Deixar Que a Dança Seja Um Lugar de Vida
Por EDUARDO PRADO COELHO
Terça-feira, 15 de Fevereiro de 2005
São corpos que estão abandonadamente, soltos, desprendidos, cada um para seu lado, Mas a música - digamos, a cadência, as palavras - de P. J. Harvey começa a ouvir-se. Primeiro lentamente. Depois, aos poucos, desliza. É uma música que se anima a si própria, que respira, que se exalta, que é por momentos uma batida obstinada, que chega a ser um ritmo infernal. Não é uma música de que se gosta, é uma música que se marca no corpo, que faz dele uma tatuagem, uma moradia, uma relação com as coisas que nos rodeiam. É uma música feita do mecanismo que move os nossos dias. Articulações, roldanas, parafusos, anilhas, metal, superfície de luz cortante.
Ora a música vai ocupar os corpos dos bailarinos (que são sobretudo intérpretes do teatro da luz, ginastas, navegadores nocturnos), fazer de cada um deles um lugar.
Que é um lugar? É um ponto do mundo donde se parte, mas a que sempre se regressa, é uma identidade móvel. Eu estou no meu lugar, volto ao meu lugar, escolho o meu lugar. Num café onde vou regularmente, eu tenho tendência para ocupar o mesmo lugar. Nas aulas, os alunos escolhem quase sempre os lugares onde se vão sentar ao longo do ano. Um lugar atrai, num lugar se repousa.
Estas bailarinas (não há senão raparigas, vestidas com roupas descuidadas, de cores diversas, calçando ténis, de "jeans" ou saias, exibindo pernas onde ressaltam antigas escoriações, manchas, nódoas negras) são em si mesmas permutáveis: elas distinguem-se mal, penteiam-se da mesma maneira negligente, mas deixam-se unir pela rede da música de P. J. Harvey, uma malha esburacada e fatigante.
A música parte delas agita os corpos, murmura neles um certo ritmo, uma cadência brumosa. Só lentamente invade o corpo, ossos, músculos, tendões. Só por vezes esboça o desejo de voo. Mais do que a beleza ou o azul dos céus, demandam os limites, as extremidades, as linhas onde o corpo começa a ser o abismo de si próprio. Cada uma vai permanecer no seu isolamento, só inadvertidamente se tocam. Estão ensimesmadas na noite do canto, voltadas sobre si próprias, fechadas na esfera saturada da música.
Há um prazer de dançar, isto é, de deixar que o corpo se individualize, não como um projecto de criar beleza, nem de traçar percursos psicológicos, mas como algo que transforma cada corpo anónimo num lugar de energia.
No percurso de Mathilde Monnier, que, sendo uma permanente reflexão sobra a dança, nos surpreeende de peça para peça, na medida em que cada uma delas se arrisca num território que nada faria prever, "Publique" é um momento forte, que entusiasmou os espectadores da Culturgest. Razão para felicitarmos os responsáveis porugueses, Miguel Lobo Antunes e Gil Mendo.
Por EDUARDO PRADO COELHO
Terça-feira, 15 de Fevereiro de 2005
São corpos que estão abandonadamente, soltos, desprendidos, cada um para seu lado, Mas a música - digamos, a cadência, as palavras - de P. J. Harvey começa a ouvir-se. Primeiro lentamente. Depois, aos poucos, desliza. É uma música que se anima a si própria, que respira, que se exalta, que é por momentos uma batida obstinada, que chega a ser um ritmo infernal. Não é uma música de que se gosta, é uma música que se marca no corpo, que faz dele uma tatuagem, uma moradia, uma relação com as coisas que nos rodeiam. É uma música feita do mecanismo que move os nossos dias. Articulações, roldanas, parafusos, anilhas, metal, superfície de luz cortante.
Ora a música vai ocupar os corpos dos bailarinos (que são sobretudo intérpretes do teatro da luz, ginastas, navegadores nocturnos), fazer de cada um deles um lugar.
Que é um lugar? É um ponto do mundo donde se parte, mas a que sempre se regressa, é uma identidade móvel. Eu estou no meu lugar, volto ao meu lugar, escolho o meu lugar. Num café onde vou regularmente, eu tenho tendência para ocupar o mesmo lugar. Nas aulas, os alunos escolhem quase sempre os lugares onde se vão sentar ao longo do ano. Um lugar atrai, num lugar se repousa.
Estas bailarinas (não há senão raparigas, vestidas com roupas descuidadas, de cores diversas, calçando ténis, de "jeans" ou saias, exibindo pernas onde ressaltam antigas escoriações, manchas, nódoas negras) são em si mesmas permutáveis: elas distinguem-se mal, penteiam-se da mesma maneira negligente, mas deixam-se unir pela rede da música de P. J. Harvey, uma malha esburacada e fatigante.
A música parte delas agita os corpos, murmura neles um certo ritmo, uma cadência brumosa. Só lentamente invade o corpo, ossos, músculos, tendões. Só por vezes esboça o desejo de voo. Mais do que a beleza ou o azul dos céus, demandam os limites, as extremidades, as linhas onde o corpo começa a ser o abismo de si próprio. Cada uma vai permanecer no seu isolamento, só inadvertidamente se tocam. Estão ensimesmadas na noite do canto, voltadas sobre si próprias, fechadas na esfera saturada da música.
Há um prazer de dançar, isto é, de deixar que o corpo se individualize, não como um projecto de criar beleza, nem de traçar percursos psicológicos, mas como algo que transforma cada corpo anónimo num lugar de energia.
No percurso de Mathilde Monnier, que, sendo uma permanente reflexão sobra a dança, nos surpreeende de peça para peça, na medida em que cada uma delas se arrisca num território que nada faria prever, "Publique" é um momento forte, que entusiasmou os espectadores da Culturgest. Razão para felicitarmos os responsáveis porugueses, Miguel Lobo Antunes e Gil Mendo.