. Afectivamente estava muito ligado. Ia lá desde pequeno, com o meu pai. Em miúdo tinha muito medo daquelas pessoas. Depois comecei a gostar muito delas. Em nome de quê eles estavam ali, comecei a perguntar? E encontrava pessoas de uma riqueza extraordinária. Aprendi muito da vida com as pessoas que encontrei ali. Outro dia, uma senhora alentejana estava a queixar-se, com muitas dores. A expressão dela: "Tantas fezes, tantas fezes..." A capacidade evocativa disto! Ao passo que eu ouço as pessoas que entram na Quinta das Celebridades (já espreitei, como é evidente, como toda a gente), não me interessam nada. Agora esta gente é rica. Fala por vezes um português arcaico. Há certas regiões de Trás-os-Montes onde as pessoas me tratam por vós. "Onde ides?" Era esse o meu país, percebe?
P - Anda [por ele] à procura de inspiração?
R - Não, não. Tomara que não viesse tanta. Agora tenho voltado ao sítio da minha infância, na Beira Alta. Está lá, passa um estranho por si e diz "Bom dia". Aquilo é natural São fidalgos. São fidalgos.
P - Voltando às musas, à inspiração: nos seus livros encontra-se Angola, a família nesse conceito muito vasto que vai dos pais aos caseiros, e um pouco a medicina. Esta não foi um campo onde ia beber inspiração?
R - O que é que guardo mais? O que me apareceu logo foi um pé. Quando eu era estagiário fui colocado no serviço de pediatria (três meses de internato. Escrevi sobre isto uma crónica). Miúdos de três, quatro anos, com cancros, com leucémias, com coisas nos rins. Afeiçoei-me a um miúdo chamado Zé Francisco. Era tão bonito, o miúdo. E o Zé Francisco morreu. Tão alegre. Quando morre uma pessoa no hospital, vêm dois maqueiros com uma maca tapada com um lençol. Ele tinha quatro anos. Veio só um homem, embrulhou-o no lençol e levou-o ao colo. Eu estava entreportas e via o homem a afastar-se com o Zé Francisco embrulhado. Não via o Zé Francisco, o homem estava de costas, mas do lençol saía um pé, e o pé balouçava. Isto ainda hoje me comove. Às vezes penso que escrevo para o pé do Zé Francisco. Há uma história que o meu irmão João [Lobo Antunes, neurologista] me contou, quando era estagiário. Sobre uma miúda de 14 anos que tinha uma leucémia, não sabia que a tinha, foi ao gabinete de enfermagem, abriu o processo dela e viu lá: leucémia. O João contava como a cara da miúda se transformou. Os hospitais para mim eram sempre um sítio donde saía...Era ali que estava o... É nessa região que tenho que escrever.
P - Já não vai voltar lá?
R - Agora acho que a minha obrigação é escrever para eles. Por eles. A gente também deve escrever pelas pessoas que não têm voz. Quem é que liga aos camponeses lá da minha Beira Alta? Quem? E eles dizem-me: "Escreva sobre nós".
P - Pode saber-se sobre que é esse livro que está agora a escrever?
R - Estou a lembrar-me de Dom Francisco Manuel de Melo, de quem gosto muito, que dizia num prefácio: "O livro trata do que vai escrito dentro." Não sei sobre que é que é. Não sei.
P - Já começou, e ainda não sabe?
R - Ainda me falta bastante. Espero acabar a primeira versão em Fevereiro, Março, para depois começar a trabalhar.
P - Já vai nuns capítulos lá para a frente, não é?
R - É isso que se passa em Évora, não sei porque carga de água.
P - Então não é em Nelas?
R - Não, é em Évora. É um homem, duas mulheres. A ideia era esta: como a noite se transforma em manhã.
P - Uma coisa que acontece desde o princípio...
R - Exactamente. Como a noite se transforma em manhã dentro de duas ou três pessoas, que no fundo são representantes de toda a gente. Um homem, duas mulheres. Como a noite se transforma em manhã, dentro deles.
P - Um livro como este último ["Eu Hei-de Amar Uma Pedra"] em que não vai aparecer o mundo exterior - não vai aparecer o Bush, não vai aparecer o Arafat, Santana Lopes, a Casa Pia, nada do que está aqui à volta?
R - Mas isso não são coisas importantes. O que eu queria era que aparecesse a vida toda. Descobri agora que o homem tinha pertencido à polícia política [Pide, extinta em 25 de Abril de 1974]. Não quero entrar muito, porque é meio nebuloso ainda, e depois porque uma vez parti para um livro ["Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo", 2003], passado em Angola, pensando que ia falar em seitas religiosas mas foi tudo subvertido e acabou em diamantes, tráficos...
P - Ainda não consegui saber é quem é que é esse seu co-autor?
R - Como? Exactamente. Aconteceu-me uma coisa parecida com o "Manual dos Inquisidores", que é um livro de que algumas pessoas gostam muito... Eu gosto mais dos últimos. Bom. Eu queria que a amante do velho [personagem central do Manual dos Inquisidores] fosse um travesti. E o livro rejeitava-me o travesti. Depois foi recuperado [em "Que Farei Quando Tudo Arde?" 2001]. Eu gosto desse livro. O que me deu mais trabalho talvez tenha sido "Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura [2000]. Dão todos. Eu estava a ver estas anotações à margem [no manuscrito do próximo livro] e a pensar: "Não vou ser capaz, não vou ser capaz, não vou ser capaz". Eu julgo que...eu julgo... Acho que já podia morrer.
P - Sente-se feliz, portanto, com o que fez?
R - Sinto. Sinto-me em paz comigo. Fiz o melhor que pude. Trabalhei muito e fiz o melhor que pude. Se não fiz melhor foi porque não fui capaz. Isto parece a linguagem de um futebolista no fim de um jogo. Mas fiz o melhor que pude. Se os livros não são melhores a culpa é minha.
P - E fez isso para quem? Se não pensou no seu leitor...
R - Há uns tempos estava a falar sobre isso com o Eduardo Lourenço. Ele gosta muito do [Fernando] Pessoa. Dizia-me ele : "Fazes-me lembrar aquele soneto do Pessoa
Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além
É como se uma pessoa fosse um medium, entre duas instâncias que lhe escapam. A gente não sabe bem donde é que vêm as coisas. De que região nossa, de que parte nossa. E isso impede-lhe a vaidade, porque o seu único mérito é o de trabalhar e receber. Temos que ser orgulhosos, mas bolas, há dois sentimentos que cada vez me são mais incompreensíveis: a vaidade e a inveja.
De quando Deus faz pessoas à medida dele...
P - Cá de fora vejo-o vaidoso. Como constatação sua de capacidades, talvez.
R - Fazer uma constatação de capacidades não é estar a ser vaidoso, mas realista. A vaidade implica um hipervalorizar coisas nossas. A vaidade implica uma sensação de superioridade sobre os outros, que não se tem direito de ter. Porque depois aparece uma pessoa que faz tudo a poder de lágrimas e ais e o Adelino não é capaz de o fazer. E que lhe dá uma lição de humanidade incrível. A pessoa mais luminosa e inteligente que encontrei na minha vida foi há muitos anos numa consulta no hospital Miguel Bombarda - uma rapariga com uma depressão. Era criada de servir. Uma capacidade de"insight", uma capacidade de inteligência abstracta, de associar tempos da vida dela, espantosa. E reduzida miseravelmente à condição de serva. E ela não tinha consciência disto. Depois teve um cancro. Da mama. Não o tratou a tempo. Já só me aparecia porque eu gostava de conversar com ela. Com o marido, [que tinha] um emprego muito modesto. Com uma cabeleira postiça. Com 42 anos, morreu ela. "Gostava de viver mais uns anos..." Parecia que saía luz daquela mulher. E o Adelino saía dali, mesmo que ela não falasse, com a sensação de que de vez em quando Deus faz pessoas à medida dele.
...à história do filho do soldado Schutte
P - Vai querer que a literatura o recorde como quê?
R - Vai-me ser igual - porque tenho a boca cheia de terra, não é? - que me ponham nos Jerónimos ou que me deixem na vala comum. Aqui há tempos tive um sonho. Era um pesadelo horrível. Tinha morrido há 20 ou 30 anos, e as pessoas estavam a discutir os livros. E eu queria voltar porque não era nada daquilo. Não imagina como foi desconfortável. Só para explicar: "Não é, não é!"
Logo [na sessão no S. Luís] vão falar duas pessoas luminosas. Uma que é o Wolfram Schütte e a outra o Matts Gellerfelt, sueco. O primeiro foi jornalista do Frankfurter Rundschau durante muitos anos. Coxeia um pouco. É muito parecido com o Sean Connnery, da mesma idade. Quando comecei a conhecer melhor a Alemanha, soube que o pai da minha tradutora tinha sido morto na guerra, que o sogro tinha sido morto na guerra, por aí fora. As pessoas, aquelas que têm agora 60 anos, não falam do que sofreram. O pai do Schütte foi morto e ele ficou sozinho com a mãe. Um dia, quando já tinha mais intimidade com ele, perguntei-lhe que doença tinha, assim a coxear. Ele contou, como se fosse uma coisa banal, sem nenhuma emoção aparente: os miúdos como ele, com seis anos, iam roubar carvão para aquecer a casa. Os soldados americanos tinham posto o carvão todo no mesmo sítio. Os miúdos iam buscar o carvão e os soldados atiravam sobre eles como apostas: "Vinte dólares a quem acertar naquele!" Ele coxeia porque tem uma bala na perna. Na altura não havia médicos nem nada, a Alemanha estava arrasada. Havia viúvas, e havia filhos de mortos. Contou isto sem azedume. O Malaparte não conta coisas diferentes, sobre o fim da guerra em Itália. Adelino, eu sse fosse iraquiano... Eu não consigo condená-los. Não consigo. Se isto se passasse na minha terra? Agora a gente olha para trás e pergunta: "O que é que eu fiz em África?" Se fosse aqui, nós estávamos na guerrilha. A minha filha mais velha foi ao Iraque, numa missão humanitária. Os americanos tiraram-lhe o telemóvel. Deram-lhe um telemóvel americano. E então ela falava numa linguagem alusiva: "Então como é que estás, filha? - Ai, está muito bom o clima, há muitas pessoas deitadas na areia a apanhar sol". Isto, para além da minha incompreensão da injustiça do sofrimento. A semana passada morreu um amigo meu que há 30 anos lutava com uma doença crónica horrível, com uma dignidade e uma coragem exemplares. "Como é que estás, Zé?" "Estou bem". Nós somos isto, nós pessoas anónimas...
Onde se fala da morte, de Deus ("do horrível" e do que "chora"), dos mouros de Lisboa, de Israel, e dos países que não têm homens à frente deles
P - A inevitabilidade da morte é algo que lhe arranha o dia a dia?
R - (longo silêncio) A morte das pessoas de quem gostei foi muito difícil para mim. O meu avô morreu quando eu tinha 18 anos e ainda me dói. Beijo o retrato dele às vezes. Chega uma altura em que a gente tem a sensação de ter mais mortos do que glóbulos no sangue, em que já nos tiraram quase tudo. Sempre achei a morte misericordiosa. Vi morrer muita gente, por razões profissionais. E nunca vi ninguém morrer agitado. Não sei o que é morrer.
P - Há pouco disse que não lhe interessa nada depois, porque vai ter a boca cheia de terra. Não tem lá no fundo do fundo nenhuma dúvida de que possa não ser assim?
R - Há um provérbio húngaro do século XVIII que diz: na cova do mundo não há ateus. O meu pai, que era um anátomo-patologista, argumentava que o nada não existe na natureza, tem que haver qualquer coisa. Mas o que me começou a surpreender mais aí pelos 20 e tal anos foi quando comecei a ler os escritos dos físicos - Max Planck, Einstein, etc...- foi que eles eram homens profundamente crentes. E que tinham chegado aí através da matemática e da física.
P - E isso fê-lo a si chegar a Deus?
R - O problema é que me impingiram um Deus horrível. "Não comes a sopa, o Menino Jesus vai chorar". Este deus horrível, que mandava castigos e que matava primogénitos, era um ser, uma entidade horrível.
P - Mas pode mudar de deus. Hoje é muito fácil, com a globalização. Em Hollywood estão a aderir todos ao budismo.
R - Eu agora ando muito atraído pela teologia da angústia que levou todos esses teólogos aos campos de concentração. Outra dia a minha tradutora sueca, a propósito da doença de uma pessoa muito amiga, dizia: "Deus está a chorar" Para ela, Deus é uma entidade que sofre, a braços com uma criação que muitas vezes o excede. Eu julgo que Deus está presente em todos nós. Nunca vi ninguém morrer e chamar pelo pai. Chamavam pela mãe ou por Deus.
P - Quer dizer que, em tese, começa a acreditar que, no tal sonho que teve, um dia vai poder intervir na discussão sobre o seu livro...
R - (gargalhadas prolongadas). Não, eu julgo que isso tem a ver com o meu receio de não ser entendido.
P - Será aliás extraordinário é o livro que vai escrever depois disto tudo. Isto é, no outro estádio.
P - Eu gosto muito do Corão. Na sua generosidade, na sua humanidade, é superior ao Antigo Testamento. Quando D. Afonso Henriques tomou Lisboa, havia aqui um bispo. Repare a tolerância religiosa deles. Eles não matavam prisioneiros. Nós é que matávamos todos. Agora deram-me o "Prémio Jerusalém". Foram muito correctos, disseram-me: Você diz o que quiser".
P - O que é que disse?
R - Que normalmente quando me convidam para casa de alguém não digo que os cortinados são de mau gosto... Estive com o [escritor israelita] Amos Oz, de quem gosto muito. Ele defende abertamente um estado palestiniano.
P - Ele e uma parte da inteligência israelita.
R - Fiquei surprendido com a lista dos premiados [ao longo dos anos]: Bertrand Russel, Graham Greene, e por aí fora. O Amos Oz contou-me uma história extraordinária. Quando ele foi para Israel, no princípio, o presidente vivia em dois quartos, pequenos, com um soldado à porta. O oficial de ronda achou que o soldado estava muito gordo e esquisito. Aproximou-se e era o presidente que estava de farda e de espingarda. "O rapaz tinha a mãe doente....", explicou ele. Agora imagine o primeiro-ministro a vestir-se de contínuo. O nosso. Pois é, é que há países que têm homens à frente deles. Concorde-se ou não com eles, a gente não pode deixar de respeitar um Olof Palme, um Willy Brandt, um Heinrich Böll.
Histórias de quando Lisboa votava contra o autor, elogio de Cavaco, e a cereja do Nobel
P - Iniciei esta entrevista notando que neste seu último livro não havia nada à volta. E depois tinha vontade de lhe perguntar, mas a conversa nunca mais deixou, se para si também não há nada à volta. Vemos esta garagem, é aqui que escreve, não sei quantas horas por dia.
R - Nenhum deste objectos é meu. Eu posso pegar numa mala, agarrar nos livros que são meus, nos quadros do Pomar, que ele me dá, e partir.
P - Sabemos pelas entrevistas que dá que vai pouco ao teatro, pouco ao cinema, não gosta de ir a bares...
R - ...não bebo...
P - ...Mas está atento aquilo que se passa, vê televisão?
R - Pouco. Vejo teletexto. Gosto de ler alguns jornalistas. Às vezes pergunto-me que liberdade têm os jornalistas. Se esta discussão que há agora [sobre pressões dos poderes político e económico] não houve desde sempre. A sensação que tenho do que conheço de si, por exemplo, é que deve ter tido graves problemas ao longo da sua vida.
P- Isso não vem agora ao caso, podemos conversar em "off".
R - É que um livro não é completamente inócuo. Quando aqui há uns anos se começou a falar em mim para o Prémio Nobel - tenho aí fotocópias - havia documentos de departamentos portugueses que diziam mais ou menos que esse homem ofendia o seu país através dos seus livros.
P - Em Portugal? Em que década? Anos 90? Tempo do cavaquismo?
R - Presumo que não tinha que ver com o primeiro-ministro. O dramático, aliás, é a gente olhar para trás e pensarmos: qual foi o melhor primeiro-ministro depois do 25 de Abril? Eu sou de esquerda. Mas acho que foi o Cavaco Silva. Tenho muita pena de o dizer. Por todos os defeitos que o homem possa ter, esta é a verdade. O que se tem passado nestes últimos anos é profundamente indignante.
P - Mas essa informação sobre uma censura do Estado à atribuição do prémio, nunca ouvi falar dela. Quem escreveu a carta: o Ministério da Cultura, alguém importante?
R - Não digo. Não sei porquê, mas eu era uma figura incómoda.
Mas vou dar-lhe outro exemplo: o júri de um prémio europeu importante, de tradução, queira dar o prémio à minha tradutora alemã. A representante portuguesa no júri, do Instituto do Livro, diz: não pode ser porque esse escritor é "overestimated abroad". Pergunte logo ao Wolfram, porque ele estava no júri e ficou indignado. Acho que ela ganhou o prémio na mesma, porque os outros membros do júri votaram nela.
P - Mas o António Lobo Antunes é hoje um consenso nacional.
R - Agora sim. Tão curioso que isso é. Mas vem de fora para dentro. Mas eu queria que ficasse claro que eu estou muito grato ao meu país. Não tenho nenhum sentimento de amargura.
P - Está-se sempre a perguntar-lhe isso, mas eu gostava de ouvir a sua palavra definitiva: é-lhe indiferente o Prémio Nobel, ou, como seria humano, gostava dessa cereja no bolo?
R - Quer que eu seja sincero ou quer uma resposta de entrevistado? Claro que me dava prazer. Dá prazer a qualquer pessoa. Mas depois posso defender-me pensando: o Tolstoi nunca o ganhou. A lista não é boa. A lista não é boa. Agora é evidente que gostava.
Celebrar com Charlie Parker e acabar como Tolstoi
P - Como vê este sarau de logo à noite?
R - Os livros permitiram-me conhecer pessoas melhores do que nós. Que têm um calibre humano que eu não tenho. Muitos vão estar logo à noite no São Luís. Eu se tivesse sido baleado por um soldado aos seis anos andava com esse ódio dentro de mim toda a vida.
P - Se pudesse escolher os convidados desta noite da homenagem, quem gostava de ver l?
R - Charlie Parker. Alguns músicos de jazz. A gente aprende a frasear com eles. John Lester. Johnny Rodgers. Thelonious Monk. Gostava de ouvi-los a tocar. Não sei se gostaria de falar com eles. Eu tenho muito medo, sabe. A gente mitifica as pessoas. Lembro-me de ter ido ter com um escritor que me convidou para almoçar. Eu disse "Bom dia", ele disse "Bom dia", e fiquei logo desiludido. A gente espera que um escritor diga sempre coisas inteligentes e é muito raro aparecer um Oscar Wilde; um Churchill a quem perguntam aos 80 anos a que é que atribui o segredo da longevidade e ele - "A ginástica, que nunca pratiquei"; um De Gaulle que confrontado com as reivindicações dos operários de uma fábrica de chocolates que visitava diz - "Ora deixa tomar nota aqui na minha tablette"...
P - Como vão ser os próximos 25 anos da sua carreira?
R - Os próximos 25 anos? Espero não ter o mau gosto de viver mais 25 anos.
P - Que marca quer ainda pôr nos seus trabalhos?
R - Queria escrever mais livros. Ultimamente quando vou a estes prémios fico muito agradado: têm a nossa bandeira. Na Áustria os emigrantes portugueses choravam porque havia a nossa bandeira na chancelaria. Choravam com lágrimas. Se a gente puder deixar qualquer coisa que no meio do sofrimento abra uma janela qualquer, já me chegava.
P - Anda com frases na cabeça?
R - A princípio sim, agora já não Às vezes aparece, à noite. 'Amanhã lembro-me.' Claro que não me lembro.
P - Numa entrevista dada no lançamento do penúltimo livro, dizia que iria escrever mais dois ou três livros. Do que disse nesta, fiquei com a ideia que gostaria de escrever até ao fim.
R - Às vezes digo não importa o quê para me deixarem em paz.
P - Já percebi. Estou a aborrecê-lo..
R - Não, não está nada. É que qualquer entrevista é muito inferior a um livro. O livro permite corrigir-se. A entrevista necessariamente está cheia de lugares comuns. Uma vez um admirador da Sarah Bernhardt todo contente disse: "Ah! É V. Excelência Sarah Bernardht?" E a resposta dela foi: "Serei esta noite." O António Lobo Antunes só existe depois dos livros feitos.
P - Então pronto. Peço-lhe desculpa destas três horas que lhe retirei ao seu livro. Hoje já tinha escrito quanto?
R - Quatro ou cinco horas.
P - Em páginas isso traduz-se em quanto? Aquelas duas que vejo ali?
R - Hoje escrevi muito pouco. [Pega numa das folhas, mede-a]. Um dedo. Em quatro horas escrevi um dedo.
P - Espero que agora corra melhor.
R - Eu só espero...sabe, chega uma altura em que uma pessoa sem se dar conta, começa... como aconteceu com o Garcia Marquez, com o Faulkner, com o Hemingway...
P - ... espera que aí, se a campainha tocar, pára, é?
R - Eu acho que ela não vai tocar. E provavelmente como os outros, ficarei a fazer...coisas más.
P - Aí, aquele seu agente norte-americano [Thomas Colchie] vai dizer-lhe: "Olha, estás a descer!".
R - Ele é muito cruel. Mas quando se descer, não se sobe mais. O Ingmar Bergman falava longamente sobre isso. Não estou muito de acordo, mas ele dizia que notava com a idade que o instinto sexual e a capacidade criativa iam desaparecendo a pouco e pouco. No entanto continua a trabalhar imenso.
P - Gostava de poder escrever até ao fim?
R - Gostava que me acontecesse como ao Tolstoi. Naquela gare onde ele morreu, puseram-lhe um lençol por cima. Ele estava deitado e no lençol a mão dele continuava a desenhar as letras. Era assim que eu gostaria de acabar...
P - Obrigado
R - ...se tiver de acabar.
Terça-feira, 09 de Novembro de 2004
Praxes em Santarém são origem a acusação do Ministério Público. Em causa estão crimes de ofensa à integridade física qualificada, coacção e injúria
Operação Fúria Fantasma: americanos lançam no Iraque assalto ao bastião rebelde de Falluja
António Lobo Antunes, 25 anos de carreira. Entrevista ao PÚBLICO no dia em que o escritor lança o seu último livro, Eu Hei-de Amar Uma Pedr
Naciona
%Adelino Gomes (textos) e Rui Gaudêncio (fotos)
Vira as folhas onde escreve, quando entramos. Só falta escondê-las dentro de um livro de Geografia ou História, como, não tarda, nos contará que fazia no tempo da adolescência, em que os pais lhe censuravam a ambição literária.
Passaram 25 anos sobre o lançamento dos seus dois primeiros livros, "Memória de Elefante" e "Os Cus de Judas", em 1979. Aparentemente alheio à azáfama com que a editora prepara a celebração da efeméride, numa festa marcada para o fim do dia de hoje, em Lisboa, António Lobo Antunes debruça-se, desde o princípio da manhã, sobre o tampo de vidro da pequena secretária, quase escondida à esquerda de quem entra na vastidão da garagem emprestada, onde tem trabalhado os seus últimos livros.
A meio da entrevista tomará a iniciativa de mostrar, fugazmente, o resultado da sessão. Frases escritas à mão, numa letra miudinha, delimitadas por traços que parecem marcar deixas das personagens. As quatro horas de hoje deram "um dedo" de texto. Que junto a centenas de outros "dedos", revistos, cortados, refeitos incessantemente, até Março, hão-de constituir a primeira versão do próximo livro.
O anterior, "Eu Hei-de Amar uma Pedra", 17º da sua bibliografia enquanto romancista - só hoje será apresentado oficialmente. Numa sessão ao fim da tarde no São Luiz, em Lisboa, a que a editora de sempre, a Dom Quixote, deu um toque de homenagem internacional.
Se lhe fosse dado escolher, entre vivos e mortos - diz ao PÚBLICO - gostaria de ver lá, a tocar, alguns dos seus ídolos do jazz. "A gente aprende a frasear com eles. Charlie Parker. John Lester. Johnny Rodgers. Thelonious Monk..." O que não quer dizer que gostasse de falar com eles. "Mitificamos as grandes figuras e nem sempre elas correspondem ao que esperamos. É muito raro aparecer um Oscar Wilde; um Churchill a quem perguntam aos 80 anos a que é que atribui o segredo da longevidade: "À ginástica, que nunca pratiquei"; um De Gaulle que confrontado com as reivindicações dos operários de uma fábrica de chocolates que visitava diz: "Vou tomar nota na minha tablette."
António Lobo Antunes, 62 anos, eterno candidato a Nobel da Literatura, o sonho de acabar como Tolstoi: excertos em nove capítulos de uma conversa de três horas.
PÚBLICO - Esta entrevista é publicada no dia em que se comemoram 25 anos sobre o lançamento do seu primeiro livro ["Memória de Elefante", começado a escrever em 1976 e publicado em 1979].
ANTÓNIO LOBO ANTUNES - ...vinte e cinco anos! É assustador. Porque se olha para trás e se pensa: "O que eu podia ter feito, o que fiz e o que não devia ter feito da minha vida...'
P - O que é que fez que gostava de não ter feito?
R - Não ter magoado pessoas que magoei; não ter sido desatento em situações de amor (amor homem-mulher, amor com os filhos, amor com os amigos); a pouca disponibilidade para as pessoas, por exemplo amigos doentes. Eu ia lá muitas vezes. Mas devia ir mais. Fui agora a Paris visitar o Christian [Bourgois, seu editor em França e grande amigo, a quem foi diagnosticado um cancro há poucos meses] Fui lá uma semana só para o ver. Mas levei o "tricot". Escrevia todas as noites como um danado. Não sei, espero que rezem pela minha alma pecadora.
P - Admite a hipótese de um dia parar de escrever para viver? Para fazer algumas dessas coisas que acabou de dizer?
R - Para fazer? Toda a minha construção mental foi feita para escrever. Eu mesmo me construí todo nesse sentido - para escrever.
P - No penúltimo livro ["Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo", 2003]...
R - ...mas os livros também são silêncio. Já reparou?
P - O que é que quer dizer com isso?
R - Quando a gente houve o Sinatra cantar, o que o torna ainda mais extraordinário é o silêncio. Como aquele homem gere as pausas! Outro dia estava a ouvir (tanto quanto consigo ouvir) os "Impromptus" de Schubert, pelo [Alfred] Brendel, salvo erro. Aquilo está cheio de silêncio, meu Deus! Se calhar toda a arte devia tender para o silêncio Quanto mais silêncio houver num livro, melhor ele é. Porque nos permite escrever o livro melhor, como leitor.
P - Como é o silêncio num livro?
R - Quando perguntaram a Santo Agostinho o que era o tempo, lembra-se o que é que ele respondeu?
R - Lembro ["Se não me perguntas, sei o que é, e se me perguntas, já não sei."], porque já respondeu dessa forma numa outra entrevista. Aliás é um problema tremendo entrevistá-lo, porque tem dado inúmeras entrevistas.
R - Foi só esta semana.
P - Não. No último livro, nos anteriores.
R - São muitas?
P - São.
Do trabalho árduo para escrever"como ninguém", antecedido da alegria da frase certa, ou as dores de parto de um novo livro
R - Está-me a lembrar aquele verso do Régio, da Carta de Amor: Poderia dizer-te sem falsidade,
Coisas que ditas, já não são verdade.
Isto às vezes é tremendo porque a gente quer exprimir sentimentos em relação a pessoas e as palavras são gastas e poucas. E depois aquilo que a gente sente é tão mais forte que as palavras... Dizem que o (poeta russo,1799-1837) Putshkin, quando usa a palavra "carne", a gente sente-lhe o gosto na boca. A palavra carne é sempre a mesma, depende das palavras que se põem antes e das palavras que se põem depois. Para que as pessoas sintam o gosto na boca eu tenho que trabalhar como um cão, até encontrar as palavras exactas antes e depois. Mas quando eu estava a corrigir o livro senti que ele estava cheio de silêncio. E estava contente com isso. Se trabalhar muito no osso, despindo da gordura -adjectivos, advérbios de modo, proposições - acaba por chegar lá. Percebe o que quero dizer?
P - Tento. Gostava de perceber melhor, para saber qual é o momento em que sente que a frase está certa.
R - Ah, isso é uma alegria enorme: "É isto! É isto!". [Vira-se para a direita e pega numas folhas de papel, com o timbre do Hospital Miguel Bombarda] Este é um manuscrito. É o capítulo que estou a fazer [de um novo livro]. Uma primeira versão. [Baixinho, como quem fala para si mesmo] O que estou a fazer não posso fazer, que dá azar. [Aponta para uma mancha azul e preta de letras e traços.] Comecei por aqui, estava uma merda. Continuei aqui. Comentário? [Pergunta, assinalando o que escreveu à margem, também à mão]
P - "Que porcaria".
R - Pois. Dois dias para fazer isto. Mas como já tinha começado, esta [folha] já me demorou só um dia. [Nova folha] Mas esta já demorou dois dias. Por que é que isto acontece? [Assinala outra vez palavras escritas à margem]
P - "Uma merda. 3.11"
R - Três do onze? Isso então é uma grande merda. Mas depois, ao mesmo tempo, no meio disto, há momentos de uma alegria tão grande...quase de êxtase. Parece que levita.
R - Desculpe fazer este parêntesis. Esteve a mostrar-me coisas que muito lhe agradeço e os leitores do PÚBLICO também...
R - ...não estive a mostrar ao PÚBLICO, estive a mostrar a si, nem sequer ao jornalista...
P - ...e eu faço-lhe a pergunta que muita gente fará quando vê essa letra miudinha, aliás impossível de descodificar por olhos estranhos: há alguma razão, de ordem física que lhe exija esse contacto com o papel e a caneta? O computador facilitava-lhe imenso as coisas. Porque, desculpe, aquilo que é "merda", cortava, deletava como se diz agora.
R - Comecei a escrever nestes blocos que eram os das receitas do Hospital Miguel Bombarda, do meu pai. Os meus pais não queriam que eu escrevesse. Portanto eu tinha que escrever em folhas pequenas: tinha o livro de Geografia ou de História posto por baixo, ouvia os passos deles e trocava a ordem. Ainda hoje escrevo com um livro aberto. Está aí. Para os adultos eu era um factor de inquietação permanente. Os meus irmãos eram bons alunos, eu era o mau aluno. A minha mãe conta que foi pedir aos professores do liceu que me sentassem à frente porque eu estava sentado ao contrário nas carteiras. Ela dizia: "Tiras o curso, sempre te deixo com uma enxada". Eu compreendo. Um escritor, um compositor, um fotógrafo que não tenha talento, a partir dos 40 começa a ficar muito amargo. Já reparou na quantidade de bares cheios de escritores que não escrevem, de pintores que não pintam? Penso que eles, à maneira deles, estavam a tentar proteger-me.
P - Entretanto passaram cinquenta e tal anos. Já se inventou o fax, o computador, e até agora há o telemóvel.
R - Telemóvel não posso ter. Interfere com o campo eléctrico [do aparelho auditivo que é obrigado a usar]. Mas por exemplo, eu não sei pôr a funcionar um DVD. Nunca abri um computador na vida. Mas eu gosto deste contacto físico, gosto de desenhar as letras.
P - Desenhar? Quase não se vêem. São microscópicas.
R - Então não se vêem? Às vezes ofereço uns capítulos aos amigos. Olhe, ao Júlio Pomar, fui lá a casa e ele tinha aquilo encaixilhado, outros põem nas paredes. E realmente assim até é bonito.
P - Pois, mais como um quadro.
R - E nós a chamarmos romances a estes quadros...
P - Estávamos a falar do arranque do seu trabalho literário, com a "Memória de Elefante". Houve outros livros antes, mas fê-los desaparecer.
R - Sim, houve vários romances antes. Com esse, achei, prematuramente, que podia publicar.
P - Prematuramente?
R - Agora acho bem, mas mais tarde achava que devia ter esperado mais tempo. Não ter pressa. Que só devia ter começado a publicar a partir de "O Manual dos Inquisidores" [1996]. Eu era muito consciente de que o que fazia era muito mau. Mas também de que se trabalhasse muito, faria coisas que mais ninguém faria.
P - É aí que os entrevistadores costumam introduzir a questão da vaidade, a que responde que não é vaidoso. Mas com uma grande vaidade.
R - Vaidade? Estou a ser sincero. O Adelino não encontra quem escreva como eu. Agora dizem todos isso. Naquela altura era eu sozinho a dizer para mim mesmo. E com vontade de dizer "não, porque eu só faço porcaria". Na minha geração, eu lembro-me de sair "A Paixão", de Almeida Faria [1965] e eu com 19 anos a pensar "nunca chegarei aos calcanhares deste homem'; ou os poemas da Luíza Neto Jorge; ou os poemas do Gastão Cruz, sei lá, tanta gente publicava, e todos eles eram melhores do que eu.
P - Depois houve um dia que descobriu...
R - Qual quê? Depois foi trabalhar, trabalhar, trabalhar. Porque para mim a coisa era clara: eu não tenho nenhum dom natural, mas não posso fazer a minha vida sem isto. Também não tinha vivido [ainda, naquela altura]. Tinha a sensação de ter muitos quartos, mas que só vivia em dois deles, não abrira as outras portas e janelas.
P - Há muitas portas e janelas ainda para abrir?
R - Espero bem que sim. Cada livro é mais um. Embora um livro nunca esteja acabado. Escreve-se um para corrigir o anterior.
P - Qual foi o melhor livro que escreveu?
R - Não sei dizer. Julgo que têm vindo a ser progressivamente - melhores é uma palavra que não quero usar - mais conformes à ideia que eu faço do que deve ser um livro.
P - O último normalmente fica mais perto?
R - É o mais parecido com aquilo que eu acho que deve ser um livro.
P - E o pior? [Por esta ordem de ideias] Foi o primeiro?
R - Folheei-os, agora, por causa destas edições "ne varietur" [por uma equipa coordenada por Alzira Seixo, que estabelece ou fixa o texto definitivo das primeiras edições e das reedições] e fiquei surpreendido. São os livros de um outro. O rapaz que escreveu aqueles livros não existe. É um antepassado meu. Olho para ele como para outra pessoa: as ideias, os sentimentos, as emoções dele escapam-me, muitas delas. Estão cheios de força e essa força surpreendeu-me, no caso da "Memória de Elefante". Mas depois comecei a perceber por que é que os editores o recusaram. Andava o pobre do Daniel Sampaio a levá-lo aos editores. Aquilo era muito estranho na época. Mas pensei, ao mesmo tempo que, se eu fosse editor, publicava, porque pensaria: 'Isto tem tanta força que se calhar ele vem a fazer coisas de jeito'...
P - Há uma coerência interna na sua obra?
R - Há, "malgré moi". Eu só há pouco tempo é que deixei traduzir a "Memória de Elefante". Achava que me desfigurava.
P - Mas não "Os Cus de Judas".
R - Com esse passou-se o mesmo que em Portugal. Ninguém queria os meus livros lá fora. E então o editor começou a oferecer "Os Cus de Judas" porque falava de guerra. Foi, em geral, o primeiro livro a ser traduzido. Mas o livro que me escancarou as portas foi o "Fado Alexandrino" [1983]. Encheu as páginas dos jornais franceses, teve uma crítica extraordinária de Jean Clémentin do "Canard Enchainé". É curioso, a própria "Memória de Elefante": acaba de ser traduzida na Alemanha, era o único que faltava. A crítica foi extraordinária. Para grande espanto meu.
Dos sonhos de glória e da embriaguês do sucesso ao medo de "não conseguir", com breve passagem por Saramago
P - Estes 25 anos ficaram aquém, atingiram, ou ultrapassaram os seus melhores sonhos?
R - Eu nunca tive sonhos de glória nem de reconhecimento. Aos 14 anos tinha. Mandam-me muitos manuscritos. O que é que esperam? Que eu os leia à segunda-feira, que lhes diga que são bestiais à terça, que na quarta sejam publicados e na quinta tenham reconhecimento universal. Escrever não é isto. Mas o que me aconteceu ultrapassou aquilo que podia imaginar. Quando saiu o primeiro livro eu era um inocente: não conhecia um único escritor, não sabia como é que uma editora funcionava, sabia lá o que era um agente. Caio de pára-quedas aos 36 anos num mundo que me era completamente desconhecido. Quando o livro saiu eu fui de férias. Quando voltei (já estava a escrever o terceiro livro) era famoso. O livro estava em todo o lado, vendia imenso, fizeram-se várias edições, e eu ia à noite - tinha vergonha de ir durante o dia - espreitar as montras da Baixa e ver o meu nome impresso. Só o tinha visto nas pautas.
P - Ultrapassou os sonhos, diz. Mas a ideia com que se fica logo nas suas primeiras entrevistas é que chegou com uma enorme arrogância. Sabe que é já, ou pelo menos que está escrito já nas estrelas, que vai ser um grande escritor.
R - Achava-me investido de uma grande autoridade. Achava que ia ou que estava a renovar a arte do romance. E então, embriagado pelo sucesso, comecei desajeitadamente e de uma maneira injusta, a ser arrogante e violento para pessoas que não o mereciam. Inclusivé para pessoas de quem depois me tornei muito amigo, como o Zé [Cardoso Pires]. A literatura não existia, começava comigo. Há maneiras mais delicadas de se pensar isso [ri]. Tinha necessidade de o dizer - 'Vejam, vejam, vejam!' -, como o menino que achou a bola.
P - Dos seus ódios de estimação só resta [José] Saramago?
R - Não quero nem tenho tempo para odiar seja quem for. Não tem que ver com isso. Tem que ver com o facto de ser tudo uma floresta de enganos. E me parecer... Ó Adelino, ainda é muito cedo para a gente avaliar o que eu estou a fazer.
P - Do seu lado já avaliou. Até diz e repete: "Ninguém escreve como eu."
R - Isso é outra coisa.
P - Até pode ser ambíguo e querer dizer simplesmente: "Tenho o meu estilo".
R - Estou mesmo convencido da qualidade dos livros. O meu problema agora, o que me assusta mais, é se desiludo as pessoas que puseram em mim uma fé que eu não partilhava - o Thomas [Colchie], o agente, e mais outras pessoas que acreditavam firmemente que aquelas merdas iam fazer livros. Foram muito importantes para mim essas pessoas. Deram-me muito alento nos momentos de desânimo que são muito grandes.
Da democracia, das classes altas e respectivos caseiros, e da dor "de ver o povo a viver a assim"
P - Sente-se refém das expectativas criadas nas pessoas que admira e também no leitor, de quem eventualmente tem uma imagem?
R - É curioso: só tenho [a imagem dos leitores] da Feira do Livro. No estrangeiro, por exemplo na Alemanha, quando vou lá, é um teatro e são mil e tal pessoas. E as pessoas pagam para entrar. Na Feira é que vejo as pessoas. Mas não há muito tempo, porque os de trás já estão a protestar.
P - De qualquer maneira, deve ter a ideia do tipo de leitor. A escrita vai dirigida a alguém? Quando está a escrever o livro está a fazer isso?
R - Não, quem escreve está a desembaraçar-se. Está a desembaraçar-se de uma coisa.
P - [Se assim fosse] Isso é atirar à sorte pela janela.
R - É atirar à sorte mas atirar bem. Deixar tudo muito bem dobradinho. Não é atirar a roupa para o chão. E então começa a ter pressa de se livrar daquilo. E também está a lutar contra o tempo. Quanto tempo mais é que eu vou ter? Quantos livros mais é que eu vou conseguir? Será que eu vou conseguir escrever mais algum? Isto é constante, constante, constante.
P - Está-me a dizer algo que é o contrário do que tem dito sobre a relação exclusiva que se estabelece entre o leitor e o livro. Agora o que diz é que não escreve para mim. Por mais que eu sinta que aquele livro foi escrito para mim?
R - Se eu piscar o olho ao leitor o livro é mau. Seria uma solução óbvia. Eu não gosto de mulheres óbvias. Nisso o Hitchcock tinha razão quando dizia que as mulheres mais ardentes (julgo que estava a falar em termos cinematográficos) são aquelas que têm uma aparência física distante e que se vestem de uma maneira muito púdica. Basta reparar nos estereótipos femininos que aquele homem foi usando ao longo da obra dele. Os meus leitores quem são? Olhe, adolescentes. Já tenho contado aquela história do pai de 40 e tal anos que me aparece com o "Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura" [2000], que foi talvez o livro mais complexo que eu escrevi, era acerca de uma agonia e de uma morte que eu estava a viver. Levava a filha, Joana, e disse que não percebia nada dos meus livros, o que é uma coisa que me surpreende. Perguntei-lhe a ela se achava os meus livros difíceis e ela olhou-me como para um homem do Neandertal. Os meus leitores são gente nova, gente com pouco dinheiro, da classe média, que é aquela que é mais penalizada por aquilo a que se chama democracia.
P - "A que se chama democracia"?
R - A gente não vive em democracia, como é evidente. Não vive. Há algumas quase democracias - a Holanda, a Bélgica, a Suíça [com] aquele arranjo [federal] complicado. A democracia implicava um constante referendar pelo povo das decisões do poder. Não existe.
P - O povo se calhar cansava-se. Em 75, quando estava tudo a ser posto em causa todos os dias, as pessoas cansaram-se, estar todos os dias a votar...
R - ...as pessoas tinham medo, estavam apavoradas. Lembro-me do senhor José, que era o caseiro do meu avô dizer: "É preciso que venham os franceses tomar conta da gente".
P - Significa que aquilo que estava a apontar como o ideal da democracia é qualquer coisa que as pessoas se calhar não querem.
R - Eu acho que querem, mas também não têm oportunidade. O que é que lhes resta? Votar de quatro em quatro anos?
P - Pois, mas quando podiam votar todos os dias, de braço no ar, não quiseram.
R - Votar de braço no ar não é democrático. Isso não é democracia.
P - O que é então a democracia para si? Em que sociedade gostava de vier?
R - Paradoxalmente, eu vivo muito fechado. Não gosto de ver o meu povo a viver assim. Dói-me. Dói-me chegar à Feira do Livro e a pessoa dizer: "Só posso comprar um livro". E então eu peço ao meu editor para oferecer o livro. E deixam-me dar aos mais novos, que não têm dinheiro, e a pessoas que se nota pelas roupas que não têm muitas posses. Eles querem comprar livros e não podem. Ganham pouco, vivem longe, porque é mais barato. No Cacém por exemplo. Oito horas de trabalho, não sei quantas de transportes públicos, chegam a casa, o marido, a mulher, os filhos, telefone, televisão. São pessoas que estão a gastar o dinheiro e o tempo delas, que é muito pouco, para me lerem, tenho que me sentir grato. Uma vez um homem estendeu-me um livro: "Assine, porque sou o seu patrão". E tinha toda a razão. Essas pessoas permitem que eu viva dos livros. Tenho que as respeitar. São tão calorosas. Bem, às vezes, por causa de "Os Cus de Judas" tive uma série de problemas. E do Tratado [das Paixões da Alma, 1990]. Até com "As Naus" [1988]. Aí a direita acusava-me de dizer mal dos grandes vultos nacionais; a esquerda de dizer mal das grandes conquistas da Revolução. Os meus primeiros livros - achava graça - provocavam reacções emotivas extremadas. Chegou a haver tentativas de agressão física. Julgo que por falarem de uma realidade imediata. Foram precisos anos para fazer esta grande unanimidade. Que veio do estrangeiro, não nasceu cá.
P - Como é que explica que o mesmo livro entusiasme o homem que vive no Cacém e uma mulher que vive na Suécia ou nos EUA? Quando de resto os seus temas são a Brandoa, o cachucho, o naperon....
R - Serão? O que eu tenho tentado é mostrar todas as classes sociais, todas as formas de viver. O "Auto dos Danados", por exemplo, é claramente sobre as classes altas.
P - Estão sempre lá os caseiros...
P - Estão. Porque eles existem. Como dizia o Balzac é preciso ter escavado à vida social para ser um escritor, porque o romance é a história privada das nações. O que eu tento é que apareçam pessoas de todas as classes sociais. E isso acontece naturalmente. Mas essas classes [mais baixas] são mais importantes para mim. Sabe, a frase mais importante que eu ouvi na minha vida foi na Faculdade de Medicina, numa aula de Neurologia com o professor Miller Guerra. A doente era uma senhora com Parkinson, com dificuldade em mover-se. "Como é que a senhora consegue fazer a lida da casa?", perguntou-lhe o professor. "É tudo a poder de lágrimas e ais". Eu tinha 20 anos e nunca mais esqueci. Se eu pudesse escrever assim!... As grandes lições da minha vida não foram dadas pelas pessoas do meio onde nasci. Foram-me dadas pelas pessoas que vivam a poder de lágrimas e de ais. Quando estava no hospital, dava-me muito melhor com os serventes, os operários. Julgo que herdei isto do meu pai. Porque os admirava, porque os respeitava. E tenho muitos amigos assim. Se tenho um problema no carro, num cano, ou não sei quê, tenho logo amigos que vêm.
O pé do Zé Francisco, a revisitação da infância na Beira Alta, a noite a transformar-se em manhã, ou de como o autor se vê, apaziguado, entre instâncias que lhe escapam
P - Continua a ir ao hospital?
R - Acabou agora. Até há pouco tempo ia. Afectivamente estava muito ligado. Ia lá desde pequeno, com o meu pai. Em miúdo tinha muito medo daquelas pessoas. Depois comecei a gostar muito delas. Em nome de quê eles estavam ali, comecei a perguntar? E encontrava pessoas de uma riqueza extraordinária. Aprendi muito da vida com as pessoas que encontrei ali. Outro dia, uma senhora alentejana estava a queixar-se, com muitas dores. A expressão dela: "Tantas fezes, tantas fezes..." A capacidade evocativa disto! Ao passo que eu ouço as pessoas que entram na Quinta das Celebridades (já espreitei, como é evidente, como toda a gente), não me interessam nada. Agora esta gente é rica. Fala por vezes um português arcaico. Há certas regiões de Trás-os-Montes onde as pessoas me tratam por vós. "Onde ides?" Era esse o meu país, percebe?
P - Anda [por ele] à procura de inspiração?
R - Não, não. Tomara que não viesse tanta. Agora tenho voltado ao sítio da minha infância, na Beira Alta. Está lá, passa um estranho por si e diz "Bom dia". Aquilo é natural São fidalgos. São fidalgos.
P - Voltando às musas, à inspiração: nos seus livros encontra-se Angola, a família nesse conceito muito vasto que vai dos pais aos caseiros, e um pouco a medicina. Esta não foi um campo onde ia beber inspiração?
R - O que é que guardo mais? O que me apareceu logo foi um pé. Quando eu era estagiário fui colocado no serviço de pediatria (três meses de internato. Escrevi sobre isto uma crónica). Miúdos de três, quatro anos, com cancros, com leucémias, com coisas nos rins. Afeiçoei-me a um miúdo chamado Zé Francisco. Era tão bonito, o miúdo. E o Zé Francisco morreu. Tão alegre. Quando morre uma pessoa no hospital, vêm dois maqueiros com uma maca tapada com um lençol. Ele tinha quatro anos. Veio só um homem, embrulhou-o no lençol e levou-o ao colo. Eu estava entreportas e via o homem a afastar-se com o Zé Francisco embrulhado. Não via o Zé Francisco, o homem estava de costas, mas do lençol saía um pé, e o pé balouçava. Isto ainda hoje me comove. Às vezes penso que escrevo para o pé do Zé Francisco. Há uma história que o meu irmão João [Lobo Antunes, neurologista] me contou, quando era estagiário. Sobre uma miúda de 14 anos que tinha uma leucémia, não sabia que a tinha, foi ao gabinete de enfermagem, abriu o processo dela e viu lá: leucémia. O João contava como a cara da miúda se transformou. Os hospitais para mim eram sempre um sítio donde saía...Era ali que estava o... É nessa região que tenho que escrever.
P - Já não vai voltar lá?
R - Agora acho que a minha obrigação é escrever para eles. Por eles. A gente também deve escrever pelas pessoas que não têm voz. Quem é que liga aos camponeses lá da minha Beira Alta? Quem? E eles dizem-me: "Escreva sobre nós".
P - Pode saber-se sobre que é esse livro que está agora a escrever?
R - Estou a lembrar-me de Dom Francisco Manuel de Melo, de quem gosto muito, que dizia num prefácio: "O livro trata do que vai escrito dentro." Não sei sobre que é que é. Não sei.
P - Já começou, e ainda não sabe?
R - Ainda me falta bastante. Espero acabar a primeira versão em Fevereiro, Março, para depois começar a trabalhar.
P - Já vai nuns capítulos lá para a frente, não é?
R - É isso que se passa em Évora, não sei porque carga de água.
P - Então não é em Nelas?
R - Não, é em Évora. É um homem, duas mulheres. A ideia era esta: como a noite se transforma em manhã.
P - Uma coisa que acontece desde o princípio...
R - Exactamente. Como a noite se transforma em manhã dentro de duas ou três pessoas, que no fundo são representantes de toda a gente. Um homem, duas mulheres. Como a noite se transforma em manhã, dentro deles.
P - Um livro como este último ["Eu Hei-de Amar Uma Pedra"] em que não vai aparecer o mundo exterior - não vai aparecer o Bush, não vai aparecer o Arafat, Santana Lopes, a Casa Pia, nada do que está aqui à volta?
R - Mas isso não são coisas importantes. O que eu queria era que aparecesse a vida toda. Descobri agora que o homem tinha pertencido à polícia política [Pide, extinta em 25 de Abril de 1974]. Não quero entrar muito, porque é meio nebuloso ainda, e depois porque uma vez parti para um livro ["Boa Tarde às Coisas Aqui em Baixo", 2003], passado em Angola, pensando que ia falar em seitas religiosas mas foi tudo subvertido e acabou em diamantes, tráficos...
P - Ainda não consegui saber é quem é que é esse seu co-autor?
R - Como? Exactamente. Aconteceu-me uma coisa parecida com o "Manual dos Inquisidores", que é um livro de que algumas pessoas gostam muito... Eu gosto mais dos últimos. Bom. Eu queria que a amante do velho [personagem central do Manual dos Inquisidores] fosse um travesti. E o livro rejeitava-me o travesti. Depois foi recuperado [em "Que Farei Quando Tudo Arde?" 2001]. Eu gosto desse livro. O que me deu mais trabalho talvez tenha sido "Não Entres Tão Depressa Nessa Noite Escura [2000]. Dão todos. Eu estava a ver estas anotações à margem [no manuscrito do próximo livro] e a pensar: "Não vou ser capaz, não vou ser capaz, não vou ser capaz". Eu julgo que...eu julgo... Acho que já podia morrer.
P - Sente-se feliz, portanto, com o que fez?
R - Sinto. Sinto-me em paz comigo. Fiz o melhor que pude. Trabalhei muito e fiz o melhor que pude. Se não fiz melhor foi porque não fui capaz. Isto parece a linguagem de um futebolista no fim de um jogo. Mas fiz o melhor que pude. Se os livros não são melhores a culpa é minha.
P - E fez isso para quem? Se não pensou no seu leitor...
R - Há uns tempos estava a falar sobre isso com o Eduardo Lourenço. Ele gosta muito do [Fernando] Pessoa. Dizia-me ele : "Fazes-me lembrar aquele soneto do Pessoa
Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além
É como se uma pessoa fosse um medium, entre duas instâncias que lhe escapam. A gente não sabe bem donde é que vêm as coisas. De que região nossa, de que parte nossa. E isso impede-lhe a vaidade, porque o seu único mérito é o de trabalhar e receber. Temos que ser orgulhosos, mas bolas, há dois sentimentos que cada vez me são mais incompreensíveis: a vaidade e a inveja.
De quando Deus faz pessoas à medida dele...
P - Cá de fora vejo-o vaidoso. Como constatação sua de capacidades, talvez.
R - Fazer uma constatação de capacidades não é estar a ser vaidoso, mas realista. A vaidade implica um hipervalorizar coisas nossas. A vaidade implica uma sensação de superioridade sobre os outros, que não se tem direito de ter. Porque depois aparece uma pessoa que faz tudo a poder de lágrimas e ais e o Adelino não é capaz de o fazer. E que lhe dá uma lição de humanidade incrível. A pessoa mais luminosa e inteligente que encontrei na minha vida foi há muitos anos numa consulta no hospital Miguel Bombarda - uma rapariga com uma depressão. Era criada de servir. Uma capacidade de"insight", uma capacidade de inteligência abstracta, de associar tempos da vida dela, espantosa. E reduzida miseravelmente à condição de serva. E ela não tinha consciência disto. Depois teve um cancro. Da mama. Não o tratou a tempo. Já só me aparecia porque eu gostava de conversar com ela. Com o marido, [que tinha] um emprego muito modesto. Com uma cabeleira postiça. Com 42 anos, morreu ela. "Gostava de viver mais uns anos..." Parecia que saía luz daquela mulher. E o Adelino saía dali, mesmo que ela não falasse, com a sensação de que de vez em quando Deus faz pessoas à medida dele.
...à história do filho do soldado Schutte
P - Vai querer que a literatura o recorde como quê?
R - Vai-me ser igual - porque tenho a boca cheia de terra, não é? - que me ponham nos Jerónimos ou que me deixem na vala comum. Aqui há tempos tive um sonho. Era um pesadelo horrível. Tinha morrido há 20 ou 30 anos, e as pessoas estavam a discutir os livros. E eu queria voltar porque não era nada daquilo. Não imagina como foi desconfortável. Só para explicar: "Não é, não é!"
Logo [na sessão no S. Luís] vão falar duas pessoas luminosas. Uma que é o Wolfram Schütte e a outra o Matts Gellerfelt, sueco. O primeiro foi jornalista do Frankfurter Rundschau durante muitos anos. Coxeia um pouco. É muito parecido com o Sean Connnery, da mesma idade. Quando comecei a conhecer melhor a Alemanha, soube que o pai da minha tradutora tinha sido morto na guerra, que o sogro tinha sido morto na guerra, por aí fora. As pessoas, aquelas que têm agora 60 anos, não falam do que sofreram. O pai do Schütte foi morto e ele ficou sozinho com a mãe. Um dia, quando já tinha mais intimidade com ele, perguntei-lhe que doença tinha, assim a coxear. Ele contou, como se fosse uma coisa banal, sem nenhuma emoção aparente: os miúdos como ele, com seis anos, iam roubar carvão para aquecer a casa. Os soldados americanos tinham posto o carvão todo no mesmo sítio. Os miúdos iam buscar o carvão e os soldados atiravam sobre eles como apostas: "Vinte dólares a quem acertar naquele!" Ele coxeia porque tem uma bala na perna. Na altura não havia médicos nem nada, a Alemanha estava arrasada. Havia viúvas, e havia filhos de mortos. Contou isto sem azedume. O Malaparte não conta coisas diferentes, sobre o fim da guerra em Itália. Adelino, eu sse fosse iraquiano... Eu não consigo condená-los. Não consigo. Se isto se passasse na minha terra? Agora a gente olha para trás e pergunta: "O que é que eu fiz em África?" Se fosse aqui, nós estávamos na guerrilha. A minha filha mais velha foi ao Iraque, numa missão humanitária. Os americanos tiraram-lhe o telemóvel. Deram-lhe um telemóvel americano. E então ela falava numa linguagem alusiva: "Então como é que estás, filha? - Ai, está muito bom o clima, há muitas pessoas deitadas na areia a apanhar sol". Isto, para além da minha incompreensão da injustiça do sofrimento. A semana passada morreu um amigo meu que há 30 anos lutava com uma doença crónica horrível, com uma dignidade e uma coragem exemplares. "Como é que estás, Zé?" "Estou bem". Nós somos isto, nós pessoas anónimas...
Onde se fala da morte, de Deus ("do horrível" e do que "chora"), dos mouros de Lisboa, de Israel, e dos países que não têm homens à frente deles
P - A inevitabilidade da morte é algo que lhe arranha o dia a dia?
R - (longo silêncio) A morte das pessoas de quem gostei foi muito difícil para mim. O meu avô morreu quando eu tinha 18 anos e ainda me dói. Beijo o retrato dele às vezes. Chega uma altura em que a gente tem a sensação de ter mais mortos do que glóbulos no sangue, em que já nos tiraram quase tudo. Sempre achei a morte misericordiosa. Vi morrer muita gente, por razões profissionais. E nunca vi ninguém morrer agitado. Não sei o que é morrer.
P - Há pouco disse que não lhe interessa nada depois, porque vai ter a boca cheia de terra. Não tem lá no fundo do fundo nenhuma dúvida de que possa não ser assim?
R - Há um provérbio húngaro do século XVIII que diz: na cova do mundo não há ateus. O meu pai, que era um anátomo-patologista, argumentava que o nada não existe na natureza, tem que haver qualquer coisa. Mas o que me começou a surpreender mais aí pelos 20 e tal anos foi quando comecei a ler os escritos dos físicos - Max Planck, Einstein, etc...- foi que eles eram homens profundamente crentes. E que tinham chegado aí através da matemática e da física.
P - E isso fê-lo a si chegar a Deus?
R - O problema é que me impingiram um Deus horrível. "Não comes a sopa, o Menino Jesus vai chorar". Este deus horrível, que mandava castigos e que matava primogénitos, era um ser, uma entidade horrível.
P - Mas pode mudar de deus. Hoje é muito fácil, com a globalização. Em Hollywood estão a aderir todos ao budismo.
R - Eu agora ando muito atraído pela teologia da angústia que levou todos esses teólogos aos campos de concentração. Outra dia a minha tradutora sueca, a propósito da doença de uma pessoa muito amiga, dizia: "Deus está a chorar" Para ela, Deus é uma entidade que sofre, a braços com uma criação que muitas vezes o excede. Eu julgo que Deus está presente em todos nós. Nunca vi ninguém morrer e chamar pelo pai. Chamavam pela mãe ou por Deus.
P - Quer dizer que, em tese, começa a acreditar que, no tal sonho que teve, um dia vai poder intervir na discussão sobre o seu livro...
R - (gargalhadas prolongadas). Não, eu julgo que isso tem a ver com o meu receio de não ser entendido.
P - Será aliás extraordinário é o livro que vai escrever depois disto tudo. Isto é, no outro estádio.
P - Eu gosto muito do Corão. Na sua generosidade, na sua humanidade, é superior ao Antigo Testamento. Quando D. Afonso Henriques tomou Lisboa, havia aqui um bispo. Repare a tolerância religiosa deles. Eles não matavam prisioneiros. Nós é que matávamos todos. Agora deram-me o "Prémio Jerusalém". Foram muito correctos, disseram-me: Você diz o que quiser".
P - O que é que disse?
R - Que normalmente quando me convidam para casa de alguém não digo que os cortinados são de mau gosto... Estive com o [escritor israelita] Amos Oz, de quem gosto muito. Ele defende abertamente um estado palestiniano.
P - Ele e uma parte da inteligência israelita.
R - Fiquei surprendido com a lista dos premiados [ao longo dos anos]: Bertrand Russel, Graham Greene, e por aí fora. O Amos Oz contou-me uma história extraordinária. Quando ele foi para Israel, no princípio, o presidente vivia em dois quartos, pequenos, com um soldado à porta. O oficial de ronda achou que o soldado estava muito gordo e esquisito. Aproximou-se e era o presidente que estava de farda e de espingarda. "O rapaz tinha a mãe doente....", explicou ele. Agora imagine o primeiro-ministro a vestir-se de contínuo. O nosso. Pois é, é que há países que têm homens à frente deles. Concorde-se ou não com eles, a gente não pode deixar de respeitar um Olof Palme, um Willy Brandt, um Heinrich Böll.
Histórias de quando Lisboa votava contra o autor, elogio de Cavaco, e a cereja do Nobel
P - Iniciei esta entrevista notando que neste seu último livro não havia nada à volta. E depois tinha vontade de lhe perguntar, mas a conversa nunca mais deixou, se para si também não há nada à volta. Vemos esta garagem, é aqui que escreve, não sei quantas horas por dia.
R - Nenhum deste objectos é meu. Eu posso pegar numa mala, agarrar nos livros que são meus, nos quadros do Pomar, que ele me dá, e partir.
P - Sabemos pelas entrevistas que dá que vai pouco ao teatro, pouco ao cinema, não gosta de ir a bares...
R - ...não bebo...
P - ...Mas está atento aquilo que se passa, vê televisão?
R - Pouco. Vejo teletexto. Gosto de ler alguns jornalistas. Às vezes pergunto-me que liberdade têm os jornalistas. Se esta discussão que há agora [sobre pressões dos poderes político e económico] não houve desde sempre. A sensação que tenho do que conheço de si, por exemplo, é que deve ter tido graves problemas ao longo da sua vida.
P- Isso não vem agora ao caso, podemos conversar em "off".
R - É que um livro não é completamente inócuo. Quando aqui há uns anos se começou a falar em mim para o Prémio Nobel - tenho aí fotocópias - havia documentos de departamentos portugueses que diziam mais ou menos que esse homem ofendia o seu país através dos seus livros.
P - Em Portugal? Em que década? Anos 90? Tempo do cavaquismo?
R - Presumo que não tinha que ver com o primeiro-ministro. O dramático, aliás, é a gente olhar para trás e pensarmos: qual foi o melhor primeiro-ministro depois do 25 de Abril? Eu sou de esquerda. Mas acho que foi o Cavaco Silva. Tenho muita pena de o dizer. Por todos os defeitos que o homem possa ter, esta é a verdade. O que se tem passado nestes últimos anos é profundamente indignante.
P - Mas essa informação sobre uma censura do Estado à atribuição do prémio, nunca ouvi falar dela. Quem escreveu a carta: o Ministério da Cultura, alguém importante?
R - Não digo. Não sei porquê, mas eu era uma figura incómoda.
Mas vou dar-lhe outro exemplo: o júri de um prémio europeu importante, de tradução, queira dar o prémio à minha tradutora alemã. A representante portuguesa no júri, do Instituto do Livro, diz: não pode ser porque esse escritor é "overestimated abroad". Pergunte logo ao Wolfram, porque ele estava no júri e ficou indignado. Acho que ela ganhou o prémio na mesma, porque os outros membros do júri votaram nela.
P - Mas o António Lobo Antunes é hoje um consenso nacional.
R - Agora sim. Tão curioso que isso é. Mas vem de fora para dentro. Mas eu queria que ficasse claro que eu estou muito grato ao meu país. Não tenho nenhum sentimento de amargura.
P - Está-se sempre a perguntar-lhe isso, mas eu gostava de ouvir a sua palavra definitiva: é-lhe indiferente o Prémio Nobel, ou, como seria humano, gostava dessa cereja no bolo?
R - Quer que eu seja sincero ou quer uma resposta de entrevistado? Claro que me dava prazer. Dá prazer a qualquer pessoa. Mas depois posso defender-me pensando: o Tolstoi nunca o ganhou. A lista não é boa. A lista não é boa. Agora é evidente que gostava.
Celebrar com Charlie Parker e acabar como Tolstoi
P - Como vê este sarau de logo à noite?
R - Os livros permitiram-me conhecer pessoas melhores do que nós. Que têm um calibre humano que eu não tenho. Muitos vão estar logo à noite no São Luís. Eu se tivesse sido baleado por um soldado aos seis anos andava com esse ódio dentro de mim toda a vida.
P - Se pudesse escolher os convidados desta noite da homenagem, quem gostava de ver l?
R - Charlie Parker. Alguns músicos de jazz. A gente aprende a frasear com eles. John Lester. Johnny Rodgers. Thelonious Monk. Gostava de ouvi-los a tocar. Não sei se gostaria de falar com eles. Eu tenho muito medo, sabe. A gente mitifica as pessoas. Lembro-me de ter ido ter com um escritor que me convidou para almoçar. Eu disse "Bom dia", ele disse "Bom dia", e fiquei logo desiludido. A gente espera que um escritor diga sempre coisas inteligentes e é muito raro aparecer um Oscar Wilde; um Churchill a quem perguntam aos 80 anos a que é que atribui o segredo da longevidade e ele - "A ginástica, que nunca pratiquei"; um De Gaulle que confrontado com as reivindicações dos operários de uma fábrica de chocolates que visitava diz - "Ora deixa tomar nota aqui na minha tablette"...
P - Como vão ser os próximos 25 anos da sua carreira?
R - Os próximos 25 anos? Espero não ter o mau gosto de viver mais 25 anos.
P - Que marca quer ainda pôr nos seus trabalhos?
R - Queria escrever mais livros. Ultimamente quando vou a estes prémios fico muito agradado: têm a nossa bandeira. Na Áustria os emigrantes portugueses choravam porque havia a nossa bandeira na chancelaria. Choravam com lágrimas. Se a gente puder deixar qualquer coisa que no meio do sofrimento abra uma janela qualquer, já me chegava.
P - Anda com frases na cabeça?
R - A princípio sim, agora já não Às vezes aparece, à noite. 'Amanhã lembro-me.' Claro que não me lembro.
P - Numa entrevista dada no lançamento do penúltimo livro, dizia que iria escrever mais dois ou três livros. Do que disse nesta, fiquei com a ideia que gostaria de escrever até ao fim.
R - Às vezes digo não importa o quê para me deixarem em paz.
P - Já percebi. Estou a aborrecê-lo..
R - Não, não está nada. É que qualquer entrevista é muito inferior a um livro. O livro permite corrigir-se. A entrevista necessariamente está cheia de lugares comuns. Uma vez um admirador da Sarah Bernhardt todo contente disse: "Ah! É V. Excelência Sarah Bernardht?" E a resposta dela foi: "Serei esta noite." O António Lobo Antunes só existe depois dos livros feitos.
P - Então pronto. Peço-lhe desculpa destas três horas que lhe retirei ao seu livro. Hoje já tinha escrito quanto?
R - Quatro ou cinco horas.
P - Em páginas isso traduz-se em quanto? Aquelas duas que vejo ali?
R - Hoje escrevi muito pouco. [Pega numa das folhas, mede-a]. Um dedo. Em quatro horas escrevi um dedo.
P - Espero que agora corra melhor.
R - Eu só espero...sabe, chega uma altura em que uma pessoa sem se dar conta, começa... como aconteceu com o Garcia Marquez, com o Faulkner, com o Hemingway...
P - ... espera que aí, se a campainha tocar, pára, é?
R - Eu acho que ela não vai tocar. E provavelmente como os outros, ficarei a fazer...coisas más.
P - Aí, aquele seu agente norte-americano [Thomas Colchie] vai dizer-lhe: "Olha, estás a descer!".
R - Ele é muito cruel. Mas quando se descer, não se sobe mais. O Ingmar Bergman falava longamente sobre isso. Não estou muito de acordo, mas ele dizia que notava com a idade que o instinto sexual e a capacidade criativa iam desaparecendo a pouco e pouco. No entanto continua a trabalhar imenso.
P - Gostava de poder escrever até ao fim?
R - Gostava que me acontecesse como ao Tolstoi. Naquela gare onde ele morreu, puseram-lhe um lençol por cima. Ele estava deitado e no lençol a mão dele continuava a desenhar as letras. Era assim que eu gostaria de acabar...
P - Obrigado
R - ...se tiver de acabar.