Stuart A. StaplesLucky Dog Recordings
7/10
Beggars Banquet; distri. Popstock
Vamos, por instantes, conceder-nos um pequeno momento de senso comum: aceitemos, então, que o desejo é uma coisa de cometas e a outra coisa (a que não se diz, a da víscera secreta) precisa de uma outra têmpera, assunto de galáxias. Essa outra coisa requere uma aceitação tácita de defeitos, permite-se dias sem toques nem mais que um murmúrio, reconhece lugares sem que isso conduza ao tédio. Essa outra coisa é, mais coisa menos coisa, a forma mais próxima que temos de definir (segue expressão lamentável) os nossos sentimentos pela música de Stuart Staples. Staples - recordemos o leitor mais avesso a decorar nomes - é o homem do leme de um combo de areias movediças chamado Tindersticks. Essa outra coisa mantém-se mais que viva após esta estreia a solo.
Os anos mudaram tudo, diga-se. Ao princípio era uma paixão furiosa pelo disco de estreia, homónimo, do sexteto inglês, por aquela música em que os Velvet Underground encontravam o flamenco no fundo de uma garrafa. Nos dois discos seguintes (o segundo foi obsessão violenta) levaram o conceito de luxúria ao extremo, criaram um universo cada vez mais afado, as guitarras cortantes desapareciam em cortinas de veludo. Veio a soul e a as acusações de facilitismo. Hoje, "Simple Pleasure" (1999) e "Waiting for the moon" (2003), as obras mais abertas do sexteto, são as nossas preferências - respire-se ali. E de repente, quando menos se esperava, ele, Staples, imagem sofisticada da dor-de-corno-a-fazer-que-não regressa a uma forma suja de fazer canções.
Numa qualquer revista de música na net alguém escreveu: "Staples podia ter feito um disco de drum "n bass e mesmo assim ainda manteria o seu quintessencial calor dorido." Não há melhor expressão para definir a surpresa de "Lucky Dog Recordings", mais ainda sabendo que era plano de Staples juntar "the ugly and awkward". Não é que não haja aqui matéria tindersticksiana: "She don"t have to be good to me" poderia bem estar em "Tindersticks II" (1995): guitarra acústica, bateria de escovas, piano delicado a embalar e a voz em sussurro, braço dado com a trompete, noctívaga mas companheira. E "I"ve come a long way" podia caber em "Can our love" (2001): dois acordes de Hammond e o arranjo com, imagine-se, duas notas repetidas incessantemente. Coisa de minúcias e murmúrios, alvorada de trompete, Otis Redding na doca da baía a assobiar louvores à fêmea. Depois a guitarra abraça o ondular gingão da pandeireta e há um prenúncio de dia, até se amainar a guitarra, a pandeireta, os metais (cuida-se que o termo "belíssima" foi criado para coisas assim).
Mas há também um outro Staples, aqui. E logo a abrir, com "Somerset house", ele vem ao de cima: a tríade em harpejos, ligeira pausa, harpejo de novo, voz de mulher a fazer "tututu". Nada mais que isto. Ou mais que isso, o oposto, lance de sujeira, manobra de recuo até aos idos de 1993: "Say something now" traz um delay na guitarra, a voz abafada e o piano martelado lá atrás, quase fantasma. Até aqui tudo bem, mas depois haverá western de metais, bateria a ruir, dissonâncias e feedback de guitarra. É a grande canção sanguinolenta que os Tindersticks não fazem há uma década. Os anos, graças à pele, permitem escutá-la com uma saborosa distância. A coisa volta a repetir-se dois temas à frente, com um riff lento e áspero (e agradavelmente mal tocado) a avançar a ritmo de jogador brasileiro em relva alta depois de noite de mulata, para depois bascular-se num arranjo dissonante e coros femininos. Dura dois minutos. Staples, nitidamente, deu-se ares de pós-adolescente. Mais certeza temos deste lúcido aparte quando chegamos a "Untitled": malha catita de piano, harmónica sintetizada, percussão jazzy, lá atrás metais-Martini, digitália chaise-long. Sim, senhora, digitália chaise long. Um devaneio electrónico que soa mais a coisa certa no momento certo que a devaneio de DJ drustrado ("Untitled", diga-se, é uma delícia pop.)
Nos Tindersticks a presença dos outros músicos funciona como uma força centrípeta, conduzindo cada tema a águas reconhecíveis. Aqui, Staples tem a liberdade de fazer de cada tema o seu pequeno mundo. "Lucky Dog..." é artesanato de miniaturas, maquetes em formação, polaroids de pequenos insectos que brilham por segundos apenas. Beleza esquiva.
A coisa estética é uma ciência burilada no coração: apor cada elemento no lugar que mais o deseja, pousá-lo apenas por necessidade. Justapor - imperiosamente, do lado onde a beleza é um rumor que não se diz. Desenganem-se: não há mais incêndios por aqui. Não há problema algum: são suficientemente apelativas, as esculturas de cinza do burguês Staples. Sempre foram, aliás. João Bonifácio.
7/10
Beggars Banquet; distri. Popstock
Vamos, por instantes, conceder-nos um pequeno momento de senso comum: aceitemos, então, que o desejo é uma coisa de cometas e a outra coisa (a que não se diz, a da víscera secreta) precisa de uma outra têmpera, assunto de galáxias. Essa outra coisa requere uma aceitação tácita de defeitos, permite-se dias sem toques nem mais que um murmúrio, reconhece lugares sem que isso conduza ao tédio. Essa outra coisa é, mais coisa menos coisa, a forma mais próxima que temos de definir (segue expressão lamentável) os nossos sentimentos pela música de Stuart Staples. Staples - recordemos o leitor mais avesso a decorar nomes - é o homem do leme de um combo de areias movediças chamado Tindersticks. Essa outra coisa mantém-se mais que viva após esta estreia a solo.
Os anos mudaram tudo, diga-se. Ao princípio era uma paixão furiosa pelo disco de estreia, homónimo, do sexteto inglês, por aquela música em que os Velvet Underground encontravam o flamenco no fundo de uma garrafa. Nos dois discos seguintes (o segundo foi obsessão violenta) levaram o conceito de luxúria ao extremo, criaram um universo cada vez mais afado, as guitarras cortantes desapareciam em cortinas de veludo. Veio a soul e a as acusações de facilitismo. Hoje, "Simple Pleasure" (1999) e "Waiting for the moon" (2003), as obras mais abertas do sexteto, são as nossas preferências - respire-se ali. E de repente, quando menos se esperava, ele, Staples, imagem sofisticada da dor-de-corno-a-fazer-que-não regressa a uma forma suja de fazer canções.
Numa qualquer revista de música na net alguém escreveu: "Staples podia ter feito um disco de drum "n bass e mesmo assim ainda manteria o seu quintessencial calor dorido." Não há melhor expressão para definir a surpresa de "Lucky Dog Recordings", mais ainda sabendo que era plano de Staples juntar "the ugly and awkward". Não é que não haja aqui matéria tindersticksiana: "She don"t have to be good to me" poderia bem estar em "Tindersticks II" (1995): guitarra acústica, bateria de escovas, piano delicado a embalar e a voz em sussurro, braço dado com a trompete, noctívaga mas companheira. E "I"ve come a long way" podia caber em "Can our love" (2001): dois acordes de Hammond e o arranjo com, imagine-se, duas notas repetidas incessantemente. Coisa de minúcias e murmúrios, alvorada de trompete, Otis Redding na doca da baía a assobiar louvores à fêmea. Depois a guitarra abraça o ondular gingão da pandeireta e há um prenúncio de dia, até se amainar a guitarra, a pandeireta, os metais (cuida-se que o termo "belíssima" foi criado para coisas assim).
Mas há também um outro Staples, aqui. E logo a abrir, com "Somerset house", ele vem ao de cima: a tríade em harpejos, ligeira pausa, harpejo de novo, voz de mulher a fazer "tututu". Nada mais que isto. Ou mais que isso, o oposto, lance de sujeira, manobra de recuo até aos idos de 1993: "Say something now" traz um delay na guitarra, a voz abafada e o piano martelado lá atrás, quase fantasma. Até aqui tudo bem, mas depois haverá western de metais, bateria a ruir, dissonâncias e feedback de guitarra. É a grande canção sanguinolenta que os Tindersticks não fazem há uma década. Os anos, graças à pele, permitem escutá-la com uma saborosa distância. A coisa volta a repetir-se dois temas à frente, com um riff lento e áspero (e agradavelmente mal tocado) a avançar a ritmo de jogador brasileiro em relva alta depois de noite de mulata, para depois bascular-se num arranjo dissonante e coros femininos. Dura dois minutos. Staples, nitidamente, deu-se ares de pós-adolescente. Mais certeza temos deste lúcido aparte quando chegamos a "Untitled": malha catita de piano, harmónica sintetizada, percussão jazzy, lá atrás metais-Martini, digitália chaise-long. Sim, senhora, digitália chaise long. Um devaneio electrónico que soa mais a coisa certa no momento certo que a devaneio de DJ drustrado ("Untitled", diga-se, é uma delícia pop.)
Nos Tindersticks a presença dos outros músicos funciona como uma força centrípeta, conduzindo cada tema a águas reconhecíveis. Aqui, Staples tem a liberdade de fazer de cada tema o seu pequeno mundo. "Lucky Dog..." é artesanato de miniaturas, maquetes em formação, polaroids de pequenos insectos que brilham por segundos apenas. Beleza esquiva.
A coisa estética é uma ciência burilada no coração: apor cada elemento no lugar que mais o deseja, pousá-lo apenas por necessidade. Justapor - imperiosamente, do lado onde a beleza é um rumor que não se diz. Desenganem-se: não há mais incêndios por aqui. Não há problema algum: são suficientemente apelativas, as esculturas de cinza do burguês Staples. Sempre foram, aliás. João Bonifácio.