sábado, janeiro 22, 2005

Pensar
Sábado, 22 de Janeiro de 2005


%Eduardo Prado Coelho

O facto de José Gil aparecer (e é perfeitamente merecida esta distinção) entre "25 grandes pensadores do mundo inteiro" num número especial da revista "Le Nouvel Observateur" chamou a atenção para esta publicação. De facto, não é costume dar, com tanto cuidado, com tão boas fotografias, com tanto apuro gráfico, um tal relevo à filosofia. Gosto francês? Requinte de uma cultura com uma forte componente humanística? Sem dúvida. Mas o que este excelente número mostra é que há mais filosofia no mundo, e que em determinados países as polémicas do pensamento são importantes, seguidas com atenção, e têm implicações morais e políticas consideráveis. E podemos observar outra coisa: é que a regra do jogo deste número é precisamente excluir pensadores franceses. Porque doutro modo teríamos a participação de Paul Ricoeur, ou Alain Badiou, ou Jean-Luc Nancy ou Jacques Bouveresse. Ou de outros ainda.

Aliás, este número exclui os chamados filósofos estritamente "profissionais". Todos os convocados - ou quase... - oscilam entre serem filósofos com uma dimensão técnica e intelectuais que intervêm na vida pública. Há casos em que são sobretudo autores literários. Segundo pude deduzir do que li, isto sucede com o russo Vladimir Kantor, que exerce o seu ofício de pensador através sobretudo de novelas e romances, sendo "O Crocodilo" a sua obra mais conhecida. E temos o exemplo de Richard Rorty. Partindo de obras de alta tecnicidade sobre filosofia da linguagem e epistemologia, começou a dialogar com autores continentais, como Derrida, Heidegger, Wittgenstein, e converteu-se numa espécie de ensaísta filosófico, isto é, em algo mais adequado à sua figura de urso cheio de bonomia. Lembro-me de ter assistido em Paris a um debate entre ele e Cornelius Castoriadis. Eram os dois amigos. Mas onde Castoriadis punha convicção e veemência, Rorty aparecia como o verdadeiro "ironista liberal": o que significa que o seu pensamento se move em plena contingência, afirmando que as coisas são de uma certa maneira, mas aceitando que outros digam que são outra coisa.

Rorty começou por se desculpar por chegar atrasado, mas havia nesse dia greves em Paris, e ele dizia que Castoriadis preferia as greves a que ele chegasse a horas... Com frases destas e estrepitosas gargalhadas, Rorty desdramatizava o ambiente e permitia que pensar fosse um jogo aliciante - não fútil, mas leve. No seu livro "Philosophy and Social Hope", opõe a objectividade à solidariedade, dando a esta uma maior importância. As explicações de Rorty são por vezes banalizantes: ele não procura fundamentar os direitos humanos, mas considera que a nossa comunidade pensa (e ele está de acordo) que eles reduzem o sofrimento das pessoas, e essa deve ser a preocupação fundamental. Cada um de nós tem um vocabulário específico com que configura a sua imagem do mundo e pensar é sobretudo encontrar novos vocabulários que permitam inventar outros mundos possíveis: "A filosofia é a tentativa de escapar ao peso do passado - aos vocabulários, às suposições. Às imagens de si do passado. É a tentativa de traçar um círculo mais amplo e de preencher o céu, mesmo esperando que alguém virá traçar em seguida um círculo ainda mais amplo."

Assisti uma vez a um debate em que participava o filósofo analítico Barry Smith, e onde este censurava Jacques Derrida pelo facto de o autor de "De la Grammatologie" se ocupar de obras como a de Jean Genet. Hegel, muito bem, mas Genet nunca. Ora um dos aspectos simpáticos de determinados pensadores americanos é não utilizarem uma versão ortodoxa da filosofia analítica (que muitas vezes se entretém a cortar os cabelos em quatro), mas de ser cada vez mais capaz de se tornar deambulatória (como acontece em Robert Nozick), e de utilizar objectos absolutamente inesperados. É o caso do cinema no trabalho de Stanley Cavell. No livro que trata de "À Procura da Felicidade - Hollywood e a comédia do voltar a casar". Para ele, certas comédias americanas dos anos 30 e 40 são uma espécie de resposta prática ao cepticismo. Onde a tragédia nos diz que a condição humana é a separação, as comédias americanas mostram que é possível passar através da separação e voltar à unidade original: voltar a casar. Donde, a comédia e a tragédia (Cavell tem um livro sobre Shakespeare) funcionam como dois pólos da vida.

Lendo este número sobre os "25 grandes pensadores contemporâneos de todo o mundo", devemos sublinhar que não são "os 25", mas, sim, vinte e cinco entre outros, segundo o princípio da contingência. O que quer dizer que escolheram José Gil, mas poderiam ter escolhido Fernando Gil, que escolheram Agamben mas poderiam ter escolhido Vattimo, que propõem Axel Honneth mas poderíamos ter Jurgen Habermas, e assim por diante. Uns vão mais para o lado social (o que é o caso desse extraordinário pensador da pobreza e da igualdade que é Amartya Sen, Prémio Nobel no ano em Saramago também o foi, ou daquele que é apresentado como "um novo Marx", Toni Negri, embora os seus livros mais conhecido, como "Império" e "Multitude", sejam escritos em colaboração com Michael Hardt). Outros procuram ter em conta a dimensão das emoções no domínio das decisões e do individualismo metodológico (veja-se os estudos, por vezes apoiados na literatura, do norueguês Jon Elster). Outros ainda procuram encontrar linhas intermédias entre o universal e o singular. Uns valorizam a singularidade (como essa estranha personagem, de configuração genial e ao mesmo tempo irritante, que é Slavoj Zizek). Outros procuram extenuá-la até uma dimensão quase branca e nua, falando na "singularidade qualquer", reduzida a quase nada: "Eu nunca sou isto ou aquilo, mas sempre tal, assim. 'Eccum sic': absolutamente. Não posse mas limite. Não pressuposto mas exposição."

Pela minha parte, chamaria a atenção para duas personalidades excepcionais. Por um lado, a americana Martha Nussbaum, que tem notáveis reflexões sobre a dimensão ética da literatura. Admirável conhecedora da literatura grega, utiliza-a como arma nos grandes combates morais dos nossos dias. Por outro lado, um dos pensadores mais originais contemporâneos, capaz de, com um toque de provocação, abrir em cada página uma perspectiva diferente: o alemão Peter Sloterdijk, autor da "Crítica da Razão Cínica".

Gostaria de terminar com uma sugestão. Não seria boa ideia aproveitar a agenda deste número de "Le Nouvel Observateur" e fazer uma colecção com traduções de cada um destes autores (devendo nesse caso acrescentar-se a França)? O gosto enciclopédico dos leitores encontraria certamente um motivo de satisfação e um fio condutor inteligível.

terça-feira, janeiro 18, 2005

a Última Dança
Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2005

%luís miguel oliveira

Em certa medida Bergman não mentiu quando, em 1982, depois de "Fanny e Alexandre", anunciou a sua despedida do cinema. Era ainda um homem novo, tinha 64 anos, e queria dedicar-se ao teatro, primeira paixão. Se voltou a fazer filmes foi para a televisão, entre obras originais e peças de teatro filmado, que não tiveram divulgação em sala ou a tiveram muito restrita. Como "Saraband", cuja exibição em sala de cinema está dependente de condições impostas por Bergman (uma sala capaz de projectar vídeo digital de alta definição, formato original da obra). Mas pouco importa discutir a tecnologia ou o "medium" - o cinema não é um "suporte" nem um enfeite, é um legado, e Bergman até com marionetas faria cinema (aliás, já fez). Portanto, em certa medida, Bergman mentiu: ei-lo mais Bergman do que nunca, depurado (foi preciso escavacar muita pedra para chegar aqui), despojado, nu, cru, essencial. O fim da mascarada.

A propósito de nudez, despojamento, não nos sai da cabeça o mais espantoso campo/contracampo que veremos em 2005. É quando Erland Josephson (na personagem de que se pode dizer ser o "alter ego" de Bergman, mais uma vez), durante uma noite de ansiedade e suores frios, bate à porta do quarto de Liv Ullmann (na personagem de que se pode dizer, mais uma vez, ser o "alter ego" de... Ullmann, tal qual Bergman o projecta) e lhe pede que o deixe dormir com ela. Parece uma noite de tempestade, mesmo que não seja. Ela condescende e ele, um velho meio inclinado e de mão sempre aos tremeliques, despe-se de frente para a câmara; pede-lhe a ela que se dispa e ela fá-lo num plano (o contracampo) em contra-luz que lhe obscurece o corpo e o rosto. Depois podem deitar-se e dormir.

É isto, e mais nada, deixou de haver coisas a atravancar, os corpos estão irreconhecíveis ou invisíveis, o desejo já não é uma questão - trinta e tal anos depois de um padre ter dito a Johan (Josephson) que um casamento precisava de amizade e de "um erotismo inabalável" ("nós éramos bons amigos", comenta ele com Marianne, a personagem de Liv), os dois ex-cônjuges podem voltar a dormir na mesma cama. Se "Saraband" retoma as "Cenas da Vida Conjugal" (obra também para televisão, de 1973, de onde estas duas personagens foram recuperadas) esta cena e estes dois planos são, numa mistura de consolo e pessimismo, a derradeira pedra que Bergman põe no assunto.

A recuperação destas personagens e a citação de "Cenas...", sendo, claro, muito mais do que um "gadget" narrativo, não são o único eixo de "Saraband", e nem sequer são a única remissão directa para o cinema de Bergman (o filme não terminará sem um plano que nos lembra terrivelmente "Persona"). Num certo sentido, Johan e Marianne (ela, sobretudo) não são mais do que espectadores, já não têm muito a esperar. O verdadeiro drama ocorre perto deles, é a história do filho viúvo de Johan (Henrik, interpretado por Borje Ahlstedt) e da filha dele (Karin, uma rapariga de 19 anos, interpretada por Julia Dufvenius). Explicar a história toda seria inútil - contentemo-nos em saber que através dela surgem os mais violentos temas do universo bergmaniano e, neste caso, a suas mais violentas expressões. O que apetece mesmo é continuar a descrever cenas. Como a que sugere (o beijo) o carácter incestuoso do amor de Henrik pela filha, cúmulo de uma dependência psicológica que ele vive no extremo de tudo ("se me deixares, ficarei pobre, ou uma palavra melhor que não existe") e ela numa espécie de ricochete permanente com tudo e com todos. A visita do filho ao pai, no único confronto entre dois homens ao longo de todo o filme, cena de gelar o sangue e onde se diria que Bergman se consagra como "metteur-en-scène" minimalista de olhares e movimentos de músculos faciais, num momento em que o ódio e uma distância irremediável ganham a espessura invisível do ar ("sempre achei que o ódio genuíno devia ser respeitado, e foi o que me limitei a fazer"). E depois o telefonema do hospital a avisar que Henrik se tentou suicidar, os "Jesus, Jesus" de Johan até que, recomposto do choque, atira "foi sempre um falhado, nem de se matar é capaz", depois o filme ter sido rasgado por "paralíticos" do corpo nu e ensanguentado de Henrik.

Em fundo, a omnipresença da morte, ou melhor, de uma morta, Anna, mãe de Karin, "protagonista ausente" cujos retratos assombram toda a gente e todos os lugares. Recordação de um amor - e de um amor de todos, marido, filha, sogro - transformado em maldição: vêm-na como imagem de vida mas não percebem que é apenas a imagem que lhes suga a vida. Menos Karin, em quem todos projectam Anna; Karin dá-lhes a ilusão da regeneração - o confronto fundamental do filme, a luta pela conquista de Karin entre Johan e Henrik (com o episódio esclarecedor da compra do violoncelo), é uma luta pela sobrevivência. A luta dela também: submeter-se, deixar-se fixar, é deixar-se apanhar pela morte. Por isso, é tão esquiva.

Marianne, a espectadora (começa e acaba o filme pondo em ordem a sua colecção de fotografias), pergunta-se no fim se "não terá sido um erro" ir visitar Johan. Mas pode acabar o filme com um sorriso.

Ingmar Bergman
Por HÁ MUITO, muito tempo
Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2005

%Vasco Câmara

"Saraband", em projecção digital, numa sala do complexo Millenium Alvaláxia, em Lisboa. Ingmar Bergman na sala escura de um cinema. Para quem hoje tem menos de 30 anos, eis um ovni, porque Bergman pode ser mesmo objecto não-identificado ou que só foi identificado num ciclo de uma Cinemateca, num Cineclube ou num DVD - em qualquer os casos, com o filtro protector do passado. Já para quem atingiu a idade adulta nos anos 70, "Saraband" atira para um tempo poderosamente sugestivo, mas estranho: um presente que é uma viagem na memória, fantasma - como aqueles fantasmas, é esse o susto, que nos acenam dos filmes dele, Ingmar Bergman: uma coisa viva...

20 anos depois de "Fanny e Alexandre", o último filme do sueco estreado em Portugal - e aquele que ele anunciou como o seu "adeus" ao cinema -, Bergman, 86 anos, faz-se presente com um filme realizado para televisão (como outros "teledramáticos", digamos para simplificar, que realizou nestas duas décadas), em alta definição, e que só "libertou" para as salas de cinema, depois do sucesso que rodeou a sua exibição em festivais, com a condição de elas estarem equipadas com projecção digital em alta definição (em Portugal isso só acontece com o Millenium Alvaláxia).

Os efeitos causados por esta aparição podem ser descritos assim: "Lembram-se da Harriet Andersson no 'Lágrimas e Suspiros' [1972], morta, e a dizer às irmãs 'Vem cá...'? 'Saraband' tem esta dimensão. É um fantasma cinematográfico. À afirmação 'já ninguém filma assim', a resposta do Bergman é 'eu filmo'. É de uma limpidez devastadora".

Quem fala assim é João Lopes, tem 50 anos, foi adolescente no final dos anos 60 e 70, quando se descobriu espectador ("paradoxalmente", porque, apesar da censura, "foram anos de muitas revelações em Portugal"). Mais tarde começou a filtrar de forma pública, como ele diz, as marcas que lhe deixavam os filmes, tornando-se crítico de cinema. É o que faz hoje no "Diário de Notícias".

"Estive há dias a ver 'Da Vida das Marionetas' [1980]. É incrível, é sempre o mesmo filme, histórias de casais, de ansiedade da morte, de religiosidade difusa mas sempre presente. Para além disso os filmes são iguais na construção. É um cinema evidentemente obsessivo. Isso não é exclusivo do Bergman. Também sinto isso no Hitchcock e no Godard. Nas suas 'Histoire(s) du Cinéma', o Godard diz que o Hitchcock sobrepôs à ordem do mundo a sua própria ordem. É assim o Bergman. E há um valor essencial: o Bergman não cede a modas. Mesmo a utilização do digital: ele encara-o como um instrumento como qualquer outro. Os filmes são objecto de cinema independentemente do suporte..."

Um "flashback" na memória deste espectador: "O Bergman sempre foi o modelo do que era um autor de cinema. Quer no pré-25 de Abril quer nos anos 70 um filme do Bergman era um acontecimento. Era como se Mozart tivesse composto mais uma nova sinfonia."

É o mesmo testemunho de Augusto M. Seabra, crítico e colunista do PÚBLICO. Na sua história pessoal, para ele que cresceu no ambiente de uma "família cineclubista", o realizador sueco "foi o primeiro dos autores de cinema", aquele que ele sabia que existia, tal "como Chaplin ou Disney".

"O que me impressionou em 'Saraband'", diz, "foi o trabalho sobre os rostos, coisa que o Bergman vem afirmando desde os anos 50". Logo nos primeiros momentos do filme, plano fixo, actores a falarem frontalmente para a câmara (para o espectador). E a voz (Liv Ullmann), uma língua que não se conhece mas cujas inflexões, ritmo são familiares... a hipnose pode ser posta em marcha assim, por estes estímulos. "Há de facto um lado especular, de câmara de memória, neste filme, com a voz da Liv Ullmann, e ainda por cima ela está a ver fotografias", reconhece.

"Saraband" aparece como "continuação" de "Cenas da Vida Conjugal" [1973, estreado no cinema Londres em 1976], retomando o casal Marianne (Ullmann) e Johan (Erland Josephson), 30 anos depois. O filme começa com Marianne rodeada de fotografias, que vão ser o princípio de uma divagação pela memória e fantasmas de uma família - a família de Johan, o ex-marido, constituída pelo filho dele, Henrik, e pela neta, Karin.

"É aí, de facto, que uma relação se estabelece", continua Seabra. "A fotografia como materialidade de uma memória. E o facto de o filme se chamar 'Saraband' evocou em mim referências, nomeadamente musicais... o facto de se ouvir a 'Sarabanda' da 5ª Suite para Violoncelo de Bach que é a música do 'Lágrimas e Suspiros'. E a voz da Liv Ullmann, e a identificação da língua sueca... É uma câmara de eco das nossas memórias".

flashback. Deixemos que eles nos atordoem com elas. Com as memórias da descoberta da obra de um cineasta que em Portugal foi feita com as "marcas do interdito", como refere João Lopes. "Quase sempre se sabia o que faltava nos filmes censurados. Lembro-me de um deles, o caso do 'Persona'/ 'Máscara' [1966, estreado no cinema Estúdio, em Lisboa, em 1973], a célebre cena em que a Bibi Anderson conta à Liv Ullmann uma orgia. Não estava cortada, mas o diálogo não estava traduzido. Ou o caso do 'Ritual' [1969; Estúdio, 1974, poucos dias antes do 25 de Abil] que era dos mais evidentes: como havia vários nus, havia várias cenas aos saltos".

Jorge Silva Melo, cineasta, encenador, contribui para a evocação. "Ah, sim. Lembro-me de no 'Mónica e o Desejo' [1953; Império, 1964] as legendas não aparecerem durante uma passagem e os actores continuarem a falar de 'elske' e outras coisas que percebíamos ser amor, sexo... Naquela comédia muito engraçada, 'A Força do Sexo Fraco' [1964; Estúdio, 1973], ficavam os actores a falar entre eles e não havia tradução".

São momentos desta relação afectiva, ou passos decisivos para a idade adulta destes espectadores que depois foram críticos: "Lágrimas e Suspiros" [1972; Apolo 70 e Pathé, 1973] e "O Silêncio" [1963; Londres, 1975], no caso de João Lopes. "Por causa da relação com a morte. Sei que os cineastas que me tocam procuram alguma frontalidade com a morte, não apenas no sentido filosófico, mas formal: é possível filmar a morte e sobreviver a isso? 'O Silêncio' porque vivi e cresci num mundo de muito silêncio, em termos familiares e sociais. É um filme sobre isso, sobre a ausência da palavra estar paredes meias com algo de irrecuperável que é a loucura".

Os primeiros Bergman que Seabra viu foram "Paixão" [1969; S. Jorge, 1971] e "A Vergonha" [1968; Estúdio 444, 1971], numa altura em que o realizador já tinha "aura especial" em Portugal. "Lembro-me que os espectadores faziam comentários do género: o filme tinha 'diálogos muito profundos', o que passou ser a ideia mais divulgada sobre o Bergman". Mas "o grande choque" foi 1973, "Lágrimas e Suspiros" e "Persona", que chegaram com semanas de intervalo. "Foi, num caso, a imponência do Bergman, em todo o seu esplendor, algo de intimidatório até, mesmo que para alguns pairasse a sombra do 'académico'. E depois,'Persona', o choque. Em 1973, Bergman era um dos representantes maiores da modernidade".

A história que conta Silva Melo, 56 anos, só é pessoal nos pormenores, o resto é paradigmático dos modos de recepção a uma obra. "Foram pessoas mais velhas do que eu que descobriram o Bergman no Império, em Lisboa. Lembro-me de a minha irmã chegar a casa das 'matinées' das 18h30 (a hora que os estudantes e intelectuais iam ao cinema nesses pincípios dos nos 60) e falar do Cavaleiro, do xadrez e de morte em 'O Sétimo Selo' [1957, Império, 1963], da malícia dos 'Sorrisos de uma Noite de Verão" [1955; Império, 1960], da estranha beleza de Eva Dahlbeck, Ingrid Thulin e Gunnel Lindblom, a Virgem da 'Fonte ["Fonte da Virgem", 1960; Império, 1961]. Soube o nome dos actores, Gunnar Bjornstrand e Max von Sydow, antes de ter visto o primeiro Bergman. Comecei, como todos os portugueses da minha geração, pelo meio, pelos filmes da 'região central', os 'strindberguianos', os que Bergman escreve e filma ombreando com as peças finais do seu rival e antecessor [August Strindberg, 1849-1912]. E agora sei que 'Morangos Silvestres' [1957; Império, 1960] é uma versão de 'Sonata dos Espectros' de Strindberg, que 'O Sétimo Selo' responde directamente a 'Para Damasco', 'Persona' é 'A Mais Forte'. Só depois, anos 60 dentro, é que no Império, e compreendendo o impacto também comercial desse cinema de autor hermético, se começou a trazer os primeiros filmes, e, teria eu 16 anos, vi então 'Rumo à Felicidade' [1950, estreado em 1966], 'Um Verão de Amor' [1951, estreado em 1963], a maravilhosa 'Mónica e o Desejo', filmes poderosos, com mulheres e homens reais, música, Beethoven, o arquipélago. São ainda os filmes de que mais gosto. Dizia-se que eram filmes de uma época ainda incerta, aparentada com o neo-realismo, mas tremida entre as brumas do realismo poético francês, talvez. Mas cada vez mais as vozes que se procuram me parecem as mais interessantes, aquelas em que a forma ainda é viva e não apenas molde. Esses e aqueles portentosos filmes que o Bergman fez, tão simples, tão de câmara, os tortuosos 'Luz de Inverno' [1963; Império, 1964], 'Em Busca da Verdade' [1961; Estúdio, 1965], 'O Silêncio'. Ele foi gigantesco na sua fase realista. O que mais envelhece é o que mais é parecido com aquelas metafísicas à Virgílio Ferreira, símbolos, relógios sem ponteiros, essas esquisitices. Filmes como 'O Rosto' [1958; Império, 1962], 'O Amante' [1970; Vox, 1972], 'A Vergonha' ou 'O Ovo da Serpente' [1977] são insuportavelmente catequísticos".

Num artigo que escreveu para o catálogo da Cinemateca (ciclo organizado em 1989), Silva Melo já dizia isso, aliás, assinalando a sua decepção perante uma obra que tinha substituído o plano fixo pelo campo-contracampo. Era assim que ele punha e ainda mantém. "É sobretudo o aceitar a vulgata televisiva. Ele que ousava fazer um grande plano sem contracampo passou a ser o hábil gestor do drama interpessoal filmado em campo-contracampo. 'Sonata de Outono' [1978] é típico".

Não que as críticas fossem consensuais (João Lopes, por exemplo, demarca-se de um certo "discurso dominante" no pós-25 de Abril que acusava Bergman de rendição à televisão - "ele é dos cineastas que percebe logo o imenso poder da televisão e que é preciso não nos marginalizarmos em relação à TV e ocupá-la"). Mas marcaram, de facto, a recepção a alguns dos últimos filmes do cineasta. Não chegam a macular, no entanto, a memória de uma obra que, para uma geração, abriu as portas da idade adulta e passou a demarcar - pela simples enunciação de um nome, pelo som das vozes - um território emocional de descobertas e angústias, de sensualidade e de uma cruel clarividência.

"Os filmes de Bergman, como os cigarros Porto, os 'livres de Poche' de Camus, o primeiro LP com Beethoven/Oistrakh [David Oistrakh, violinista, 1908-1974] corresponderam à minha entrada na idade adulta", diz Silva Melo. "Foi o buço cultural, filmes que invocavam a morte e o desejo, a existência de Deus e o tempo a passar, a descoberta da sexualidade. Habituei-me à língua sueca e a descobir o que queriam dizer 'Elske', 'Sommar', 'Gladje', "Med', 'Tyrst', 'Till', habituei-me a um som silencioso e pesado".

E talvez que tudo isso seja a imagem possível de uma era que já não existe, de um cinema que já desapareceu, de um público (e os seus rituais) que se modificou. As primeiras imagens de "Saraband" evocam, então, uma perda?

Alguém consegue imaginar um tempo em que os filmes de um realizador hermético eram os acontecimentos da temporada nas maiores salas do país? Alguém consegue imaginar que o bruá de uma "saison" pudesse ser a cena da combustão da película de "Persona", que fazia espectadores olharem para trás para chamarem a atenção do projeccionista e falarem disso dias a fio como se falou, mais tarde, das supostas ambulâncias paradas à porta das salas que exibiam "O Exorcista"?

"O cinema tinha chegado a um momento em que o seu público era adulto. Foi isso que desapareceu", diz Jorge Silva Melo. O que é que mudou? João Lopes atira uma palavra: "televisão".

"O Bergman, nos anos 70, pertenceu ao modelo dominante da ficção: o cinema. A TV passou a ocupar esse lugar impondo modelos mais medíocres. Isso teve com efeito uma espécie de especialização do público de cinema, que se tornou mais jovem e menos diversificado em termos etários. O que mudou muito, em relação às minhas memórias primitivas de ver cinema, é que, por razões de conjuntura, a maior parte dos espectadores actuais são acidentais. E cujas motivações para ir ao cinema são a visibilidade que os filmes têm na televisão ou nas campanhas publicitárias. É preciso alguma coragem e frieza para dizer que também há maus e bons públicos - no sentido de exercício da capacidade de escolha. Há um mau publico quando há uma relação com o cinema dependente de estímulos meramente acidentais".

um filme de outro tempo. E "Saraband"? Estará arredado de quem não construiu uma relação com uma obra, de quem não passou com ela para a idade adulta?

Augusto M. Seabra arrisca: "Não. O que me toca no filme é precisamente a ideia de transmissão, a herança e renovação. Para mim, a personagem principal não é nem Marianne nem Johan, mas a jovem Karin, a neta de Johan. É na Karin que o Bergman deposita uma possibilidade de futuro. Ela escolhe viver o seu próprio tempo e não aquilo que o avô [Johan, a personagem de Erland Josephson] ou o pai, Henrik [Borje Ahlstedt] lhe sugerem. Não é um filme de um homem velho, é um filme de um homem antigo, qjue é o maior cineasta vivo".

Mas é verdade, reconhece, que é diferente ver hoje um Fellini (é passado, museu, o que se quiser, mas isso pode ser ponte) e "Saraband", que é presente e no entanto...

"Há um lado, neste filme, de estar para além do actual, de não estar conforme o padrão de actualidade, é verdade. Mas a questão é a de saber se a relação que se estabelece com os filmes numa sala de cinema, ao sustentar-se numa actualidade incessante, não nos provoca uma amnésia... Este é um filme sobre a transmissão, sobre a memória. Na sua flagrante inactualidade, é um filme de outro tempo que coloca a cada espectador, e ao cinema, a questão: como albergar objecto tão anacrónico? 'Saraband' não é passado, é presente. Mas não sabemos de que presente vem. Só sabemos que quem fez isto está vivíssimo, e que é um homem e uma sabedoria antigos mas com muito amor para transmitir a paixão da arte e o saber a uma geração mais nova".

Qual é a dose de ironia que estará nestas palavras de João Lopes: "Afinal, o verdadeiro filme de família e para a família é mesmo 'Saraband'"? Não é ironia, como se vê já a seguir: "Para perceber o Bergman é só preciso já ter sentido uma emoção, já ter amado alguém ou alguma coisa. E ter pensado um pouco sobre isso. Há um universalismo no Bergman que não há no 'Senhor dos Anéis' - a questão é por que é que qualquer 'Senhor dos Anéis' tem destaque nos telejonais e não um Bergman? O Bergman fala sobre os problemas que estão nas novelas. O que é que o distingue? A novela é a ditadura da normalização, os conflitos e desenlaces são sempre normais. O que é espantoso no Bergman, e actualísimo, é a recusa desse efeito de normalização: cada ser humano é sempre um ser excepcional. E é sempre um ser de desejo. É isso o mesmo que diz um ser do mundo de Tarantino".

Então, o desafio: "Os espectadores mais jovens terão de construir a sua própria relação com o Bergman. Que nunca será igual" àquela que começou há muito, muito tempo...

Liv Ullmann
Sexta-feira, 14 de Janeiro de 2005

cenas da vida pós-conjugal

%Kathleen Gomes

Escolham um rosto de entre os muitos rostos que povoaram o cinema de Ingmar Bergman - o de Liv Ullmann estará sempre no alto, acima de todos. Ingmar Bergman e Liv Ullmann, uma vez mais: "Saraband" é a 10ª obra de uma filmografia comum desde que o cineasta fundiu o rosto dela com o de Bibi Andersson em "Persona" (1966). Bergman vem dar-nos notícias, 30 anos depois, do par de "Cenas da Vida Conjugal" (1974), Johan (Erland Josephson) e Marianne (Liv Ullmann). Não, não é uma sequela, é um filme assombrado. Foi preciso Bergman voltar a filmar para podermos ver, de novo, o rosto de Liv Ullmann, 66 anos. "Quase não conheço nenhum par que tenha o mesmo que nós: somos os melhores amigos, em tempos fomos amantes, temos uma filha, ele tem-me dirigido em filmes incríveis e eu realizei alguns dos seus argumentos - e fizemos tudo isto juntos", diz a actriz ao Y, por telefone, a partir de Nova Iorque. Actualmente, dedica-se à escrita de argumentos e à realização: estreou-se em 1992, com "Sofie", e dos quatro filmes que dirigiu, dois basearam-se em guiões assinados por Bergman, "Confissões Privadas" (1996) e o mais recente "Infidelidade" (2000). Aqui fala sobre Bergman. Uma certa música.

Acha que Bergman queria deliberadamente recuperar o casal de "Cenas da Vida Conjugal" para "Saraband" ou foi como que um pretexto para trabalhar consigo e com Erland Josephson outra vez?

Particularmente, agora que é mais velho, ele não queria trabalhar com ninguém de que não estivesse 100 por cento seguro. Mas creio que ele queria trabalhar tanto com o Erland como comigo e com as nossas personagens porque eram familiares. Assim, não tinha que inventar nada.

Ele encara "Saraband" como uma sequela de "Cenas da Vida Conjugal"?

Não, de todo. E ele disse-o desde o início. Eu sempre disse que era uma sequela porque desse modo as pessoas quereriam ver o filme (risos). Mas o Ingmar não precisa disso porque ele teve um êxito incrível com o filme ao nível da crítica e do público. Muitas pessoas que nem sempre apreciam os filmes dele ficaram, subitamente, rendidas.

Como aconteceu com "Cenas da Vida Conjugal".

Sim. E, para mim, foi uma surpresa das duas vezes. Quando fizemos "Cenas da Vida Conjugal" foi-nos dado a escolher - a mim, ao Erland e ao director de fotografia [Sven Nikvist] - entre 10 por cento das receitas do filme ou um salário. Eles optaram pelos 10 por cento de receitas e tornaram-se milionários. Eu pensei que ninguém quereria ver o filme, portanto [optei pelo salário e] deram-me uns poucos milhares de dólares. Mas faria o mesmo agora. Surpreendeu-me que ambos os filmes fossem recebidos de forma tão exultante pelos críticos e pelo público.

Voltou a ver "Cenas da Vida Conjugal" por causa de "Saraband"?

Não. Pensei nisso mas não cheguei a fazê-lo. Falámos nisso, mas não aconteceu.

Ao contrário de "Cenas da Vida Conjugal", "Saraband" é mais centrado nos homens. Em "Cenas...", a voz de Bergman identifica-se com Marianne, a sua personagem. Em "Saraband", reconhece-se mais Bergman em Johan e Henrik, não?

Absolutamente. [Em "Saraband"] Marianne é um coro grego. Anda por ali, observa, diz uma espécie de monólogo. Mas a história que Ingmar quer contar é o que se passou entre pai e filho. Só que não poderia contá-la se não fosse testemunhada, mediada pelas mulheres. Em "Cenas...", julgo que ele se identificava tanto com o homem como com a mulher. O seu interesse particular centrou-se na mulher porque construiu realmente uma mulher viva, verdadeira. Acho que [Marianne] é o melhor retrato de mulher alguma vez feito.

As mulheres são as únicas personagens que realmente mudam, que agem no filme. Karin decide deixar o pai para estudar música, e Marianne, depois da sua visita a Johan, vai ver a filha o hospital psiquiátrico. Os homens permanecem os mesmos, como que abandonados.

Isso é bastante comum nos filmes dele. Ele parece confiar mais em que as mulheres mudem, evoluam, aprendam qualquer coisa com o que lhes acontece, ao contrário dos homens. O que é estranho, porque ele é um homem, mas nunca permite que os homens mudem, entendam o que se passou e encontrem outra forma. Mas tem razão: com as mulheres sim.

Como é que Bergman consegue construir personagens femininas tão fortes? Considera-lo um cineasta de mulheres?

Diria que é um escritor de mulheres: é um bom realizador tanto de homens como de mulheres. Num certo sentido, é um pouco como Henrik Ibsen: ele reconhece coisas nas mulheres que muitos escritores homens jamais conseguem. E isso é muito pessoal e as mulheres não dizem: "Oh, no fundo, ele não sabe". Porque ele sabe, de facto. E também tem um grande respeito pelas mulheres, ouve-as, o que nem sempre acontece com os homens.

Como é que olha para a sua presença no cinema de Bergman? De filme em filme, tende a interpretar personagens semelhantes, como acontece com grande parte dos actores recorrentes de Bergman. Como é que definiria o seu tipo de personagem no cinema de Bergman?

Creio que em muitos dos filmes o interpretei a ele. Ele preferia trabalhar comigo senão, de outro modo, escreveria os papéis e o Max Von Sydow interpretaria... Penso que em vários filmes também funcionei como porta-voz dos homens e do que se passa com os homens, com algumas excepções - "Cenas da Vida Conjugal" e talvez "Saraband". Tem sido uma viagem incrível. Era muito nova quando comecei. Comecei, aos 25 anos, a interpretar mulheres com quase 40 anos, portanto, agora devia ter uns 100, cento e tal anos... Mesmo neste filme, ele queria que eu fosse mais velha do que a personagem deveria ser, 30 anos depois de "Cenas da Vida Conjugal". Interpretei mulheres muito maduras toda a minha vida pelo que, quando me tornei mais velha, não podia ir muito mais longe.

Trabalhar com Bergman e Erland Josephson é estar em família?

Sim. Honestamente, creio que é uma benção. Antes de mais, porque ambos são os meus melhores amigos. Trabalhei com o Erland noutros filmes, tanto enquanto actriz como realizadora. E o Ingmar... Quase não conheço nenhum par que tenha o mesmo que nós: somos os melhores amigos, em tempos fomos amantes, temos uma filha, ele tem-me dirigido em filmes incríveis e eu realizei alguns dos seus argumentos - e fizemos tudo isto juntos. Falámos sobre isso ao telefone há pouco tempo, comigo a dizer-lhe: "Sou abençoada porque tu és um génio. Eu não sou um génio, como é que conseguimos fazer tudo isto juntos?" E o Ingmar disse: "Tu não percebes, tu és o meu Stradivarius." Acho que é o mais belo elogio que alguma vez lhe ouvi.

Ainda ocorrem surpresas quando trabalham juntos?

Sim, o tempo todo. Mas é isso que significa criar: queremos surpreendermo-nos uns aos outros. Um bom realizador nunca força um actor a fazer aquilo que ele quer, permite que o actor accione a sua fantasia. E um bom actor tenta sempre surpreender, não só com o material que lhe dão mas também do género: "Isto é algo que eu encontrei aqui, consegues vê-lo, consegues reconhecer?". E ele vê, ele reconhece-o e surpreende-se com o que descobrimos, como nós nos surpreendemos com o que somos capazes de descobrir. Sabe aquele monólogo que eu tenho no final de "Saraband"? Eu tinha uma visão muito diferente de como deveria ser feito: pensei que iria ser filmado em grande plano, de forma muito tocante. E quando cheguei ao "plateau" e vi a grande mesa e as fotografias disse: "Ingmar, vais estragar tudo!" (risos) Ele não estava sentado junto à câmara, como costuma fazer nas rodagens porque este foi filmado em suporte digital e ele não estava ali à minha frente. Mas quando a câmara começou a rodar foi como se houvesse sinais de fumo entre nós, qualquer coisa secreta a acontecer entre nós. Subitamente, percebi aquilo que ele buscava. E, aí, eu também podia fazer algumas coisas que tinha pensado. E isso conduziu ao momento que creio ser o mais importante para Marianne: tenho a certeza que ela tinha visitado a filha no hospital noutras ocasiões, mas, como ela diz, aquela é a primeira vez na vida que toca verdadeiramente a filha. Perceber a dimensão disso tornou-se claro para mim graças à forma como toda a sequência foi filmada. Para mim, essa foi a surpresa dele - e a minha surpresa. Que são coisas que não têm necessariamente de se ver no filme.

Está irremediavelmente associada ao cinema de Bergman. Se se tivesse que escolher um rosto - um só - que representasse o cinema dele, seria certamente o seu. Isso pode ser um peso?

Não. Quer dizer, às vezes queixamo-nos (risos) porque nos estão constantemente a perguntar por Ingmar e de vez em quando pensamos: "Oh, e ele não pode falar de nós?". Porque ele também não podia ter feito esse filmes sem nós, não é? Portanto, para responder à sua pergunta: sim, às vezes [é um peso], mas no fim de contas, não. Porque antes quero ser o Stradivarius de Ingmar do que ter tido uma grande carreira em Hollywood. Só posso estar muito agradecida porque quando quis ser actriz trabalhei no lugar mais criativo e maravilhoso e com as melhores pessoas e todos eles são os meus melhores amigos, tanto a Bibi [Andersson] como o Erland e o Ingmar...

Aborrece-a quando lhe dizem que o seu último filme, "Infidelidade" (2000) é um filme sob a influência de Bergman?

Não, porque é idiota. Obviamente, somos influenciados por tudo o que nos acontece na vida. E uma vez que esse filme foi escrito por ele, porque é que Bergman não haveria de estar lá? Quer dizer, os diálogos são dele. Mas ele nunca teria feito o filme da mesma forma, na verdade, ele não queria que o filme fosse assim quando o viu, porque não acredita em perdão, nem em mostrar as crianças nos filmes. Tivemos que encontrar a nossa forma. Mas não mudei nada por causa dele. Na verdade, creio que foi por isso que me deu os guiões, tanto de "Confissões Privadas" (1996) como de "Infidelidade", para que fossem diferentes. Mas isso que se diz de ser um filme sob influência é algo que se tem de ouvir porque, obviamente, quando se trabalha com alguém as pessoas tendem a dizê-lo. E, especificamente, porque sou mulher. Ninguém diria isso se eu fosse homem.

Como descreve a sua relação com Bergman?

É o meu melhor amigo e podemos pedir conselhos um ao outro sobre coisas bastante normais - sobre envelhecer, sobre o que é ser homem, o que é ser mulher, sobre estar sozinho, amar, o que quer que seja. Ele é alguém para quem não há barreiras: seja qual for a pergunta, há sempre resposta.

Actualmente é raro vê-la trabalhar como actriz. Porquê?

Porque realizo filmes e escrevo argumentos. Representar já não me seduz. Talvez fosse tentador se eu fosse dirigida por alguém que permitisse surpresas. E só há um par de cineastas assim. Acabo de ver o último filme de Clint Eastwood ["Million Dollar Baby"] e enquanto estava a vê-lo só pensava: "Oh, não me importava nada de fazer parte disto"... Há grandes realizadores, István Szabó... Mas, sabe, já não fazem filmes para a minha idade, portanto, acho que não vai acontecer. Mas sinto-me tremendamente feliz por escrever argumentos e realizar.

Bergman anunciou "Saraband" como o seu último filme, de resto como já tinha acontecido com "Fanny e Alexandre"? Devemos dar-lhe algum crédito?

Acho que devemos dar-lhe todo o crédito. Creio que se houver outro filme dele será feito na sua ilha [Faro], com uma câmara, um actor e um monólogo.

Isso quer dizer que devemos esperar mais um filme?

Não, não me parece. Mas creio que, se acontecer, será assim. Logo que terminou "Saraband", ele partiu no dia seguinte para a ilha, que não deixou desde então. E acredito que nunca mais deixará. É por isso que digo que, a haver um novo filme, terá de ser com uma câmara, um actor, um monólogo
Vivemos Paralisados pela Inveja José Gil
Domingo, 16 de Janeiro de 2005

%Paulo Moura

Pública - Depois da leitura do seu livro, é impossível não se ficar deprimido.

José Gil - Hesitei muito antes de o publicar. Decidi fazê-lo, porque acho que estas coisas devem dizer-se publicamente, e não apenas em circuitos fechados, como habitualmente. E também porque penso ter encontrado um fio condutor, que dá

unidade a tudo o que afirmo.

P. - É aquilo a que chama "não inscrição". Que significa?
R. - Significa que os acontecimentos não influenciam a nossa vida, é como se não acontecessem. Por exemplo, quando uma pessoa ama, esse sentimento não afecta a outra pessoa, objecto do amor. Quando acabamos de ver um espectáculo, não falamos sobre ele. Quando muito, dizemos que gostámos ou não gostámos, mais nada. Não tem nenhum efeito nas nossas vidas, não se inscreve nelas, não as transforma. Ainda outro exemplo: o primeiro-ministro, Santana Lopes, classificou a dissolução da Assembleia da República pelo Presidente como "enigmática". Não disse que era incorrecta ou injusta, mas "enigmática", o que é a forma mais eficaz de a transformar em não-acontecimento.

P. - E, não tendo acontecido, ninguém é responsável.
R. - Exactamente. Pode-se continuar como se nada se tivesse passado. Os acontecimentos não se inscrevem em nós, nem nas nossas vidas, nem nós nos inscrevemos na História. Por isso, em Portugal nada acontece.

P. - Isso vem de onde?
R. - Do medo. E da falta da ideia de futuro. Vivemos num presente que se perpetua. Não se inscreve em nós o futuro nem o passado, a História. Porque temos medo.

P. - E de onde vem o medo?
R. - Uma vez fiz essa pergunta a José Mattoso. Perguntei-lhe se vinha do salazarismo. Ele respondeu: "Muito antes disso." Mas não precisou de onde. Acho que ninguém sabe. Claro que no chamado "antigo regime", ou no feudalismo, imperava um medo real, físico.

P. - Mas isso acontecia em toda a Europa. Específico de Portugal é esse medo não ter cessado?
R. - Sim. Existiu durante o salazarismo, que vivia do medo. Tínhamos medo de tudo.

P. - Mas era um medo hierárquico, de cima para baixo. Como se transformou num medo do nosso semelhante?
R. - Acho que no salazarismo já havia um medo do semelhante, além do hierárquico, que desapareceu, porque estamos numa democracia. Mas herdámos o medo, que se transformou. Acho que a principal razão foi por que não criámos suficientes instrumentos de expressão.

P. - É através da expressão que nos podemos livrar do medo?
R. - Nós temos uma pobreza enorme de expressão em relação à nossa existência. O que sabemos de nós, hoje, é pouquíssimo. Por exemplo: o que uma mulher pode sofrer, com a sua condição de inferioridade social, com os dramas domésticos... Tudo o que se diz, mesmo o que aparece na literatura, não exprime o que ela poderia sentir, e acaba por fazer com que ela não possa sentir o que verdadeiramente sente.

P. - Não pode sentir, porque não o pode exprimir?
R. - Sim. A expressão abre para o fundo, não apenas para fora. Mas nós estamos agarrados a um texto e não temos forças para sair dele.

P. - Uma espécie de norma?
R. - É o texto da sociedade normalizada, do bom senso, do política, social e afectivamente correcto. Assisti há dias a uma discussão de um casal, num jardim. O marido dizia-lhe: "Não aqui! Não aqui!" E a mulher calava-se logo. Temos um texto que nos diz o que podemos viver.

P. - É o medo que nos impede de rasgar esse texto?
R. - Nós temos medo de experimentar. Porque temos medo do que irão dizer de nós. Partimos sempre do princípio de que o que vão dizer é negativo, desvalorizante. Dificilmente alguém dirá: "Que bom o que tu fizeste. Estou muito contente." Não. Vão-nos decerto criticar. Isso cria logo um medo que nos paralisa. Faz com que tenhamos prudência. Bom senso.

P. - Mas a prudência e o bom senso poderiam ser atitudes positivas, para nos guiarem na acção...
R. - Qual acção? A prudência paralisa a acção.

P. - Então não é uma verdadeira prudência.
R. - Pois não. A verdadeira prudência seria uma estratégia para medir e modular a acção, à medida que ela se desenrola. Mas nós não queremos é agir. Porque a sociedade portuguesa, ao contrário de outras, é fechada, não tem canais de ar, respirações possíveis. É uma sociedade suavemente paranóica. As pessoas estão demasiado conscientes de si próprias, o que é um horror. Conscientes da imagem que possam produzir, da sua presença como imagem nos outros. Isso é paralisante.

P. - Damos muita importância à nossa imagem?
R. - É uma obsessão. Estamos sempre a falar da auto-estima, esse termo horroroso.

P. - O que há de errado com a auto-estima?
R. - Essa ideia reflexiva, de nos amarmos a nós próprios... Em vez de estarmos virados para fora, para os outros, para o mundo. Só nos podemos afirmar agindo, exprimindo-nos - não voltando-nos para a autocomplacência. Tudo o que é válido vem "de fora". Nós ainda temos essa ideia de que é preciso começar por uma transformação interior... Mas, em Portugal, não existe um "fora".

P. - Isso quer dizer que não existe um espaço público?
R. - Não, não existe. O salazarismo extinguiu-o. Depois do 25 de Abril, passámos do zero para o máximo de expressão. Mas não tínhamos os instrumentos para essa expressão. Por isso, as forças reais do poder-saber, políticas, voltaram a dominar. Toda a nossa expressão individual, social, passou a reduzir-se ao discurso político. E no espaço público instalou-se em força um dispositivo que ocupou o lugar todo: a televisão, e os "media" em geral.

P. - Os "media" não são espaço público? Funcionam em circuito fechado?
R. - Movem-se em circuito fechado. Têm uma acção de absorção. Só se existe se se aparecer na televisão. Mas estar e aparecer na televisão não é a mesma coisa do que viver a vida, na materialidade das ruas e do tempo.

P. - Mas isso não é um fenómeno exclusivamente português.
R. - Não, mas em Portugal a televisão criou um espaço de imagem antes de termos passado por aquilo a que podemos chamar um "espaço de terrível liberdade", de experimentação, de inscrição, que foi a modernidade.

P. - Houve um salto. Mas isso nunca se vai recuperar.
R. - Com certeza que não se vai voltar atrás. Mas é preciso recuperar aquilo que nos é sugado por esse espaço de imagem e que é a vida dos corpos. Os acontecimentos da existência, no que têm de invenção. Na televisão tudo está formatado, não há imprevisto, encontro. O acontecimento é o resultado de um encontro. Mas nós temos medo do acontecimento. Medo da mudança, medo do futuro, medo do julgamento dos outros, medo de não sermos capazes. Medo de não estar à altura do acontecimento.

P. - É um medo da responsabilidade, um medo infantil?
R. - Sim, a nossa sociedade tem algo de infantil, mas sem a vivacidade das crianças. É a outro nível que temos de ter vida. O português não é um adulto autónomo por si. Uma comunidade de crianças não é o mesmo que uma comunidade de adultos. Nós ainda não chegámos à comunidade de adultos. Há pormenores... o tratamento por "pá", por exemplo...

P. - Traduz uma grande familiaridade, ou é outra coisa?
R. - É o reconhecimento de que o homem é nu, para usar uma terminologia de Hanna Arendt.

P. - Serve para colocar o outro ao mesmo nível, como que a dizer-lhe: a mim não me enganas?
R. - Sim, e somos iguais. Vou contar-lhe uma cena que me espantou: quando o Jorge Sampaio era presidente da câmara, apareceu na televisão a passear pelo Casal Ventoso com uma série de delegados de Bruxelas. Quando foi abordado por um drogado, disse-lhe: "É pá, afasta-te, que estou aqui a ver se sacamos algum dinheiro a estes tipos." Isto é extraordinário.

P. - Não resistiu a estabelecer uma cumplicidade com o drogado.
R. - Sim, como se ele fosse da mesma...

P. - Laia.
R. - Exactamente, laia. Nós, que somos iguais, inferiores, estamos a ver se sacamos... O Sampaio é muito expressivo de certas coisas portuguesas.

P. - Cultivamos uma intimidade forçada, pouco natural, promíscua?
R. - Sim, há uma promiscuidade social que se deve à falta de autonomia individual. O salazarismo infantilizou-nos, fez-nos viver num mundo fictício e sugou-nos todas as forças. Eu não quero culpar o salazarismo por tudo, mas a verdade é que foram 48 anos de não inscrição, de não acontecimento. E herdámos isso. Ainda não recuperámos. O ambiente em que vivemos não nos permite ter intensidade de vida, de pensamento, de acção, para que possamos inscrever-nos na nossa própria vida, na Europa, no mundo global, etc. Uma vez assisti a uma entrevista com o jovem físico português, João Magueijo, que vive em Inglaterra. A repórter perguntava-lhe: "Você trabalha com matemática, não em laboratórios. Não podia ter descoberto essas teorias em Portugal?" E ele respondeu imediatamente: "De maneira nenhuma. Sabe porquê? Por causa da intensidade das trocas de pensamento em que eu vivo quotidianamente. É isso que me faz pensar."

P. - A influência "do fora".
R. - Absolutamente. É essa intensidade que nos falta. Nós somos tão inteligentes como os outros. Somos inventivos, produzimos. Mas caímos nisto.

P. - A incapacidade de agir vem de dentro, do nosso medo. Mas, quando alguém tenta, o que acontece? Temos a aprovação ou a sanção dos outros?
R. - Uma sanção terrível. É o mecanismo da inveja.

P. - Não agimos, mas também não deixamos ninguém agir. Como funciona esse mecanismo?
R. - O mecanismo da inveja tem a ver com práticas da magia, o "mau olhado", o "quebranto", e também com o que em psiquiatria se chama "transferência psicótica", ou seja, o que passa de uma pessoa para outra e não é verbal. Imagine que você chega ao pé dos seus colegas e diz: "Fiz uma reportagem extraordinária!" E não está a falar por vaidade, mas objectivamente. Mas logo o tipo que está a seu lado diz: "Ai sim? Pois muito bem." E com este tom introduz em si um afecto inconsciente que o vai paralisar.

P. - É um mecanismo semelhante ao do ostracismo?
R. - Exactamente. Cria-se um ambiente que é hostil à iniciativa e que tem um efeito sobre a própria vontade de querer fazer. Isto é generalizado em Portugal. A inveja é mais do que um sentimento. É um sistema. E não é apenas individual: criam-se grupos de inveja. Várias pessoas manifestam-se simultaneamente contra a sua iniciativa. Cria-se um ambiente de inveja. Um grupo determinado age segundo os regulamentos da inveja.

P. - É uma atitude concertada ou inconsciente?
R. - Pode ser concertada ou inconsciente, mas funciona. Não se permite que numa empresa, num escritório, ninguém ultrapasse a linha da média baixa. Vivemos reconhecendo-nos como irmãos na desgraça.

P. - Mas por que se faz isso? Não seria do interesse de todos encorajar cada um a fazer melhor?
R. - Sim, mas há um efeito de espelhos. Se você faz alguma coisa de forte, isso deveria ser um estímulo para mim, para fazer algo também forte. Mas não. Vê-lo forte diminui-me a mim. Vê-lo com intensidade, com iniciativa, faz-me pensar, por causa da imagem que tenho de mim, na minha pobre condição, em que não faço nada. E faço tudo para destruir a sua iniciativa, para que eu possa viver. Você sufoca-me com a sua energia. Terrível isto. Uma pessoa sufoca a outra com a sua energia. E o resultado é que estamos todos sem energia.

P. - Mas para que essa acção da inveja tenha efeito não é necessário que a "vítima" esteja vulnerável?
R. - Precisamente. Um etnólogo pôs-me essa questão. Disse: só se é afectado pela inveja quando se quer, quando se está num estado determinado. Eu respondo: sim, em quem tem a pele grossa não entra nada. São as pessoas porosas que são fragéis. E isso é típico de Portugal. Os portugueses são sensíveis, porque não são maduros. Isso poderia ser maravilhoso. Somos pessoas de pequenas percepções, de intuições imediatas, e por isso sentimos quando alguém está a torcer para que não avancemos. Faz curto-circuito, fecha o espaço das possibilidades. É um sistema.

P. - Uma espécie de acordo tácito para que ninguém aja, ninguém ameace, e possamos viver em paz.
R. - Precisamente. Para que possamos viver em paz. Porque temos medo do conflito.

P. - Daí os "brandos costumes"?
R. - Recusamos o conflito a céu aberto, mas temos uma violência incrível na nossa sociedade. Violência doméstica em relação às crianças. Os brandos costumes escondem uma violência subterrânea enorme.

Um dos maiores pensadores de todo o mundo
José Gil, 65 anos, autor e professor catedrático de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, define-se como especialista no "pensamento filosófico do corpo". Entre a regência de várias cadeiras de Filosofia contemporânea e a orientação do mestrado em Estética, encontra tempo para a
escrita. É autor de numerosos ensaios, artigos em revistas culturais, entradas em enciclopédias e livros de reflexão filosófica. Os seus temas vão desde Fernando Pessoa e Salazar até à dança e a pintura. Em 1990 ganhou, com a obra "Cemitério dos Desejos", o Prémio Jacinto Prado Coelho. Recentemente escreveu "A Profundidade e a Superfície - Ensaio sobre 'o Principezinho', de
Saint-Exupéry" e, agora, "Portugal, Hoje - O Medo de Existir".
Antes de ir para França, onde se licenciou em Filosofia, na Universidade de Sorbonne, em 1968, estudou Matemática na Faculdade de Ciências de Lisboa. Em Paris, foi aluno, admirador e amigo do filósofo Gilles Deleuze. Em 1982
completou o doutoramento, na Universidade de Paris 7, com uma tese sobre "O Corpo como Campo de Poder". Ensinou no Collège International de Philosophie, em Paris, na New School for Dance Development, em Amesterdão. Regressou a Portugal em 1976, para desempenhar o cargo de adjunto do secretário de Estado do Ensino Superior e da Investigação Científica do VI Governo Provisório. A última edição da revista francesa "Nouvel Observateur" considera-o um dos "25 grandes pensadores de todo o mundo"


sábado, janeiro 15, 2005

Escolha e Destino
Sábado, 01 de Janeiro de 2005

%Eduardo Prado Coelho

Deverei ler este livro? Deverei escrever sobre este livro? O livro de que falo é "A Coragem de Escolher" e o seu autor Fernando Savater. Depois deste, já tivemos a publicação de "Mandamentos para o Século XXI", que de certo modo prolonga, segundo a agenda dos mandamentos, a parte "prática" do livro anterior: escolher a verdade, o prazer, a política, a educação cívica, a humanidade, o contingente. O modelo é o do ensaísmo filosófico, sensível ao prazer da forma, coloquial, ameno, mas ao mesmo tempo com um fundo bibliográfico que passa basicamente por duas vertentes. Por um lado, a cultura humanística: Aristóteles em lugar de honra, Hannah Arendt. Por outro lado, a filosofia anglo-saxónica ou analítica: Jon Elster, Hayek, MacIntyre, Searle, Alan White, etc. E há também Serres ou Nancy, Habermas ou Odo Marquard. E uma inevitável reflexão antropológica, na qual Edgar Morin ou Arnold Gehlen têm papel de relevo.

Uma conhecida história de Frank R. Stogkon desempenha um papel nuclear neste livro. Chama-se "A dama e o tigre" e conta a narrativa de um acusado que era conduzido para a arena de um circo. Diante da infeliz criatura estavam duas portas: numa encontrava-se uma lindíssima mulher, noutra um tigre terrível e mortal. Só o rei estava ao corrente do que se escondia atrás de cada porta. Se saísse o tigre, o amante seria devorado. Se saísse a mulher, teria de casar com ela. Não tinha alternativa.

Ora o condenado tinha-se apaixonado pela filha do rei. Esta confrontava-se com o seguinte dilema: ou o seu amado seria entregue às garras do tigre, ou ficaria nas mãos da mais bela das mulheres. A filha do rei conhecia o segredo das portas. Ela podia decidir. Mas como decidir? Escolhendo a morte do ser amado ou o prazer daquele por quem ela teria um eterno ciúme? O jovem apaixonado sabia que ela sabia. E olhou-a nos olhos procurando a salvação. Mas não estava certo de que ela escolhesse a beleza irresistível. Quem terá saído? Qual terá sido a escolha? A bela ou o tigre?

Esta história mostra que nós estamos condenados a escolher. Mas que as nossas escolhas são formadas por motivações que nos ultrapassam. Talvez nem mesmo nós próprios seremos capazes de dizer que porta iremos escolher. Quantas vezes somos levados a escolher (mato ou não mato? Parto ou não parto? Caso ou não caso?) ao longo de uma vida em que as escolhas são instantes de violência sobre nós próprios? Noutros casos são escolhas menores. Recordo dias e dias que passei sozinho em Paris e era levado a sucessivas escolhas. Levanto-me já? Tomo o pequeno-almoço em casa? Vou ler ou fazer compras? A que restaurante vou comer? Vou ao cinema? Que filme irei ver? Vou a um bar? Ou volto para casa e vejo televisão? Como escreveu Georges Perec, aqui oportunamente citado, "o problema da escolha, o problema da vida inteira".

O conjunto das escolhas que se acumulam forma a cadeia de um destino. Foi assim que tudo aconteceu. Imagino que poderia ter acontecido doutra maneira, Mas sei que, se recomeçasse, faria provavelmente as mesmas escolhas.

Fernando Savater diz-nos que este é o grande tema da sua vida de filósofo. De certo modo, este é o livro da sua vida. E a pergunta que nele formula poderia enunciar-se doutra maneira: somos livres? Esta questão tem sentido porque se trata de homens. Eu não a formularia assim se se tratasse de animais. Os homens escolhem porque os homens são seres que actuam: isto é, que organizam as suas escolhas em função de um projecto que transcende essas escolhas. Como diz Fernando Savater, "actuar não é só pôr-se em movimento para satisfazer um instinto, mas levar a cabo um projecto que transcende o instintivo até o tornar irreconhecível ou suprir a sua carência. As acções têm que ver com desenhos de situações virtuais que não ocorrem no presente, com o registo simbólico de possibilidades que não se esgotam no cumprimento de paradigmas estabelecidos no passado, mas que se abrem a futuros inéditos e até dissidentes. A acção está vinculada à previsão mas também ao imprevisto: é tentar prever jogando com o imprevisível e contando com a sua incerteza".

Há um ponto que é extremamente importante sublinhar: é que escolher só é uma verdadeira escolha na medida em que nós não sabemos as consequências da nossa escolha. Se soubéssemos, tudo seria simples, mas não haveria escolha. O destino constrói-se precisamente na margem do que se não sabe. É por não sabermos que temos a ideia de que há qualquer coisa com que nos defrontamos e em relação à qual fazemos as nossas apostas. Como afirma Savater, "se operamos por ignorância, isto é, sem suficiente conhecimento ou com uma noção errada do estado de coisas em que vamos intervir, é justo afirmar que o nosso acto não é totalmente voluntário: fazemos o que sabemos mas não sabemos de todo o que fazemos. Se tivéssemos sabido mais ou melhor, é de supor que teríamos actuado de outro modo". Savater evoca Kant quando este escreve: "A necessidade de actuar é muito maior do que a possibilidade de conhecer."

A série de escolhas é um fio de acasos que faz com que as nossas acções sejam meros acidentes. A ocorrência dos acidentes é o destino de que se tecem as nossas vidas. Por conseguinte, "à combinação da incerteza (causada pelo nosso conhecimento deficiente) e da fatalidade que nos insta a actuar costumamos chamar acaso. O acaso é o rosto mágico e simples de algo sumamente intrincado, de uma meada que renunciamos enovelar".

O livro de Fernando Savater lê-se com extremo prazer. Ele vai ao encontro de dimensões essenciais das nossas vidas: algo que fazemos todos os dias, na nebulosa de uma vontade que não conhece critérios. Por um lado, racionalizamos a nossa acção até ao máximo que nos é possível. Por outro, avançamos num corredor feito de noite e vozes desconhecidas. Para falar sobre estes temas pode-se escolher ou o tratado ou o ensaio. A fórmula do ensaio é a que mais se aproxima da nossa interrogação fundamental.
Bandas Desenhadas Que Marcaram 2004
Sábado, 01 de Janeiro de 2005

%Carlos Pessoa

Depois da explosão de anos anteriores, o ano de 2004 foi, também no domínio da BD, de clara recessão. Assistiu-se à "implosão" de editores que tinham colocado no mercado algumas das melhores traduções dos últimos anos - é o caso da Witloof e da Polvo, que praticamente não deram sinal de vida. O quadrante franco-belga, por seu lado, afirmou-se sobretudo através de reedições - caso das obras de Manara republicadas pela Meribérica-Liber; Lucky Luke e Astérix, agora na ASA - pouco trazendo ao conhecimento dos leitores que ultrapasse a mediania criativa. Em contrapartida, afirmaram-se pequenos editores "alternativos", como a Vitamina BD ou Mais BD, a quem se deve o lançamento de algumas das melhores obras do ano, assinadas por valores maiores da BD de expressão anglo-americana. Esta tendência é, aliás, confirmada por via do labor editorial da Devir. As obras referenciadas são, obviamente, fruto de uma escolha pessoal, mas de referência incontornável num balanço que se quer, sobretudo, como marco evocativo do que de melhor foi surgindo ao longo do ano.

O último trimestre de 2004 ficou marcado pelo lançamento, com um desfasamento de década e meia em relação à edição original, do primeiro volume da mítica série Sandman - "Prelúdios" - pela Devir. Um prefácio exclusivo de Neil Gaiman, autor dos textos da longa série iniciada em 1988, reforça a aposta do editor neste projecto, do qual serão publicados em 2005 pelo menos mais dois volumes ("Nocturnos" e "A Terra dos Sonhos").

Ainda no catálogo da Devir, destaca-se o belíssimo "Os Lobos nas Paredes", uma notável história "infantil" de Gaiman, superiormente ilustrada (desenhada? fotografada? pintada?) por McKean, que continua a afirmar-se com um estilo gráfico inclassificável. A edição está irrepreensivelmente produzida.

A mesma apreciação pode ser feita, por outro lado, acerca de "Sin City - Mulher Fatal", de Frank Miller, também publicado pela Devir. O poderoso impacto causado, em 1991, por "Sin City - Cidade do Pecado" (igualmente lançado pelo mesmo editor) e pelo seu universo de criaturas desintegradas volta a sentir-se neste regresso às histórias violentas e profundamente sensuais dos personagens millerianos, tratadas num fantástico registo a preto e branco que a edição portuguesa vinca bem.

Iniciada no ano transacto, cumpre-se em 2004 a publicação integral de "Kingdom Come" (Alex Ross e Mark Waid), numa edição portuguesa da Vitamina BD em quatro volumes e num formato de álbum europeu. Nela se assiste a uma revisitação prospectiva do universo dos super-heróis, em que os "irmãos inimigos" Batman e Superman conjugam esforços e forças para combater o Mal por quem chegam todas as desgraças e flagelos.

Pela mão da Vitamina BD chegou também ao mercado nacional "Lovecraft", a meio caminho entre a adaptação biográfica do grande mestre da moderna literatura de terror e a tentativa de captar o referencial da sua vida "interior", povoada por demónios e outras criaturas fantásticas. O resultado obtido pelo esforço conjugado de Breccia, Giffen e Rodionoff é outra boa surpresa do ano.

No Velho Continente a safra do ano não se revelou muito generosa. Salva-se o belga Jean-Philippe Stassen, de quem a ASA publicou com pouco intervalo de tempo "Deogratias" e "Crianças". Num caso e no outro, o autor mergulha as mãos na mesma "matéria-prima" - a guerra étnica do Ruanda entre tutsis e hutus, que causou centenas de milhares de mortos e uma legião de vidas destruídas e sem esperança entre as crianças pobres do terceiro mundo. É essa universalidade temática que confere uma grandeza única a estas obras intensas e sinceras, com uma força cada vez mais rara na criação contemporânea de BD.

A segunda referência vai para o projecto O Decálogo (só falta publicar os dois últimos volumes, prometidos para o início de 2005). Um mesmo argumentista (Giroud) e 10 desenhadores diferentes glosam o mote de uma origem mística e mítica da civilização, que é o fio condutor de uma obra intensa (embora desigual) de recorte histórico e policial. Com tantos maus exemplos de séries iniciadas e depois abandonadas, a perseverança da ASA é de saudar.

Por fim, mas não menos importante, há que referenciar a edição do quarto volume de A Pior Banda do Mundo, de José Carlos Fernandes. O autor usa a arma letal da ironia para recolher os exemplos modelares daquilo a que chamou "A Grande Enciclopédia do Conhecimento Obsoleto". O registo é o mesmo dos episódios anteriores (está prevista a publicação de mais dois, um deles em 2005): fixar por via do humor e do sarcasmo um retrato implacável da condição humana.

Prelúdios

AUTORES Sam Keith, Mike Dringenberg (desenho) e Neil Gaiman (texto)

EDITOR Edições Devir

128 págs., ? 10,99

Os Lobos nas Paredes

AUTORES Dave McKean (desenho) e Neil Gaiman (texto)

EDITOR Vitamina BD

56 págs., ? 16,99

Sin City 2: Mulher Fatal

AUTOR Frank Miller

EDITOR Devir

64 págs., ? 11,00

Kingdom Come (4 vols.)

AUTORES Alex Ross (desenho) e Mark Waid (texto)

EDITOR Vitamina BD

56 págs. cada, ? 49,99

Lovecraft

AUTORES Enrique Breccia (desenho), Hans Rodionoff e Keith Griffen (texto)

EDITOR Vitamina BD

56 págs., ? 18,99

Déogratias

AUTOR J.-P. Stassen

EDITOR Edições ASA

80 págs., ? 19,25

Crianças

AUTOR J.-P. Stassen

EDITOR Edições ASA

80 págs., ? 19,25

Decálogo (8 volumes publicados)

AUTORES Vários (desenho) e F. Giroud (texto)

EDITOR Edições ASA

56 págs., entre ? 14,00 e 15,50

A Grande Enciclopédia do Conhecimento Obsoleto

AUTOR José Carlos Fernandes

EDITOR Devir

56 págs., ? 8,99

A Realidade como Ficção
Sábado, 01 de Janeiro de 2005

%Carlos Pessoa

"Palestina", uma excelente edição em dois volumes, surgida no início de 2004, é o relato ao mesmo tempo apaixonante e desapaixonado, envolvido e distanciado, grave e ligeiro, sério e irónico, de histórias de seres humanos em cenário de guerra, recolhidas com meticulosidade e perseverança, mas sobretudo com um agudíssimo sentido de observação, por vezes desapiedado, mas profundamente compassivo. Na sua esmagadora maioria, são histórias de vida de homens, mulheres e crianças palestinianas que viram as suas vidas quebradas - muitas vezes de forma irreversível ou definitiva - pela acção opressora do Exército ou dos colonos israelitas. Mas também passam pelas imagens, a preto e branco, as aspirações, dúvidas e inquietações de cidadãos "do outro lado" da barricada, cuja aspiração última é poderem viver as suas vidas como gente comum.

São quase 300 pranchas escritas e desenhadas por Joe Sacco - um jornalista e autor de BD norte-americano que esteve dois meses em Israel e nos territórios ocupados, por ocasião da primeira Intifada (1987-1992) -, publicadas em fascículos nos anos de 1993-1995, e que deram ao seu autor o prestigiado prémio American Book Award, em 1996.

O que a obra do jornalista e autor de banda desenhada norte-americano revela, com uma precisão cirúrgica, é que por detrás do conflito total entre israelitas e palestinianos se trava uma disputa vital pelo território, o que é mostrado sem julgamento nem moralismo. Ao transformar em matéria de ficção a "realidade real", "Palestina" mostra que a banda desenhada pode ser algo mais do que puro entretenimento para ocidentais ricos e abundantes.

Palestina Uma Nação Ocupada
Palestina Na Faixa de Gaza
AUTOR Joe Sacco
EDITOR Mais BD
156 págs. e 162 págs., ¤ 14,95 cada


O Nó na Garganta
Sábado, 08 de Janeiro de 2005

%Mário Santos

: mas como é suposto que eu seja aqui se não já a vossa Ariadne (ou Ariadna ou Ariana) pelo menos o fio dela, direi que pode ser essa a imagem, a de um labirinto redondo, ruína de círculos concêntricos que entre si comunicam por passagens desencontradas, imagem necessária, ou útil, porém não suficiente, porque excessivamente estática, porque excessivamente extática, porque não poucas vezes os círculos se descentram, flutuam e se afastam, sobrepõem e cruzam, e voltam a coincidir num centro apenas, centro instável, mas necessário ou útil para descrever: o título de um livro: "Lasciatemi Morire"; o nome de um autor, que é uma autora: Claudia Cattaneo; o nome de uma editora, que é italiana, de Ferrara: Terzo Libro. E que livro é este? É um ensaio ficcional, um ensaio fictício (mas haverá tal coisa?), uma ficção ensaística, o ensaio de uma ficção, uma ficção fictícia (haverá outra coisa?), um poema-ensaio, um poema em pânico, o que quiserem. E tudo isto em torno ou manando de duas fontes: o mito grego de Ariadne, na parte em que ela, depois de ter ajudado Teseu a sair do Labirinto, em Creta, é por ele abandonada na ilha de Naxos; e um célebre e pungente "lamento" de Monteverdi sobre o episódio. De Monteverdi, do primeiro verso do "Lamento d'Arianna", que é (como se sabe) tudo o que sobrou de uma das suas perdidas óperas, "Arianna", vem precisamente o título do livro de Claudia Cattaneo: "Lasciatemi morire,/Lasciatemi morire;/E che volete voi che mi conforte/In così dura sorte,/In così gran martire?/Lasciatemi morire,/Lasciatemi morire".

Convencionemos agora que o labiríntico livro de Claudia Cattaneo é ritmado estruturalmente por três círculos, podendo o do meio ser assim sumariado: há uma mulher jovem, estudante de literatura portuguesa em Génova; chama-se Caterina Martinelli e vem a Portugal abastecer-se de livros portugueses; não nos é dito porquê, mas é no Porto, em uma livraria "perto dos Clérigos", que ela se entusiasma, mesmo não sendo muito o dinheiro; para transportar os livros, entra numa loja "de chineses" e compra uma mala barata mas que serve o fim a que se destina e que, além disso, a atraíu por um certo kitsch legível na marca: "For You Eyes Only"; regressada a Génova, Caterina descobre na mala um livro que se não recorda de ter comprado: título: "O Nó na Garganta"; autor: Claudia Cattaneo; editor: For Your Eyes Only, de Buenos Aires; este livro supremamente enigmático, e que é uma longa paráfrase ao texto do poeta florentino Ottavio Rinuccini (1562-1621) que serve o "Lamento" de Monteverdi, vai tornar-se uma obsessão para Caterina; que descobre que o seu nome coincide com o de uma cantora da corte do duque de Mântua de que Monteverdi muito gostava e que morreu pouco antes de cantar o papel que lhe estava destinado em "Arianna"; e que o nome da autora de "O Nó na Garganta" é igual ao da (muito amada) mulher do compositor, morta também uns meses antes da estreia de "Arianna"; e Caterina Martinelli, a estudante de Génova, entra com mansidão e método "na arruinada e deserta Casa da Loucura"; é num bosque de choupos.

Resumindo, temos: no círculo interior o texto original do "Lamento"; no meio a paráfrase de "O Nó na Garganta" e a "ficção" em torno de Caterina; no exterior a deriva ensaística, ficcional e poética de Claudia Cattaneo, autora de "Lasciatemi Morire", paráfrase de uma paráfrase, exegese de uma exegese, comentário de um comentário. Devo dizer que as piscadelas de olho culteranistas que abundam neste livro não me comovem excessivamente. Mas tudo perdoo a Claudia Cattaneo, porque ela diz que o "Lamento d'Arianna" de Monteverdi lhe traz à memória a Dido de Purcell cantando "When I am laid in earth". Tornamo-nos "vizinhos da felicidade", diz ela.

Contou um cronista da época que quando "Arianna" estreou (em 1608) e se ouviu o "Lamento", os olhos das mulheres de Mântua se encheram de lágrimas. Eu desconfio de que não foram só os das mulheres. E juro que quatro séculos depois pude vislumbrar essas lágrimas nos olhos de Claudia Cattaneo. Com um nó na garganta.

Lasciatemi morire
Autor: Claudia Cattaneo
Editor: Terzo Libro
437 págs., ¤35


Insectos Gregos
Sábado, 08 de Janeiro de 2005

%Frederico Lourenço

Aracne é o nome da jovem tecelã que, no Canto VI das "Metamorfoses" de Ovídio, declara ser superior à própria deusa tutelar da tecelagem, Minerva, e é desafiada por esta a participar num concurso de tapeçaria. Enquanto a deusa fabrica uma tela mitológica que representa a sacralidade dos deuses, Aracne produz uma tapeçaria de estonteante e caleidoscópico virtuosismo, na qual os deuses surgem como modelos de lubricidade e concupiscência. Furiosa, Minerva castiga a rapariga, transformando-a em aranha.

Esta mesma aranha volta à vida no séc. XXI, no novo livro de António Franco Alexandre, a que não falta nada, diga-se desde já, da urdidura fulgurante de Ovídio. Trata-se da segunda visitação de Franco Alexandre ao universo das "Metamorfoses", dado que "Uma Fábula" (2001) recuperava as figuras de Eco e Narciso do Canto III da epopeia ovidiana. O mito de Aracne apresenta, contudo, uma vantagem adicional para um poeta com o perfil de Franco Alexandre, na medida em que está em causa, no próprio modelo romano, uma reflexão acerca da natureza da poesia: é que, já desde a "Ilíada" homérica, a tecelagem é vista como metaforizando a actividade poética.

Mas que poética é esta? O problema está bem "entretecido" na matriz ovidiana, com a alusão inicial ao Prólogo das "Origens" de Calímaco, poeta não só alexandrino (por ter vivido em Alexandria) como prospectivamente franco-alexandrino. A questão reside, por um lado, na oposição entre poesia gorda e poesia magra; e, por outro, no problema colocado pela assunção, por parte de Ovídio, do género épico enquanto "poema contínuo". Neste campo, Franco Alexandre está mais do lado grego do que do romano, pois opta pela descontinuidade (pelo menos aparente) e arroga a si a magreza helenística, numa formulação que faz lembrar Filetas, o poeta-símbolo da poesia alexandrina, de quem se dizia ser tal a magreza que, quando soprava o vento, não conseguia manter os pés no chão.

Com efeito, no primeiro poema de "Aracne", logo após a alusão kafkiana (que não passa de arenque vermelho, como dizem os ingleses: algo que serve para desviar a atenção do assunto verdadeiro), a aranha declara "... fiz-me aranhiço, / tão leve que uma leve brisa o faz / oscilar no seu fio de baba lisa. / Até que, contra a lei da natureza, / creio que tenho peso negativo, / e que me elevo no ar se me não prendo / ao canto mais escuro desta ilha".

Trata-se de uma declaração programática, que parece querer situar todo o livro na cultura poética helenística. Mas a leitura de "Aracne" revela-nos que estamos também perante uma visitação especial da literatura grega em marcha atrás: começando na poética de Filetas e Calímaco, vamos gradualmente retrocedendo, passando pelo "Banquete" de Platão (em que percebemos que a aranha afinal é assaz socrática, pois está apaixonada por um jovem Alcibíades que fala com a namorada ao telemóvel), pelo alegorizar da representação cinemática que recorre ao mito da caverna da "República", pela própria tragédia, até chegarmos, no último poema, aos primórdios, à epopeia homérica. Aí percebemos que a aranha tem tanto de Sócrates como de Ulisses: houve uma metamorfose, houve uma maiêutica, houve uma odisseia. E percebemos que Franco Alexandre fez, à sua maneira miniatural, a mesma coisa que Ovídio faz nas "Metamorfoses", que é conciliar o ideal estético da poesia magra com "a pulsação das sílabas" (Eugénio) da epopeia.

No que ao "fio das sílabas" (Sophia) diz respeito, o decassílabo franco-alexandrino constitui novamente em "Aracne" um prodígio de inventividade, num trabalho que tem tanto de tecelão como de ourives. Neste sentido, "Aracne" vem situar-se na linha de "Duende" e das secções decassilábicas de "Uma Fábula", numa respiração neo-quinhentista que consolida, afinal, o diálogo que Franco Alexandre vem mantendo com Camões já desde "Oásis". Mas o quinhentismo nas opções de linguagem afigura-se mais uma vez (como na "Fábula") uma estratégia universalizante, que imprime no discurso poético antiguidade na contemporaneidade e vice-versa. Como na p. 28, onde a internet é aludida nos seguintes termos: "Se o meu desgosto é ser, na grande Teia, / mensagem virtual ou sopro vago, / talvez me queiras tu dar o teu rosto, / e eu no teu corpo me transforme em alma."

A possibilidade de novas transformações espreita sempre ao longo de "Aracne"; e se o verso final ("o sábio coração de um aranhiço") deixa entrever alguma auto-aceitação, não deixamos de testemunhar diversos devaneios metamórficos: "Ser abelha, dar mel, eis um projecto / sensato, e à medida de um insecto" (p. 43). A abelha é, claro, tanto no código grego como renascentista, o insecto simbólico de uma poesia que se quer acima de tudo doce e branda; e o outro insecto tipicamente representativo da melhor poesia na cultura grega aparece mais à frente no mesmo poema, numa sequência de óbvias ressonâncias camonianas: "Nem arte nem engenho justificam / este cantar de grilo..." Além desta galeria de insectos gregos (há ainda a formiga, cujos carreiros desde Aristófanes são metáforas de versos intrincados), encontramos o cisne, tão calimaquiano quanto camoniano, e as euripidianas aves migratórias do último poema, sobre cujo dorso a aranha faz a sua viagem ulisseica.

Este aparato helénico-quinhentista é o suporte, no entanto, de algo que é tudo menos teórico e abstracto. À semelhança de "Duende", este novo livro de Franco Alexandre é uma incursão no terreno movediço da poesia de amor, em cujas areias só os maiores poetas conseguem mover-se sem se afundar. Temos de novo um amor impossível, como no caso de "Duende", mas por razões opostas. Em "Duende" o sujeito lírico era humano, apaixonado por alguém que é de outra espécie; em "Aracne" é o próprio sujeito lírico que é de outra espécie, ainda que dotado da memória de ter sido humano. Os códigos helenizantes do pasmo perante a beleza do objecto amado "metaformoso" e a formulação quinhentista da sua materialização ("formoso amigo meu", "sonhar uma outra terra, um outro céu", "nasceu tão claro o dia", etc.) deixam sempre cantar mais alto o som da emoção, num livro que é todo ele um repositório de momentos de pura magia.

"A teia sem enredo é a minha ideia fixa, / puro cristal, como os da neve, abstracto, / tão claro como o mero abecedário / onde as palavras falam, sem barulho" (p. 16). Neste livro se confirma plenamente o que António Franco Alexandre nos tem vindo a demonstrar ao longo de um percurso poético incomparável: as suas palavras não falam com barulho, falam com música. E da mais pura.

Aracne
Autor António Franco Alexandre
Editor: Assírio & Alvim
... págs., ... euros


Uma Despedida Sem Lágrimas
Sábado, 08 de Janeiro de 2005

%Vanessa Rato

Se sucesso e qualidade fossem sinónimos absolutos, Banana Yoshimoto teria que ser considerada uma das melhores escritoras do seu país. Filha mais nova de um dos pensadores da Nova Esquerda dos anos 60 japoneses, tinha 23 anos quando se estreou na escrita para se tornar não só num milagre instantâneo de vendas, como ainda numa multipremiada figura de culto. A Portugal chega agora, 17 anos e cerca de 11 novelas depois, com uma obra de 1990 traduzida directamente do original.

"Adeus, Tsugumi" é uma história de afectos familiares com travessia da adolescência de permeio e pretensão longínqua a parábola sobre um país em mudança. Mas o tratamento literário que Yoshimoto faz quer dos temas, quer das personagens que cria para os desenvolver não podia ser mais plano.

A relação entre duas primas que cresceram juntas numa estalagem tradicional ("ryokan") é o centro gravitacional de uma narrativa que vai escorrendo trivialidades esvaziadas de qualquer interesse, pungência, encanto ou mistério. O registo não é enganadoramente simples - apenas simplista - e nem o facto de uma das duas protagonistas viver em luta constante contra a morte constitui o elemento de "pathos" que a autora parece ter querido introduzir.

Nunca se chega a saber que mal ataca Tsugumi. Sabemos que vê o mundo através de uma cortina de febre e mal-estar e que a fragilidade da sua ligação à vida condicionou desde a nascença o modo como sempre foi tratada, donde a sua personalidade.

Com ataques súbitos e irreprimíveis de fúria, é "uma rapariga desagradável". Perspicaz, mordaz, insolente, por vezes cruel, com uma vontade de pedra, cínica, caprichosa e maliciosa, consegue, contudo, "encantar as pessoas de forma arrebatadora", antes de mais pela beleza de "uma boneca que um deus maravilhosamente criara".

Maria parece, para todos os efeitos, a sua única verdadeira âncora na normalidade. É também ela a voz que Yoshimoto assume como narradora das memórias de um Verão em que Tsugumi descobre o seu primeiro grande amor.

Há um ano a estudar em Tóquio, Maria regressa pela primeira vez à cidade à beira-mar onde cresceu para reencontrar a prima. No lapso de tempo da sua ausência, a abertura iminente de mais um grande empreendimento hoteleiro levou a que o encerramento do "ryokan" dos seus tios ficasse marcado para o fim da temporada.

Vivem-se, então, os últimos momentos de um modo de vida que encerra a infância de ambas e as últimas ligações às tradições ancestrais de um país. Mas, por entre a pretensa singeleza de passeios nocturnos pela praia, festas com fogo-de-artifício e fatias fininhas de melancia comidas em tardes de calor, nada tem a urgência terminal que o escoar dos dias em direcção ao Outono parece sugerir.

Em entrevistas recentes, Yoshimoto diz que hoje em dia escreve para se "divertir". Será isso. E só isso.

Adeus, Tsugumi
Autor: Banana Yoshimoto
Tradução do japonês de António Barrento
Editor Cavalo de Ferro
160 págs., 12,80 euros



"Atlântica"
Sábado, 08 de Janeiro de 2005

Revista Atlântica de Cultura Ibero-Americana

Instituto de Cultura Ibero-Atlântica (Portimão)

"Atlântica" é uma (bela) revista semestral, é publicada em Portimão pelo Instituto de Cultura Ibero-Atlântica, uma associação cultural sem fins lucrativos, e o seu primeiro número acaba de ser publicado. Para além de se fazer notar aqui o facto de uma revista com esta qualidade gráfica e de conteúdo estar sediada em Portimão, citem-se alguns dos nomes que colaboram no número inaugural: António Borges Coelho, António Ramos Rosa, Gabriela Cánovas, Lídia Jorge, João de Melo, Luís Sepúlveda (com um texto intitulado "Neruda e uma pedra coberta de musgo"), Tabajara Ruas e Volodia Teitelboim. Destaque-se, quanto a este último, autor de uma biografia de Pablo Neruda que foi recentemente publicada em Portugal, a entrevista que lhe é feita por Regina Rodríguez.

Esta "revista atlântica de cultura ibero-americana" é dirigida por João Ventura que, no seu "manifesto editorial", escreve isto:"Da experiência indo-afro-ibero-americana tratará, pois, esta revista, espécie de ponte sobre o Atlântico atravessada nos dois sentidos para nos reconhecermos, uns e outros, na nossa outra metade comum. Porque para nós hoje, como no passado o foi para os navegadores ibéricos, o Atlântico não separa, antes une dois continentes." Refira-se ainda a viagem que João Ventura nos convida a fazer por Buenos Aires, na secção "Cidades invisíveis".
Efeitos da Técnica
Sábado, 15 de Janeiro de 2005

%Eduardo Prado Coelho

Por vezes temos a sensação de que descobrimos um autor. Não um autor cuja obra já está feita, mas um autor em que a obra se está a fazer (o que envolve hesitações e repetições) diante dos nossos olhos. Esse é o caso de Bernard Stiegler. Começou em 94 com três livros (aparentemente, uma tese de doutoramento) sobre a técnica, e logo nessa altura impôs uma problemática original: "La technique et le temps. I. La faute d'Epiméthée" sai em 94 precisamente. Epimeteu, distraído, estouvado, não distribuiu bem as capacidades pelos seres e deixou os homens como seres em defeito: as técnicas são as próteses (palavra central em Stiegler) que permitem a existência do homem. Em 96, temos o segundo volume deste verdadeiro tratado: "La désorientation". E, por fim, em 2001, "Le temps du cinéma et la question du mal-être", onde introduz a noção de "objecto temporal", aquele em que a sua percepção implica que o nosso tempo e o tempo constitutivo do objecto coincidam: o exemplo privilegiado é o cinema, na medida em que "ver" um filme é fazer ajustar o nosso tempo de percepção ao tempo do filme.

Entretanto, Stiegler vai estabelecendo a diferença entre o analógico e o digital, e mostrando que a digitalização generalizada cria uma linguagem comum que permite a redução de todas as linguagens a um espaço de manipulação: já não há verdade em fotografia, assistimos a uma evanescência do real no processo simbólico, a marca da realidade perdeu-se. Tem uma estimulante reflexão sobre a televisão com Jacques Derrida (e é aqui que surge a noção de "ecografia" e a ontologia do espectral), num livro intitulado "Echographies - de la télévision", com um ensaio na parte final. Aqui se põe à prova a relação de mestre-discípulo entre Derrida e Stiegler, que não exclui, aliás, determinadas divergências pontuais. E ao mesmo tempo se desenvolve uma dimensão inesperada do pensamento de Derrida, aquela que conduz a pensar a televisão como um aspecto essencial da existência contemporânea, capaz de desconstruir certos factores da oposição entre real e imagem.

É esta questão do "mal-estar" que vai reforçar as perspectivas sociais e políticas de Bernard Stiegler. Depois de uma reflexão/confidência que o leva a assumir publicamente um episódio antigo que o conduziu à prisão, Stiegler traça o percurso da sua descoberta da filosofia. Um ensaio breve analisa as derivas fascizantes contemporâneas: "Aimer, s'aimer, nous aimer". E regressam os ciclos textuais. Um intitulado "De la misère symbolique" e referindo-se às características da "época hiperindustrial". Outro, também em 2004, tem o título de "Mécréance et discredit" e ocupa-se da "decadência das democracias industriais". Neste livro Stiegler procura mostrar que não é tão pessimista como aparenta. Ele diz-nos que o sistema técnico exige uma dupla interrupção do curso normal das coisas. Primeiro, uma mutação técnica suspende a ordem dominante. Segundo, duplicando a primeira interrupção (e este processo de duplicação é essencial), a criação de uma nova época traduzindo-se em novas formas de vida - o que é precisamente a matéria dos actuais trabalhos de Bernard Stiegler.

Ora, Stiegler considera que há algo que vem impedir esta criação de uma sociedade nova. Na sua perspectiva, trata-se do envelhecimento do modelo industrial do século XX, com a sua relação entre produção e consumo. E que esta inadequação se manifesta (e este é um dos temas obsessivos de Stiegler) na estupidificação a que nos leva a atitude dos espectadores televisivos. Uma nova sociedade exige novas formas de existência - ora não é isso a que estamos hoje a assistir: as pessoas não existem, limitam-se a sobreviver, numa proletarização generalizada que produz uma miséria simbólica. Consequências: destruição do narcisismo primordial. E esta destruição leva à destruição da lei. Donde, a política degenera e a democracia torna-se uma farsa.

Como vemos, não é propriamente em termos económicos ou sociais que Stiegler analisa a nossa decadência, mas sim em termos simbólicos, a partir de conceitos que ele vai inventando passo a passo. Porém, o seu velho tema lá está. As técnicas são formas de fabricação do homem. Por outras palavras, os homens são fabricados através das técnicas que fabricam. A cultura passa por essa capacidade de transmitir técnicas. Citando Stiegler: "O homem é um ser cultural na medida em que ele é essencialmente um ser técnico: é porque ele está rodeado pela terceira memória técnica que ele pode acumular uma experiência intergeracional a que se chama muitas vezes 'cultura' - e por isso é absurdo opor a técnica à cultura: a técnica é a condição da cultura, na medida em que permite a transmissão. Em contrapartida, há uma época da técnica, a tecnologia, e é a nossa época, em que a cultura entra em crise, precisamente porque se torna industrial e se acha submetida aos imperativos do cálculo da troca." Donde, a técnica é cultura e as duas instâncias não são separáveis. Mas é na medida em que a economia vem interferir na relação técnica-cultura que a crise se instala, e a dimensão simbólica se começa a desfazer.

Não conta apenas o passado. Precisamos de ter em conta essa abertura ao futuro que é a dimensão do desejo. "O que quer dizer que o saber humano não se reduz ao que é conservado pelas suas retenções materiais: o saber humano é essencialmente o desejo humano. E estas retenções materiais só suscitam uma herança na medida em que são fetichizadas, carregadas de fantasmas (a tradução supostamente correcta é a de 'fantasias', mas a palavra parece-me fraca) e de afectos. O que faz que o homem seja um sábio é ele ser um ser desejante, isto é, capaz de fantasmar e de imaginar: só se é um sábio na condição de se ser um apaixonado do saber, e propriamente alucinado pelos seus aparecimentos, que são por exemplo as figuras da geometria." Ora um dos aspectos da crise é que se perdeu a dimensão desejante do saber. O lado de sabor inerente ao saber está hoje a ser liquidado pelos valores mercantis.

Aquilo que Stiegler designou como objectos temporais tem hoje um papel fundamental. Daí uma tese essencial: a indústria dos objectos culturais é cada vez mais uma indústria dos objectos temporais. Ora, se o cinema é um caso privilegiado de objecto temporal, podemos chegar à segunda tese: o cinema é hoje o paradigma do funcionamento da consciência como produção e montagem do tempo. E, por fim, a terceira tese: a produção temporal dos objectos que fazem a cultura de hoje é uma sincronização das consciências. Ou, se preferirem, um dispositivo que leva à cretinização televisiva. Se sincronizar é adaptar-se à mesma temporalidade e perder a sua singularidade, contudo - e este aspecto é essencial -, sincronizar não é uniformizar. Mesmo se existem pontos positivos da unificação e na sincronização em si mesmas. Conclui Stiegler: "O problema não é a sincronia nem a tendência para a sincronia que rege toda a troca humana, e em particular toda a interlocução. O problema posto pela actual tendência para a sincronização é que ela consiste numa decomposição do sincrónico e da diacrónico", porque assistimos ao "decompor do processo de individuação psíquica e colectiva, e ao decompor do eu e do nós - que se desfazem num "se", reino da insignificância.

"Queres Ser Paul Auster?"
Sábado, 15 de Janeiro de 2005

%Luís Maio

Paul Auster desconstruiu o romance e, do mesmo golpe, escreveu alguns dos mais notáveis romances do nosso tempo. Mas "Inventar a Solidão" foi escrito antes disso e não é uma obra de ficção. Dado o seu cunho autobiográfico, tem, no entanto, vindo a ser reabilitado por uma crescente legião de fãs, inclinados a decifrar a magia imanente a clássicos modernos, como "A Trilogia de Nova Iorque", "Leviathan" ou "O Livro das Ilusões".

"Inventar a Solidão" é, na verdade, mais que confissões e, como que o seu título já indica, apresenta-se como um ensaio sobre a solidão. Ou melhor, sob várias modalidades de solidão e outras obsessões caras ao autor, como a natureza do acaso e os mecanismos da memória. Essa é a constelação temática recorrente, embora não sistemática e, para complicar mais as coisas, o livro está dividido em duas secções, escritas em registos de tal modo distintos que acabam por valer por livros diferentes, protagonizando uma estranha mas insinuante convivência.

A atenção tende a reter-se na primeira parte, chamada "Retrato de um homem invisível" (1979), porque aqui a escrita é mais directa e ostensivamente biográfica. É sobre a morte do pai e o esforço do escritor para que a sua memória não desapareça com ele. Auster começa a escrever três semanas depois da má notícia, sem plano, nem ideia precisa, motivado por uma espécie de imperativo interior, acreditando que o livro (quase) se irá escrever por si próprio. Mas rapidamente bloqueia e fica a escrever sem rede.

Mesmo um escritor de excepção não tem forçosamente um pai interessante, e é esse justamente o seu problema. Auster esboça um retrato implacável do progenitor, como alguém desprovido de paixões sensuais ou intelectuais, avesso ou incapaz de se revelar a si mesmo, um homem invisível, ou melhor, opaco - "um bloco de espaço impenetrável sob a forma de um homem". Um solitário. "Mas não no sentido de estar só (...) Solitário no sentido de retirada. No sentido de não ter de se ver a si mesmo, mesmo sendo visto pelos outros."

São imagens de uma crua beleza, mas que confluem para um beco sem saída em termos narrativos. Esta confessa frustração, o reconhecimento de que este "retrato de um homem invisível" constituiu uma empresa destinada ao fracasso, é justamente o que lhe confere uma inegável originalidade. Chegado a meio da prosa, Auster declara: "Vezes sem conta, tenho visto os meus pensamentos esboroando-se, dissipando-se, perante aquilo que tenho à minha frente." Ou seja, ao escrever sobre o pai, Auster acaba por se aproximar involuntariamente dele, vindo a padecer da mesma incapacidade de atingir o âmago das coisas. A metamorfose torna-se ainda mais acentuada, quando, depois deste desabafo, o autor engata no relato fastidioso de um assassínio de família ocorrido 60 anos antes, cuja relação com o baço carácter do pai não é de todo evidente.

Um livro por editar

Alguns resumos anunciam que, se a primeira parte de "Inventar A Solidão" é sobre a morte do pai, a segunda é sobre a própria experiência de paternidade do autor. Nada de mais equívoco ou de mais redutor. Embora "O Livro da Memória" (1980-81) seja imediatamente sequente em termos cronológicos e esteja repleto de apontamentos pessoais, revela-se como um animal completamente diferente. Começa e acaba com um homem sentado a uma mesa, frente a uma folha em branco. O homem chama-se A., suspeitando-se desde o princípio que é um alter-ego do escritor, o que ele mesmo vem a confirmar mais à frente. Este é então um livro que Auster escreve sobre Auster enquanto escreve um romance, o supracitado "livro da memória". Abstracto, oblíquo e provocador, é um pedaço de literatura absolutamente cativante. Nem auto-retrato, nem romance, vai evoluindo sem rumo aparente entre as duas coisas, como se fosse uma espécie de "Queres ser Paul Auster?" (ou algo de semelhante ao labirinto de desdobramentos do filme "Queres Ser John Malkovich?").

Está escrito em parágrafos e os primeiros resumem a problemática condição do escritor. Auster descreve A. na véspera de Natal de 1979, folha em branco em cima da mesa, tolhido pela confusão entre o antes e o agora descrita como "nostalgia do presente". O parágrafo seguinte pretende ser a continuação desta ideia, mas limita-se a nomear sistemas de memória clássicos (Raymond Dull, Robert Fludd) e a ideia de Giordano Bruno de que qualquer coisa está, em certo sentido, ligada a todas as outras. Nova nota sobre a intenção de fazer correr paralelamente uma indagação sobre o quarto, suplementada pela célebre máxima de Pascal segundo a qual toda a infelicidade do homem deriva de ser incapaz de permanecer quieto no seu quarto.

Até que A. decide começar a escrever "O Livro da Memória" e, portanto, regressa à véspera de Natal de 1979, à folha vazia e por aí adiante, mas desta feita a escrita torna-se mais descritiva e desemboca na decisão de que o seu mundo passe a ser reduzido às dimensões de um quarto. Novo parágrafo, desta feita sobre Gepeto no ventre do tubarão (que é baleia na versão Disney), Pinóquio a salvá-lo, a clássica alegoria de aproximação de pais e filhos, seguida de uma invocação de Robinson Crusoe, rematada num comentário sobre a natureza do acaso e outra história de pais e filhos, mas sem nenhuma ligação com a anterior. De volta ao seu quarto, A. escreve: "Quando o pai morre o filho torna-se o seu próprio pai e o seu próprio filho."

Confusos? Bom, depois de toda esta avalancha de pistas que disparam em todos os sentidos, o quebra-cabeças recomeça nos sequentes doze capítulos do livro de memórias. Ideias e estórias expostas muitas páginas à frente precedem, na ordem lógica das coisas, as já expostas, outras vêm dar-lhe finalmente sequência, outras ainda ficam-se pela enunciação, como se implodissem sem explicação. A maior parte encaixa-se umas nas outras (a baleia de Pinóquio é o quarto de A.), algumas remetem para o prévio "Retrato de um Homem Invisível" (o Auster criança reemerge como um Pinóquio fracassado, que nunca conseguia "salvar" o pai). "O Livro da Memória" acaba assim por se oferecer como um romance acabado, mas não editado, onde cabe a quem lê pôr ordem numa formidável confusão. O leitor preguiçoso lerá meia dúzia de páginas e passará à frente, mas, para o resistente, esta tortuosa e absorvente torrente narrativa é seguramente melhor que um passatempo a tempo inteiro.
"Portugal É Perfeito"
Sábado, 15 de Janeiro de 2005

%L.M.

É graças à compra de um bloco de notas de azul, que o protagonista de "A Noite do Oráculo" recupera o ânimo e a capacidade de escrita. O caderno é de fabrico português e quando lhe pega pela primeira vez, numa pequena papelaria de Brooklyn, Orr sente uma súbita e incompreensível irrupção de bem-estar: "Os cadernos portugueses exerciam sobre mim um fascínio muito especial e eu sabia que não resistiria àquelas capas duras, àquelas linhas quadriculadas, àqueles cadernos costurados de papel robusto, sólido, imune a todo o tipo da borrões." O caderno português irá funcionar como um fetiche, ao mesmo tempo mágico e inquietante da sua escrita, ao ponto que acabará por destruí-lo. Por coincidência ou talvez não, as últimas linhas que escreve nesse caderno respeitam acontecimentos dramáticos, envolvendo a sua mulher, o seu melhor amigo e o filho dele, que ocorreram ou ele imagina que ocorreram numa pequena casa de férias, no litoral Norte de Portugal.

O nosso país tem o privilégio de uma terceira e mais demorada menção em "A Noite do Oráculo". Numa altura em que e a sua carreira literária caiu num impasse e está completamente nas lonas, Orr vê a luz ao fundo do túnel chegar de Portugal. Informado pela agente do interesse de editores portugueses em lançarem-no entre nós, o escritor declara que não tem objecções, antes pelo contrário. "Pessoa é um dos meus escritores preferidos. Deitaram abaixo Salazar e agora têm um governo decente. O terramoto de Lisboa inspirou Voltaire a escrever 'Candide'. E Portugal ajudou milhares de judeus a fugirem da Europa durante a guerra. É um país bestial. Eu nunca lá estive, é claro, mas, queira ou não queira, é lá que eu vivo agora. Não, Portugal é perfeito." (pág. 132)